segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

O VESTIDO VERMELHO - uma história de sonhos


Quando a moça viu aquele vestido, percebeu que era a coisa mais linda já vista no seu mundo. Ficou paralisada, preferiu perder os dois ônibus, porque aquilo compensava qualquer outro assunto. Não se interessou em saber quanto tempo ficou ali parada, deixou perder-se em todos os lugares que pudesse desfilar com ele.

Talvez nem soubesse se existiam tantos lugares assim, porém sabia que não era lá. Tentou encaixar ambiente e música, conseguiu nada que pudesse ser coerente àquelas cores, àquela forma, àquele brilho.

E toda vez, depois de um dia de faxina, a caminho de casa, ela parava em frente à loja e ficava 20, 30 minutos olhando aquele vestido vermelho. Inebriada. Tomada de um regozijo diário. Mais que o descanso, mais que o sono, aquele era seu porto seguro, aquilo era seu lar.

E o mundo à sua volta começou a perceber o vislumbre da diarista.

As pessoas do ponto de ônibus, o carteiro, o dono da banca de jornal e, claro, as vendedoras e o dono da loja. Tanto que mudavam semanalmente a vitrine, no entanto sempre deixando à vista aquele vestido vermelho.

Numa quinta-feira chuvosa, como de costume, ela parou em frente à loja, o dono apareceu de surpresa e convidou-a a entrar. Talvez tenha sido a única forma de tirá-la dali. E já que decidiram colocá-la no mundo real, por que não fazê-la entrar no sonho?

Mal sabia o que responder quando foi convidada a entrar no vermelho, sim, vestir-se de todos os sons, lugares e cores por que passava há semanas. Não creu que teria isso com ela, não creu que sua pele, à base de creme Nívea, pudesse tocar superfícies jamais imaginadas.

Ao sentir aquilo deslizar pelo seu corpo não soube descrever. Literalmente, se não conhecesse tantos lugares ou músicas que pudessem se encaixar naquele vestido, teve a certeza de que também todas as palavras que sabia não poderiam expressar a emoção que sentia.

Quando se virou ao espelho, os olhos não poderiam mostrar algo mais lindo, algo mais perfeito. O rosto de criança em frente ao carrossel era nada perto daquilo. Choravam as vendedoras, chorava o dono da banca, como também o carteiro e todos do ponto de ônibus, todos estavam ao redor dela.

Ela começou a desfilar pela loja, abriram um corredor para que passasse e levasse consigo todos os sonhos que já sonhou nessa vida, ainda que poucos, entretanto realizados. Sabia que tinha de ficar nele, sabia. E foi o que decidiu fazer.

Não importava quanto tinha na carteira, não mediu qual seria o resultado daquilo que decidiu tomar pra si, não quis divisar quais seriam as consequências. Tomou fôlego, pegou a bolsa e saiu em disparada pela loja rua afora. Como um raio. Um raio vermelho. Deixou as roupas antigas por lá...

Chovia muito, e todos viram um sonho virar a esquina, vermelho, e com um sorriso contagiante. E o dono não quis aceitar o rateio que o carteiro sugeriu, a dona do vestido já  otinha financiado há semanas, diariamente, um jeito de ser feliz.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL, PAI

Meu pai sempre foi um homem de poucas palavras. Era o tipo que só falava o necessário. Em determinada época, cheguei a questionar a ideia de contar quantas ele proferiria num dia. Ora, se dizem que temos dois ouvidos e uma boca para ouvir mais do que falar, o cara era o exemplo típico. 

Mesmo assim, com o número exato delas, eram notórias suas predileções. A família, o Palmeiras, os boleros e o Natal. Sim, o Natal. Ele se tornava criança de novo, adorava o clima, mesmo não sendo um devoto fervoroso de histórias bíblicas, ele preferia encarar as luzes e os enfeites como algo mágico.

Em dezembro, como namorados, ele tomava a mão da minha mãe e a levava - na verdade levava a si mesmo - pelas ruas e shoppings de SP para ficar quieto ainda mais. Sim, ele curtia calado cada luz a piscar em seus olhos castanho-esverdeados. Nem isso o cara dividia com ninguém.

As noites de 24 de dezembro traziam suas origens. Era comum irmos a Rio Claro, onde ele, irmão de 5 meninas, e por que não pai delas - e o foi por muito tempo -, se soltava e empatava os lábios com os ouvidos, muitas vezes até ganhava. O riso era mais solto e as palavras também.

Lembro que, nas manhãs das viagens, ele - como sempre - e isso era uma das muitas coisas que eu admirava nele - nos acordava feliz e saltitante como uma criança que vai ao piquenique. E ele ia. O Natal sempre foi algo diferente.

