terça-feira, 25 de novembro de 2014

PRESENTES DE GREGO

Na década de 1950, era comum haver trens-restaurante que cortavam o interior de SP. Talvez não nos seja interessante saber toda a logística, os horários ou o menu servido por lá, talvez nos seja mais interessante saber - sobre trilhos - quais narrativas podemos aproveitar para enganar o tempo.

Sabe-se lá por que havia uma rixa entre o cozinheiro e o garçom, devem ser essas coisas que carecem de uma explicação cósmica ou filosófica sobre como os santos não batiam. 

Talvez tenha sido pelo sotaque grego acentuado do garçom. Sua ascendência era clara, no entanto nem sempre aceita de modo amistoso. O cozinheiro adorava brincar com as palavras erradas do capitão. Uma resposta atravessada aqui, uma piada de mau gosto ali, e assim o chacoalhar do trem ia e vinha diariamente.

Dentre muitos fatos curiosos, um em especial era o ritual de jogar as tampinhas das garrafas às crianças no trajeto Bauru-Perdeneiras. Os 4 garçons acumulavam as tampinhas e as atiravam religiosamente todas as tardes para os sedentos pimpolhos usarem em brinquedos e tudo mais que a imaginação mais profunda permitir. 

O filho do garçom era alucinado pelas tampinhas e liderava o grupo de crianças. Naquele dia, um cliente reclamou da consistência do macarrão e o cozinheiro foi informado com o cinismo peculiar do inimigo. Não foi pelo cliente nem pelo trabalho, foi pela intenção. 

Como a vingança é maldade e não justiça, coube ao chef naquela tarde jogar as tapinhas aos meninos, não sem antes colocá-las no forno e atirá-las em brasa aos inocentes sorridentes por ali.

No dia seguinte, na viagem de volta, no exato local onde as crianças ficavam, o garçom saiu ao máximo para dar um aceno ao filho, mas se espantou ao ver somente o barranco. Mais espanto ainda e raiva ao saber o porquê do não-quórum daquela tarde.

Como a vingança é maldade e não justiça, mal sorriu aos clientes e não trocou farpas com o cozinheiro, na verdade mal se olharam naquele dia. Tentou imaginar de tudo, porém nada o atingia.

Foi então que passou perto da cozinha, ouviu a reclamação do cozinheiro, falando que os sapatos haviam molhado quando lavava o assoalho. Sorriu. Iluminou-se. Conseguiu encontrar o par e, num ímpeto de ajuda, ligou o forno no máximo e tacou-os ali.

Em minutos, o cheiro de couro tostando ficou evidente, invadiu todo o trem, causando um mal-estar horrendo e com boatos de incêndio. Não demorou para que todos soubessem a verdade, que apareceu naturalmente, como o sol num dia de verão.

Naquela noite, o garçom ficou sem emprego, o cozinheiro ficou descalço, mas o Júnior teve para ele umas dez tampinhas que o pai conseguiu guardar no bolso enquanto se despedia dos amigos. 


terça-feira, 18 de novembro de 2014

MILAGRES

E a menina sentou-se na calçada, imitando pai, porque ele o fazia com frequência, logo após mexer nas motos. Sujo de graxa, com uma bandana na cabeça, ao som de Janis Joplin. Imitava o mesmo gesto dele, milimetricamente, porque ele era tudo.

Bebia seu refrigerante como ele bebia sua cerveja. Até o mesmo movimento de passar a mão no cabelo, simulando um dia quente e cansativo ela sabia fazer. Era pós-doutorada no velho e o tinha como deus.

Nas tarde de sábado, ele a colocava na garupa e punham-se a rodar pela estrada, sem destino, apenas o barulho do motor e o vento no rosto. Ela encostava a cabeça nas costas dele e se sentia única, protegida. Aquilo era melhor que o sorvete de creme no fim do passeio.

Talvez tenha sido na saída do bar. O pai caiu, de uma vez, junto com o sorvete, que estava pela metade. Ela berrou, e os velhos de dentro saíram para acudir.

Talvez tenha sido o cigarro, 3 maços por dia, talvez tenha sido a bebida, não importava, algo deveria ser feito. Ela não titubeou, mesmo pequena, subiu na moto gigantesca, sabia tudo dela – e seguiu para o hospital mais próximo.

Lembrou-se de todas as curvas, como deitar, a velocidade certa, o tempo certo de tudo. Ninguém conseguiria explicar, mas ela chegou ao hospital e conseguiu acionar uma ambulância.

