quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

NOTÍCIAS DO OTAVINHO

E todos os meninos lutavam para serem o príncipe da peça. Segundo o Otavinho, era garantido o beijo na última cena. E a princesa fazia jus ao título, olhos vívidos, bochechas atrevidas e um sorriso iluminado.

Tudo bem que os 9 anos de todos de lá não poderiam ser capazes de imaginar o sabor disso tudo. Mas se os atores beijavam pra valer, valia o ensaio após as aulas.

Até mesmo o Otavinho, com seus óculos e pernas grossos sonhavam dia e noite para a audição do papel. Tinham de declamar uma poesia simples, por não mais que 1 minuto. Havia cerca de 28 meninos, babando e sedentos por tudo aquilo.

De acordo com a conta deles, seriam duas semanas de ensaio, ou seja, duas semanas beijando a Juliana era melhor que qualquer 10 em Matemática. Houve quem entrasse virando estrela. Houve quem gaguejasse, houve até quem nem aparecesse.

E houve o ideal. Um Clark Gable mirim, educado, pontual. Uma impostação de voz absurdamente perfeita. Uma dicção de fazer inveja. Sim, ele de novo, o Otavinho o odiava, os meninos o odiavam, e as meninas eram perdidamente loucas por ele. Alessandro Dias, uma lenda.

Diziam que ninguém tinha o cabelo mais bem arrumado que ele. Ninguém tinha os olhos verdes mais vivos que ele. 10 em tudo. Estupendo lutador de judô e um centroavante rápido demais. Os professores o adoravam. E agora ele se revelava um ator de primeira. Declamou a poesia cantando, dançando, um artista completo.

Não tinha quase amigos. Diziam as más línguas que o judô era um convite a tentá-lo colocar no tatame, porém ninguém ainda conseguiu. O menino cheirava a hortelã entre as várias balas. Cheirava bem mesmo depois das corridas pela quadra: único.

Menos da metade dos meninos assumiu o papel, o Otavinho era o sapo da peça. Que se tornaria príncipe e quem beijaria Juliana. De uma forma ou outra, Alessandro e o sapo tinham um elo. Haveria a evolução, e temos a certeza de que o rechonchudo míope sonhou em virar aquela lenda popular noites e noites.

Se reconfortava, a professora de artes aconselhou que o beijo fosse dado apenas no dia da apresentação. Os ensaios serviam fielmente a tudo, exceto ao beijo, que acontecia de longe. Os sorrisos de todos estavam lá. Exceto do príncipe, que tinha de engolir apenas as balas. Diziam que ele até sabia beijar de língua, por mais que somente a dele tivesse tocado gomas.

Mas como a fama do deus-menino era tamanha, criam todos que ele realmente saberia dar e ensinar aos demais. Noite de apresentação. Teatro lotado. Cenário impecável, atropelos na coxia. Diziam que o príncipe cercava a princesa em sussurros e assédios. Até redobrara a carga de hortelã para a noite.

Os demais se esqueciam do beijo e pensavam apenas em fazer lindo aos pais e convidados. Um ato antes do beijo. O par se encontrou na coxia. As balas haviam acabado, e Juliana sentiu o cheiro da verdade: decididamente, o menino era Clark Gable, que tinha fama de mau hálito, endossado pelo único defeito do príncipe.

Enojada com a cena seguinte, ela desviou-se do sorriso sacana do menino, invadiu o palco e lascou um beijo longo e terno nos doces lábios de Otavinho, que sentiu embaçar as lentes e não fechou os olhos para ver se realmente era aquilo que ocorria. E foi.

Os aplausos não foram apenas na plateia, os meninos de toda a escola ovacionaram o novo Don Juan, que não soube como reagir após isso. Dizem que Alessandro deu um chilique, tirou a roupa e não quis entrar no palco.

Dizem que Otavinho assumiu o posto e que a roupa não fechou direito e as calças caíram durante a apresentação. Porém ser pego de calças na mão já era uma experiência rotineira ao sapo mais sortudo do mundo.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

TRAIÇÃO?