Quando não viajávamos, passávamos em casa. E, sempre quando isso acontecia, era seu desejo falar algumas palavras em agradecimento pela presença de todos. O ritual era o mesmo. Ele pedia a palavra e pedia para que elas fossem embaladas por NOITE FELIZ. 

A primeira vez que isso aconteceu, ele não conseguiu proferir uma palavra que fosse. Os acordes menores e tristes da melodia natalina calavam-no mais ainda, e as lágrimas vinham sem vergonha alguma, calando o que desejava dizer.  E assim se repetia, nos natais seguintes. O ritual era o mesmo. Ele pedia, eu e meus irmãos sabíamos que ele não falaria, que choraria depois das primeiras sílabas e que minha mãe embalaria o lamento.

Isso até virou piada entre nós. Mesmo dizendo a ele "Pai, pôr NOITE FELIZ para quê? O senhor vai chorar em segundos!", o cara não se emendava. Não sei se cada vez era um desafio a ser vencido ou se somente aquilo o fazia lembrar dos anos difíceis no interior e como venceu, construindo uma casa e uma família, que adorava bajulá-lo ao extremo.

Sim, os 3 filhos viviam em torno dele. Minha mãe fazia os eventos para e por ele. E assim ele era feliz. Meu pai se foi em 2007 e o Natal nunca mais será o mesmo, porque, se Papai Noel combina com criança, a nossa não está mais conosco. E, de tão amado que é, conseguiu nos deixar um legado eterno: o de ficarmos quietos e sem palavras nas noites de dezembro. 

Feliz Natal, sr. Ary.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

OS EVENTOS NA AGENDA

Mateus adorava dezembro. Adorava as decorações de natal, o clima de festa, o corre-corre desenfreado dos atrasados, o forfé intempestivo e intermitente das ruas, das lojas. Seu humor mudava. Naquele ano, ele resolveu fazer diferente, decidiu deixar a solidão de anos de lado e fazer as comemorações natalinas em sua casa.

Remexeu em suas redes sociais, e-mails e contatos do whatsapp. Respondeu a mensagens não respondidas e fez o convite. Comentou fotos em que fora marcado e fez o convite. Finalmente aceitou amizades há meses à sua espera e fez o convite. Pelas contas, umas 30 pessoas , entre familiares e amigos, foram convidadas.

Elaborou com perfeição a distribuição de tudo e pediu que confirmassem a presença até uma semana antes do evento. Estava feliz, sentiu-se diferente, tinha sido um ano bom, fora promovido, comprara um novo apartamento, trocara de carro, tinha coisas a dividir e estava disposto a escutar.

E Mateus, de tão ausente, sentiu-se culpado, nada melhor que o Natal para reatar amores antigos. Duas semanas depois, alguns confirmaram que não iriam, tinham outros planos, no entanto mais da metade ainda não havia se pronunciado.

Tinha uns 10 dez dias ainda para obter êxito em sua intenção. Porém algumas mensagens não foram respondidas, mesmo nas fotos em que fora marcado e não se conformava com o silêncio de todos. Logo naquele ano, em que tinha tanto a falar e a dividir. Ficou decepcionado, revoltado, fez-se de vítima e passou o dia 24 de dezembro assistindo a um filme antigo qualquer.

Mateus ainda não sabe que o protocolo fora cumprido e também que, ainda que Cristo opere milagres, seria injusto demais jogar a Ele responsabilidades como aquela. Talvez na Páscoa, quem sabe, uma nova tentativa, um novo convite, mas isto o homem deixaria para quando abril se aproximasse. 

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

TALENTOSA

A filha de um ano e meio estava com os pais na fila do caixa do supermercado, quando uma senhora gentil sorriu a ela, que devolveu o gracejo sem cerimônias. A senhora perguntou aos pais o que a garotinha sabia fazer. Sem entenderem a pergunta, pediram para a senhora repeti-la. E ela foi mais explícita, dizendo que muitas respondem a estímulos, do tipo "como faz o gatinho?" ou "como faz o porquinho?" e assim por diante.

Os pais estranharam e ficaram sem ação, e a senhora continuava a sorrir para a menina, que arregalou aquele olhar negro e profundo e piscou com um deles sorrindo. A senhora se entusiasmou e disse "Ah, você sabe piscar?" e começou a piscar desenfreadamente para a garota. 