Mais uma vez, subiu na moto, sob o espanto de todos e guiou-os até o local. Ele ainda estava lá, imóvel. A equipe foi rápida. Em minutos prestava os primeiros socorros. Senão fosse pelo milagre daquela garota, que, aos 6 anos, conseguiu pilotar uma moto, outro milagre não teria acontecido e o pai não estaria vivo.

Mas milagres não acontecem sempre, era isso que ela pensava, era isso que todos pensaram e foi isso que realmente foi comentado. E era Janis Joplin que tocava naquele dia, assim que a menina chegou em casa. Ela passou a tarde inteira sozinha, tentando subir na moto.    

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O SABOR DA CONQUISTA

E voltava a criança feliz pelos doces que conseguiu angariando com o Halloween importado dos EUA. Carinha de anjo, vestido de bruxa e olhinhos ternos, precisou de poucas palavras para tal, a figura já derretia o coração dos moradores.

Não precisou de ninguém, ao pedir balas e afins à mãe, ouviu que deveria lutar por isso. Depois de umas horas inconformada, perguntou-se por que não. E decidiu seguir em frente. Pegou a fantasia de bruxa do último sábado, pintou os lábios de preto e seguiu em frente. 

Os olhinhos azuis brilhavam a cada conquista. Balas, chocolates, bolachas e outras iguarias que fariam qualquer abelha segui-la por dias, por meses, tanto foram os sucessos devolvidos ao talento nato da garota.

E agora a menina voltava com mais do que doces, antes de saborear cada guloseima, sentiu que o sabor da conquista vale mais do que qualquer chocolate. Já eram 17h, quando decidiu sentar na calçada e espalhar tudo e contabilizar cada troféu.

As balas coloridas, as bolachas recheadas e os chocolates brilhantes estavam por ali. Ela os organizou  por tipo e em fileiras. Foram 30 balas, três pacotes de bolachas e 10 tabletes de chocolate, sendo dois brancos.

Talvez tenham sido as cores, talvez tenham sido os cheiros, mas ela não percebeu que uma outra criança se aproximava. Tímida, pés sujos, sem água no corpo mas com ela na boca. Os olhinhos daquele menino de uns 4 anos no máximo eram de um hipnotismo só.

Mal se aproximava, talvez o medo o barrasse, talvez a fome o convidasse. Ele deve ter pensado "Nossa, um de cada já estaria bom". A menina deve ter pensado: "Há o suficiente para ambos".

Ele não podia se aproximar mais, porque a garota agora o olhava, sem expressão de medo ou de asco, muito menos de convite. Apenas olhava. Ele trazia aquele olhar  fácil que somente a fome é capaz de contornar.

Ela parou, baixou os olhos em tudo e recolheu de volta ao saco. Levantou-se e sorriu ao menino enquanto andava até ele, que recuou um dois passos antes de ficar mais próxima. Ele alcançava quase o queixo da menina. Ela parou, olhou-o de cima abaixo, sorriu de novo, ele sorriu de volta.

Minutos depois, ela chegava em casa. A mãe perguntara onde a menina estivera e orgulhou-se ao saber o que tinha feito.

A 300 metros de lá, uma campainha soou, a moradora abriu:

- Doce ou travessura?

A fantasia estava grande, mas ainda dava para ver os pés sujos...

terça-feira, 11 de novembro de 2014

ESQUEÇA DE ESPERAR

Não se lembrava de quando foi a primeira vez que a ansiedade apareceu, mas lembrava-se, com certeza, da primeira vez que aprendeu a ter paciência. Certa vez o avô combinou de buscar o neto para uma temporada numa fazenda. Talvez tenha sido a mesma época em que escutou "janeiro" na vida.  

Quase não dormiu de alegria esperando aquele janeiro chegar, mesmo que 4 deles já houvessem passado. No dia seguinte, ligou para o avô e perguntou quando seria janeiro. Foi quando ouviu pela primeira vez do avô:

- Sempre que você esperar por algo, não espere, porque esse algo virá no momento certo. Esqueça de esperar.

Era difícil esquecer aquilo. Os dias passavam e janeiro nunca vinha. Houve mais duas ligações e o menino teve de ouvir, da última vez, repetiu sorrindo o que o avô dissera. E as brincadeiras vieram, outras horas apareceram e o menino esqueceu. Até que um dia, pela manhã, o avô estava na porta, estendendo a mão e dizendo: "Hora de se lembrar".

E o garoto sorriu o mais belo sorriso e percebeu que o tempo voara, que janeiros não demoravam tanto assim. Ao dizer isso ao avô, escutou que esquecer de esperar sempre adiantava o momento certo, sempre estreitava a felicidade e dava a ela mais sabor e alegria.