Ninguém nasce assassino e todos são capazes de matar, clichê forte para iniciar a história de 3 pessoas. Não cabem aqui nomes, fato é que marido, esposa e o amante precisam apenas dos títulos para endossar uma velha e repetida narração envolvendo ciúmes, brigas, sonhos e tragédias.

4 anos de casamento e a rotina aparecia em todos os cômodos, era mais presente que o casal neles. Sentava à mesa, lia o jornal, assistia à novela, dormia entre ambos. Até mesmo na escrivaninha da arma ela já esteve, um suicídio seria ótimo, mas não seria o caso por enquanto.

Ele, profissional de vendas, ela, arquiteta com poucos projetos. Ao menos se o trabalho lhe fosse sombra, talvez a moça não teria se inscrito num curso de francês, não teria aprendido a falar “eu te amo” em outra língua, a mesma língua que o rapaz de 25 anos também aprendia a amar.

Formando da segunda faculdade, ainda tinha a pretensão de conseguir pagar uma conta de luz à mãe, viúva há anos do marido coronel.

Talvez tenha sido no primeiro dia ou até mesmo na segunda semana, quando aceitou o café depois da aula. Com a desculpa de retomar os verbos, eles passaram a se ver com frequência e se viram envolvidos, porque se viam mais que as duas vezes semanais.

Ele pegou na mão dela, ela não recuou, mesmo que a dele lhe tocasse a aliança. Um beijo de despedida no canto da boca, troca de mensagens durante a aula e um beijo fervoroso após isso. No dia seguinte, eles estavam entregues, ela como há tempos e ele como nunca.

A paixão e o perigo cresciam, porque projetos imaginários começaram a aparecer de repente. O celular vivia na bolsa e no silencioso, e as idas ao banheiro eram mais frequentes, sempre com o aparelho escondido.

Um mês, dois meses. Até que numa tarde de chuva, ele aparece de surpresa na casa dela. O marido num cliente do outro lado da cidade, porque ela falara que sairia também. E, pela intensidade dos pingos, ele demoraria mais que de costume. Ela não recuou, pelo contrário abriu mais do que as portas, e eles transaram em todos os cômodos, deixando a monotonia sem ambiente.

A chuva descia forte, e ambos estavam deitados na cama do casal. Com a paz reinando, o sono foi inevitável, e dormiram profundamente. Não escutaram a porta se abrir. Não ouviram os passos na escada. Não escutaram coisa alguma.

O marido entrou e viu os dois deitados, no mesmo instante em que a esposa acordava assustada e, ainda zonza e tensa, via que a moça já sem o sutiã deixava escapar um “puta que pariu” inconfundível pelo corredor. O rapaz não acordou e foi a vez de o marido recuar.

O divórcio foi amigável e, por precaução e segurança, ninguém quis ficar com a arma, mas a escrivaninha continua ali, ocupando o lugar da monotonia.   

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

CRAQUE DA ÁLGEBRA

A sala dos professores sempre mostra uma espécie de confessionário. Seja para coisas boas, ruins, verdadeiras ou às vezes lendas. Cabe aqui sua leitura e bom senso para saber em qual avaliação a narração que seguirá vai se encaixar.

O cara era um gênio da matemática. Daqueles que os alunos adoram e temem ao mesmo tempo. Imenso em tamanho, didática e conhecimento, sempre era marcante vê-lo em sala.

Com seus quase 190 quilos, distribuídos em 1,80, o professor era uma figura pitoresca em tudo. Corria lenda de que, quando jovem, foi quase um jogador de futebol profissional. Mas, como as lendas entre professores eram muito latentes, a maioria preferia tomar como sátira.

E foi nesse embalo que os dias corriam e as aulas também. E num belo dia, houve quem decidiu colocar isso em xeque. Sem que ninguém soubesse, o moleque entrou na aula como uma bola na mala. E durante a explicação, no momento certo, colocaria tudo à prova.

Talvez tenha sido durante uma aula de álgebra:

- Professor, para o senhor isso é mais fácil que jogar futebol, né?

Embalados pelas histórias dele e de todos os professores, a sala riu junto com o mestre, que emendou:

- Futebol sempre é mais fácil que álgebra.

- Prove-nos!