A pequena, vendo todo aquele espetáculo, fora categórica, pegou os óculos escuros da mãe e ofereceu à senhora, que achou o máximo aquela iniciativa, pôs os óculos e continuou as micagens. A garota esticou os bracinhos, pegou os óculos de volta e fora ela agora quem os colocou, mostrando todo seu talento. A brincadeira tinha acabado, a senhora ficou sem graça e a promoção da gelatina, leve três e pague duas, ficou mais doce naquela tarde.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

DE PAI PRA FILHO

Roberval tinha um sonho, o de formar o filho médico. Queria-o doutor e faria qualquer coisa a isso. Conheceu o esquema de uma gangue, que, por 90 mil reais, conseguia resolver a prova, dando as alternativas ao candidato via ponto eletrônico. O pagamento foi feito em duas etapas, uma antes e outra depois de confirmada a aprovação.

Roberval Júnior se tornaria o primeiro médico da família. Quase dez anos depois, entre estudo e residência, o rapaz se formava clínico geral. Com a influência da família e do pai, conseguiu assumir uma posição de destaque na diretoria num hospital renomado da cidade. O investimento nos estudos deu certo. 

Aos 35 anos, Roberval Júnior conseguia quadruplicar os bens da família e dedicava ao pai o sucesso de sua carreira. Palmas aos envolvidos. Não se sabe o número de pacientes que o doutor atendeu, muito menos a quantia desviada dos recursos vindos à entidade. Sinal de que educação realmente veio de berço e que suas consequências não poderiam resultar em honrarias diferentes. 


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A SUICIDA

Um suicida não nasce assassino, um suicida apenas revela uma parte de si. Assim como é capaz de odiar, de amar, ele também desenvolve tal habilidade. E a mulher tinha todos os motivos e características para isto. Traição conjugal, demissão e as dívidas com o agiota. Tudo se acumulou. Ora, se alguém tinha o direito de tirar a própria vida, que fosse ele mesmo. Mais digno, mais honrado.

Não tinha dúvidas de como fazê-lo. Subiu até o último andar do prédio e sabia que talvez os 75 metros de queda fossem suficientes para o serviço. Levou consigo sua melhor e última garrafa do uísque escocês 12 anos, o mesmo uísque que não quis vender ao amigo, que apenas lhe estendia a mão. 

Ela preferiu encolhê-la. Sentou na beirada da janela do salão de jogos, e deixou as pernas dançarem, como se pudesse sentir a queda antes, como quem mede a temperatura da água da piscina antes do mergulho. Deu dois longos goles no destilado. Não lacrimejou nem teve a queimação em seu peito. 

Faria uma oração, se soubesse. Dizem que nossa fé toda aparece no momento que antecede nossa morte, mas parece que a dela não vingaria. Teria somente a si na derradeira partida, só estava, porque só era e isso não mudaria. Nunca teve sorte na vida, talvez a morte fosse mais afortunada.

Olhou a garrafa, ainda havia alguns longos goles, e decidiu presentear-se com eles, pois não havia nada mais a dar a si. Minutos depois, a razão sumia dali e tudo girava e girou. Levantou-se, estava a um passo da morte, bastava um simples empurrãozinho, que não veio, a natureza fez seu trabalho, a moça girou duas vezes e foi, caiu no chão, espatifou a garrafa e desmaiou com o tombo e o álcool. E assim, se a vida sempre foi seu azar, não seria a morte seu primeiro sucesso.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

AS SEMENTES

A avó tinha essa mania de plantar sementes. Conversava com elas enquanto preparava a terra e cantava sua canção favorita cobrindo-as com amor e carinho. A neta, enquanto se distraía com qualquer coisa, apareceu, ajoelhou-se e perguntou o porquê daquele ritual todo se as sementes não tinham ouvidos.

A avó disse que não só os ouvidos escutavam. Que o coração também escutava. E a menina mais do que rapidamente também refutou a ideia de as sementes terem coração. A avó optou em dizer que não só o coração escutava, que a alma também era uma boa ouvinte.

A garota sorriu satisfeita, certa de estar ganhando na discussão, e também falou que as sementes não tinham alma. A avó se calou resignada. Semanas depois, a menina entrou correndo para avisar que das sementes brotou uma linda muda, e a avó - enquanto cortava um pedaço do bolo - perguntou à neta se ela sabia por qual motivo a muda havia aparecido.

A menina fez uma expressão de deboche e disse que não poderia ser por causa dos ouvidos ou do coração ou da alma, pois sementes não os tinham. E a avó sorriu e perguntou: "não mesmo?". A garota reafirmou que não. A senhora sorriu de novo e indagou se a neta tinha ouvidos, a garota disse que sim, num tom enfadonho. 

E a avó emendou: "então por que você não escutou nada do que eu disse naquele dia?". A neta disse que tinha escutado sim. "Se você tivesse escutado, não se surpreenderia com a muda que acabou de nascer ali. E ela vai crescer e vai ficar linda, cheia de vida".