Anos depois, a primeira namorada decidiu fazer um intercâmbio na Europa e voltaria 8 meses depois. Sofreu como ninguém. Estava amuado no canto, quando o avô apareceu e soube da história. O rapaz, que olhava pela janela, como se a trouxesse de volta com os olhos, mal reparou na mão rugosa sobre seus ombros. Ele tentou devolver um sorriso bom, mas devolveu um sorriso amarelo. 

Ele sabia o que o avô diria, mas não escutou coisa alguma, porque o avô sabia que o conselho estava no coração do rapaz, e os dois permaneceram em silêncio. Não o mesmo silêncio de meses depois, quando viu o rapaz saltitante passar pela porta trazendo na mão a mulher de sua vida. Ele parou em frente ao avô e sorriu com o conselho nos lábios.

Não nos cabe aqui saber quanto tempo se passou. Cabe saber que o telefone tocou, e o homem agora o atendia com o coração na boca, porque sabia do que se tratava. Em minutos, ele estava no hospital, esperando para ver o avô na UTI. Os 92 anos já não eram encorajadores. Sabia que todas as lições haviam sido passadas e o neto foi até lá para se despedir.

Quando entrou, viu-o desacordado. Apenas aproximou-se dele e o beijou na testa. Antes de sair, chegou perto do ouvido do avô e disse que esperaria que ele ensinasse a todos no céu. Chorou um choro seco de som, engoliu o egoísmo e seguiu saudoso e orgulhoso do melhor professor que teve. Que decididamente já esperaria por isso.

Quase gelou quando o telefone soou no meio da madrugada. Olhou para a esposa, que trazia as lágrimas das saudades e do companheirismo. Ele não quis atender, mas sabia que devia, que era o momento certo. Por segundos, ficou orgulhoso, porque esqueceu de esperar pela morte do avô. Não teve tempo de falar, apenas escutou o que tinha pra escutar naquele momento: "Esqueça de esperar".

Chovia muito e o sono veio leve, porque havia alguém ainda de olhos abertos, porque algo sempre vem no momento certo.


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

OS CARENTES

O cara adorava aquele carro. Era sua paixão. Mais que gente, mais que a si mesmo, aquele Fusca azul, 1977, com tudo original, representava todos os fetiches, desejos e sonhos do homem.

Não saía com ele, mas todo sábado tinha o ritual da manhã. Ele o lavava e o polia, religiosamente, as 3 horas do dia eram de deleito e de entrega. O amor incondicional. Colocava as fitas K7 de cromo para tocar. Lavava tapetes, aspirava o pó que nunca existia, passava álcool nos vidros, nos bancos, borrifava Gleyde por dentro.

Só depois saía pelo bairro, como recompensa a si mesmo, como troféu a si mesmo. Colocava uns cinco litros de gasolina e o guardava para o ritual da semana que vem.

Nem mesmo o importado japonês tirava o brilho daquela relíquia.

Fato é que um primo do outro lado da cidade, amigão de infância e carente desde então, pedia há meses pela presença do rapaz. Um abraço, um papo etc. Comissário de bordo, eram raras as chances de se verem.

E foi num sábado que a tia ligou chorando, dizendo que o filho estava muito mal e que só a família, o primo, poderia dar um apoio a ele. O problema é que isso o atrasou no trato do Fusca, mas maior ainda foi a mãe endossando o protocolo familiar.

Justamente no dia seguinte à ida do japonês à revisão. O azulzinho restava para que o remorso não falasse alto. A muito custo, decidiu adiar o ritual e seguir com o carro os 20 km que separavam os dois.

Mas, antes, teve de parar para se garantir. Como o carro não tinha seguro e tudo que se ama é natural que se proteja, o primo sorriu a cântaros quando o viu chegando e teve de esperar uns 15 minutos, enquanto ele embalava o carro com plástico bolha, uma dezena de voltas e passava correntes nas portas fechando-as com cadeados de Alcatraz.

Daí sim seria todo ouvidos e abraços. E foi o que aconteceu, ouviu medos, problemas, deu conselhos, adorou o café com o bolo de fubá, riram da infância, foram 4 horas muito agradáveis.

Horas essas que seriam lindas, se não tivesse visto o que viu assim que deixou a porta de entrada. No lugar das rodas, havia pilhas de listas telefônicas velhas. Sim, todas as 4 rodas haviam sido levadas.

Talvez uma retaliação às correntes nas portas.

O sorriso sumiu. A alegria decolou. Melhor não detalhar tudo, problemas em família todos têm. E, com aquele acontecimento, o dono do Fusca soube duas coisas nessa vida: a primeira, que havia uma loja especializada em rodas de Fusca dos anos 70, idênticas; e a segunda, quem precisa de abraço não espera, vai até ele!