domingo, 28 de abril de 2013

SEGREDOS SINCEROS

Quando se chega aos 80 anos muitas coisas deixam de fazer parte da rotina. Apaixonar-se, por exemplo, deve ser o segundo tópico, porque o primeiro é fazer planos.

Ela com 70 e ele com 79, prestes a tentar emplacar mais uma década. Ambos com a vida feita, netos e uma história de viuvez há anos. Ele, empresário aposentado no ramo de roupas. Ela viúva de um bem-sucedido comerciante.

Tiveram a mesma ideia naquela tarde, caminhar pelo parque. Cada qual sozinho, com seus não-planos  e com a tarde linda de outono a trazer lembranças maravilhosas, e havia tantas que as voltas por ali seriam intermináveis.

Esbarraram-se. Não podia ser. Pensaram que se conheciam, mas não. Era amor mesmo. Ela sorriu, ele sorriu. A enfermeira dela, disfarçada de companheira até se afastou, porque aquele sorriso, independente da idade não deixava dúvidas.

Ele ofereceu um café, ela aceitou.

Sentaram por ali e não viram o vaivém frenético da cidade, muito menos a noite que chegava. Naquela mesma noite, o motorista dele parava em frente ao prédio do tradicional bairro paulistano. Ela desceu com a melhor echarpe e com o melhor olhar.

Ele saiu com um pouco de dificuldades, mas ainda muito hábil para a idade. Seguiram de mãos dadas o caminho inteiro até o restaurante. Ela quis água, ele uísque. Ela decidiu que ele escolhesse. Ele perguntou se havia alguma restrição, ela respondeu que a ausência dele. Ele corou e beijou as mãos dela.

Mal tocaram na salada com o peixe, ela tentou tomar uma taça do vinho, ele tomou um copo e meio. O piano ainda tocava, quando ele pediu a conta. Ela aceitou o convite de conhecer a casa dele a 5 km de lá.

Foi no primeiro farol que se beijaram. E o fogo da adolescência apareceu entre os dois. Eles sorriam felizes porque o amor dá vida, porque somente algo assim pode fazer doce um imprevisto, pode fazer doce uma ousadia, pode fazer doce a vida.

Ela se encantou com os livros e adorou o Matisse original na parede. Ele confessou que nada sabia de arte, mas que o quadro do quarto era o mais lindo. Ela o convidou para ir até lá e foram. De mãos dadas, ela não esperou para ver a obra, abraçou-o e o beijou como se beija aos 15 anos.

Ele retribuiu sorrindo e soube que o tempo não era mais um inimigo, era um convidado. Viram que perderam tanto tempo em tantos anos e perceberam que os planos realmente não deviam ser feitos, deveriam ser vividos.

Quando perceberam, estavam na cama, como há anos não se viam, um ao lado de outro e vice-versa. Não foi um furacão, houve certo incômodo, mas o amor transforma.
 
Há uma etapa em que os segredos devem ser necessários e ela disse "presente".

Eles estavam abraçados. Poderiam confessar várias coisas, mas preferiram o silêncio, ele realmente gostaria de falar que não tomou estímulo algum, que a natureza o deixou aceso. Mas deixou que ela levantasse e fosse ao banheiro.

Ela também queria falar o que devia, porém concordou com o não-plano, pegou a nécessaire, tirou o remédio, olhou-o bem e deveria falar, mas estragar para que aquele momento? Melhor realmente o silêncio, talvez o AZT não fosse algo muito comum em conversas de hoje em dia.

2 comentários:

  1. O AZT foi inusitado. Essas surpresas no final dos textos são demais! Bjo!

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    1. Sabe, Lu, que eu me surpreendo com elas também! Obrigado por tudo! Bjos!

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