terça-feira, 22 de março de 2016

PALAVRAS CRUZADAS

Há pessoas pelo mundo que conseguem esconder a humanidade atrás de títulos. Não é comum ver pais, professores, artistas e mendigos como apenas pais, professores, artistas e mendigos? Sempre tive essa visão e não sei se concordariam comigo.

Muitas vezes, para não falar sempre, não enxergamos além do que são. Quando como se descobre como se nasce, a primeira resposta que dizemos é: “Meus pais não fizeram isso”. Ou quando se encontra com um professor no mercado, o espanto é imediato – vivo isso sempre.

Ou ainda, quando um artista é visto fazendo qualquer outra coisa que não o trabalho dele, o julgamento é instantâneo. E por último – propositadamente – porque vivenciei isso dias desses, quando se vê um mendigo que não mendigando o choque é iminente.

Estava em uma das minhas caminhadas pelo bairro. Parei na esquina – aliás um dia falarei sobre essas esquinas, que me renderão relatos memoráveis – e vi um morador de rua com uma caneta escrevendo. Fico envergonhado de dizer que me pareceu bizarro aquilo, porém tive de tirar a capa para entender que ali havia – por que não? – um ser humano.

Não sei por quanto tempo fiquei olhando a ele, tentei ver o que poderia estar escrito ali e foi então que percebi que não escrevia, fazia palavras cruzadas. De modo ingênuo – seja lá qual sentimento me bateu – eu sorri, feliz, um sorriso imbecil.

Ele percebeu minha curiosidade, olhou para mim e devolveu o sorriso. Eu me senti mais feliz ainda e não me perguntem por quê. Meu desejo, agora que a curiosidade era tamanha, saber como estava o desempenho dele, se realmente ele levava a sério ou apenas um devaneio para abstrair a miséria que seguia seus passos.

O cachorro dele, sempre um cachorro, abanou o rabo para mim – foi um convite, aproximei-me dos dois agachei para brincar com o pulguento sem antes pedir permissão ao dono, que consentiu. Apoiei minha mão na cabeça do bicho e olhei rapidamente à cruzadas, a maioria preenchida.

Pelo pouco que vi, todas as palavras faziam sentido, horizontais e verticais se encaixavam perfeitamente. Depois de duas lambidas do fiel companheiro, eu me levantei, disse um parabéns a ele e segui, feliz e envergonhado do meu julgamento.

Assim que me levantei, ele perguntou:

- Opinião formada antecipadamente sem maior ponderação, 11 letras...

Não tive condições de pensar naquele momento, porque a resposta que ele acabava de me dar podava qualquer capacidade de se concatenar algo. Respondi que nada me vinha à mente, sorri, dei um tchau e segui.

Confesso que não escutei mais as músicas que tocavam no meu ipod e não tinha certeza se era por causa da charada ou, posteriormente, por causa das vezes que tive de contar quantas letras poderia haver na resposta certa, na palavra certa.

Sim, preconceito tem 11 letras.

terça-feira, 8 de março de 2016

MULHER MARAVILHA

Quando viu a colega de trabalho recebendo flores do noivo no trabalho, ela teve uma pontinha de inveja. Talvez a maturidade pudesse ser viável aqui, reconhecer que também amaria aquilo não foi indigno, mas verdadeiro. E percebeu que não importa o que se sinta, senão o peso que se coloca nesse sentimento.

Decidiu aliviar a carga da inveja e alimentar a do final feliz. Voltou para a mesa tentando não pensar que tivera somente relacionamentos frustrados, que uns tinham mais, porém valorizavam menos ou o inverso. Tentou imaginar um futuro melhor e, na hora do almoço, driblou os colegas, pegou seu ipod e decidiu esticar a calçada e fazer as unhas.

Empolgou-se e arrumou o cabelo. Comeu duas barrinhas e voltou para o trabalho. O comentário foi geral, havia um amor novo. Mais de dois anos de empresa, e era a primeira vez que se mostrava assim. Apareceram dois bombons em sua mesa, e, se bobear, até as flores da amiga murchavam um pouco.

A tarde passou sem maiores atropelos. Fuçaram nas redes sociais e nenhuma pista. Aquela produção toda deveria ter um propósito, mas quem era seria esse propósito. Na hora do café, duas até tentaram algo, nada conseguiram.

Na hora da saída, até espreitaram jurando que alguém apareceria. Não. Ela seguiu só até o carro e só seguiu até em casa.

Entrou, abriu a porta e escutou o silêncio que a recebia natural e timidamente. Ignorou a solidão. Ligou o som e abriu a geladeira. Abriu uma latinha de cerveja e dançou o máximo que seu fôlego conseguiu. Não ligou que o cabelo desmanchasse, esperou que a endorfina aparecesse.

Foi ao quarto. Despiu-se do modo mais provocante que sabia. Não se convenceu. Enxergou-se com  a lingerie preta. Virou de lado, as celulites não a atacaram. Passou a mão pela perna e sorriu com o tom do esmalte, acertou em algo.

O celular tocou: mensagem.

Ela correu, leu, sorriu e respondeu. De repente, não se sentiu mais sozinha. Em meia hora, o interfone toca. Ela manda a visita subir. A porta se abre, e se abraçam fortemente.

Há que se ter coragem para encarar a realidade, há que se ter força para admirar alguém, há que se ter carisma para servir de exemplo - tanto como para confessar que é duro receber flores de si mesma.