E tirou a bola para aplausos de todos. Até quem dormia acordou, embalado pelo desafio.

- Dez embaixadas já me convenceriam.

O professor sorriu e falou:

- Embaixadas? Isso é pra amador. Jogue a bola aqui.

O moleque jogou, e a matada no peito, quase em câmera lenta e o domínio com o pé esquerdo já serviriam de prova. A sala inteira aplaudiu com urros e assobios. O matemático pediu a palavra:

- Vamos fazer um trato. Você vai ficar em pé e erguer a mão direita. Eu vou colocar, daqui, a bola na sua mão, mas não vale se mexer. Você ficará imóvel. Depois que eu fizer isso, você promete que vai gabaritar Matemática no vestibular.

- E se o senhor não conseguir?

O mestre sorriu e emendou:

- Eu venho na próxima aula só de sunga, então acho que todos estão torcendo para que eu não erre...

Mais aplausos e o desafio estava lançado. O moleque se levantou e fez o que o professor pediu. Silêncio e tensão.

Pela primeira vez na vida, ele foi orgulho na família, errou apenas uma questão de Matemática no vestibular e preferiu trocar o autógrafo do centroavante do time de coração na camiseta do clube pela assinatura do craque da álgebra na bola que pousou perfeita e caprichosamente em sua mão direita.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

C'EST LA MERD

O casal recém-saído da adolescência. Ele, o mesmo irmão dos dois que riram na loja. Ela, criada sem pai, pela mãe, as tias e a avó. Se uma mulher pode provocar um tufão, imaginem que se pode ter quando 6 mulheres aparecem na sua vida. Naquele sábado à noite seria o dia em que a menina, a sobrinha e a neta preferida, levaria a razão do brilho daquele olhar para jantar. Mimada por todas e pelo namorado.

Mesmo que não quisesse, teve de aceitar o jantar regado à rabada e polenta. Pergunta: quem faz rabada e polenta para um namorado novo? E naquele dia, o cara acordou indisposto, disenteria iminente. Festa iminente. Desastre iminente. Como lançar o primeiro NÃO? E não era um não qualquer, seria um não desastroso mesmo, ou seja, o desastre não poderia ser pior. Poderia sim.

O mais engraçado é que anos depois isso tudo cai por terra. Sem chances, ele aceitou e, quando disse sim, abriu uma porta inesquecível na relação com as mulheres. Saber dizer não também é importante, entretanto mais importante é saber quando e como fazer isso. Tentou de tudo durante o dia, maçã, maisena com limão etc.

A falsa impressão de tudo estável seguiu por 3 horas sem nada. Foi recebido por todas no portão. Assediado, apalpado. E assim estava na mesa, com aquele cheiro aprazível de rabada. Engraçado, palavra sugestiva aqui: rabada. Não se lembra de quando aconteceu, mas aquela sensação estável cedeu, talvez mesmo antes da segunda garfada.

Havia um lavabo entre a sala e a cozinha, um lavabo com respiração forçada, aquela espécie de exaustor. A timidez seria maior, porque ir ao banheiro logo no início da relação é um tabu. Pois no início nenhum dos dois faz o um ou o dois. E tudo misturado. Tudo novo. 

E lá se foi. Fez o que tinha de fazer. Até se orgulhou da rapidez com que terminara. Mas o clichê do horror: não havia papel higiênico. Horror. Havia nada. Nem toalha, parecia que o local era tudo, menos um lavabo. Horror. E o nome dele invocado a todo instante. O que era invocado lá dentro era melhor não ser falado. Não havia bidê. Mas um lavabo dispõe de um lavatório. Sim. Havia um. Menos horror. A atitude talvez não tenha sido a melhor. A altura não era suficiente. Ele fez o improvável. Sentou-se. Sim. Sentou-se no lavatório. Talvez o que viera em seguida não seja surpresa.

A água escorrendo por debaixo da porta, logo após do estrondo imenso que aconteceu lá dentro. Além do rabo sujo, tinha os pés molhados e tinha de sair de novo para exibir a vergonha. Sim. Queria ser como o exterminador, se fosse feito de mercúrio líquido, esvair-se-ia pelo chão e se formaria do lado de fora. Melhor colocar um saco na cabeça e sair. O namoro não durou muito, mas aquela cena sim foi antológica.

A duras penas, ele teve de aprender uma forte e decisiva lição: os nãos também são importantes.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

AMIZADE OU PRESTÍGIO?


Há uma diferença muito básica e tênue entre amizade e prestígio.

Amigos trocam ideias experiências, sonhos e planos. Prestígio te fala sobre as próprias ideias, experiências, sonhos e planos.

Amigos contam a alegria pela qual estão passando. Prestígio ratifica que a alegria alheia é menor que a própria.

Amigos contam a tristeza pela qual estão passando. Prestígio ratifica que a dor alheia é menor que a própria.

Quando os amigos somem, querem saber um do outro. Quando o prestígio some, faz questão de atualizar a própria vida.

Amigos compartilham sucessos alheios. Prestígio só compartilha o próprio.

Amigos se convidam a todo instante. Prestígio numa data específica, e ai de o prestígio não ter plateia.

Amigos acentuam o nome um do outro. Prestígio acentua o próprio.

Amigos não esquecem. Prestígio tem agenda.

E você? Tem mais amigos ou mais prestígio?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

OUÇA SEMPRE SUA INTUIÇÃO

Dentre todos os clichês sobre relações humanas, genro e sogra estão num patamar quase que intocável. Não tenho aqui o intuito de endossar os fatos ou as lendas, mas apareço com a apenas a intenção de dividir histórias.

O casal estava junto há 2 anos. Estabilizados com as contas da festa de casamento a lua de mel e tudo que vem com o evento, decidiram reformar o apartamento da avó dele, presente do filho. Os sogros dela moravam no interior. A mãe dela, no mesmo bairro.

Como todas as economias iriam para cimentos, azulejos e afins, a coerência pedia que fossem para a casa da mãe dela, que morava sozinha num  sobrado de 4 quartos.

Ele não queria ir.

A moça insistiu e provou, de modo correto e sensato, porque era o correto e o sensato a serem feitos – que a única solução a tudo seriam os 4 meses na casa da mãe. Mulher jovem ainda, 45 anos, viúva de um militar de alta patente, amante de livros e cinema.

Ele não queria ir.

Não se carece de muita ciência ou curiosidade para saber o resultado da investida. Levaram dois dias para se ajeitarem em um dos quartos, com as roupas e algo mais.

Foram recebidos com o sorriso largo, simpático e doce da sogra. Talvez fosse loucura da mente dele, talvez apenas quisesse endossar o relacionamento entre genro e sogra ou talvez fosse apenas um capricho, algo não estava certo.

Ele não queria ir.

Na primeira semana, ele tentava ao máximo evitar a sogra pelos corredores ou na volta do trabalho. Sabia que ela saía muito e tentava não esbarrar com ela sem ser nos fins de semana. Conseguiu.

Os almoços eram inevitáveis, mas teve de concordar com a esposa de que tudo estava saindo bem. Muito bem. Os boatos dos amantes da mulher pelo bairro não se concretizaram, e o casal conseguia evitar e não comprovar isso

Num fim de tarde, a filha, ainda estagiária e recém-formada, chegou mais cedo e escutou os suspiros da mãe no quarto. Desejou morrer com isso, encarar que a mãe era gente também deve ser uma das piores realidades do mundo. Mas era.

Ela tinha de subir e escutou do meio da escada os urros. Decidiu voltar e seguir pra cozinha. E esperaria por lá até as coisas se acalmarem ou se dissiparem. Ouviu a porta do quarto abrir e a mãe falar: “Não, vá você, desça você e me traga aquele vinho”.

Uma voz abafada não foi ouvida direito, mas estava claro que o impasse de quem desceria era evidente. “Não, querido, desça você, vou ao banho e me traga aquele vinho!”.

O impasse estava feito, os passos foram rápidos. Se ela saísse da cozinha, cruzaria com o cara no meio da sala ou na ponta da escada. Decidiu ficar lá e dizer um “boa tarde” despretensioso.

E se encerra aqui mais uma história pela vergonha alheia. Era fato, ele avisou, ele não queria ir.