À menina restou apenas a lição de que não adiantavam ouvidos, coração e alma se a música não fosse escutada.  

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O REI

Gualberto tinha um sonho: ser rei. Mas como ser rei aos 7 anos de idade? Ora, seria óbvio, montaria ele mesmo seu reinado. Por dias, elaborou seu castelo e deu início ao seu desejo. Tomou alguns papelões, tesoura, cola, palitos de dente. Foram duas semanas, e enfim o monumento estava em pé. Soberbo, bem no meio de seu quarto. 

Depois percebeu que não poderia ser coroado sem que houvesse um povo, o povo era importante. Pegou todos os seus bonecos e não contava que fossem tão ínfimos para alguém que desejava ampliar suas conquistas e seu poder. Foi pedir à irmã algumas bonecas, mas ela não as cedeu com tanta facilidade, foi preciso abrir mão de algumas balas e guloseimas para negociar.

Dias depois, ainda que sentisse falta do açúcar em seu paladar, seu reinado começou a tomar forma. Precisava de árvores, para derrubar e fazer barcos e ganhar o mundo pelo mar. Pediu ao pai, engenheiro e habilidoso com miniaturas, que as construísse, em troca, o homem pediu ajuda para recolher o lixo. 

Dias depois, fedendo a cascas de banana, ele obteve cerca de duas dezenas delas, que enfeitavam a entrada de seu castelo. E então faltava um detalhe agora: uma coroa. Lembrou das histórias da avó, que fora Miss Itu, e da coroa que ela exibia. Foi até a velha, que pediu uma massagem nos pés. Minutos depois estava coroado. Agora era só começar a mandar.

Conhecia apenas uma pessoa que poderia ensiná-lo, a mãe. Bastaram alguns minutos para observá-la e perceber como dominava a arte, com a irmã, o pai, a empregada e sobrou a ele também. Chegou cheio de si ao quarto e distribuiu tarefas, mandamentos. Nada. Ninguém sequer fez um só movimento. Então percebeu que poder não se conseguia e que, por mais que fosse seu desejo, todas as negociações, barganhas e politicagens de nada adiantaram.

Ser rei carecia mais de talento que de vontade, derrubou seu governo e preferiu o futebol, mas antes, a mando da mãe, claro, teve de arrumar a bagunça do seu quarto. Precisaria de uma independência, no entanto isso ficaria para depois do lanche, porque naquela tarde seu preço eram as bisnaguinhas com geleia de mirtilo. E o reinado se tornou colônia. 

terça-feira, 14 de novembro de 2017

ESPINHOS EM FLOR

Ficou encantada a menina quando viu aquela roseira. Os olhos se encheram de vida ante tantas cores. Soltou-se da mãe e correu até elas, queria abraçá-las, beijá-las, queria vestir-se de rosas, cheirar como elas. E assim se entregou. Estava feliz, beijou, abraçou e vestiu-se de todas as pétalas possíveis, de todos os aromas possíveis, de todas as cores possíveis. 

De repente, sentiu uma pontada no braço. Num ímpeto, com a fisgada e o susto, virou-se bruscamente e desta vez foi o rosto e a palma da mão, eram alguns espinhos a rasgar-lhe a carne. Ela se afastou contrariada e voltou até a mãe, emburrada. Perguntou-lhe por que ela não a avisara sobre aquilo. A mãe respondeu que avisou, mas que o encanto da filha era tanto que talvez não tenha escutado ou simplesmente não quisesse escutar.

A menina disse que prestaria mais atenção nas palavras da mãe, que disse que ainda assim seria escolha da filha qualquer decisão que tomasse. Então perguntou à garota se tudo aquilo tinha valido a pena. A menina, lambendo o arranhão, disse que sim. Foi a primeira lição que aprendera. Haveria outras roseiras e para algumas delas valeria a pena se entregar. Haveria outros espinhos e para alguns deles também valeria a pena se entregar.

Se nossas cicatrizes contam as histórias que passamos, os aromas que sentimos, as cores que vemos e as sensações que guardamos também. Não somos só que o se vê, porque nem tudo o que somos fica exposto.  

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A TINTA DO SOL

Valentina conhecera o mar aos 4 anos. Escutou atentamente as recomendações da mãe e aprendeu a respeitá-lo de longe como quem analisa uma nova amizade, uma nova situação.  Trouxe consigo sua caixa de brinquedos e bugigangas e preferiu se entreter na areia, em que construiria reinos e os destruiria minutos depois.

Estava ao lado do pai, que não se acanhou em deitar, ficou exposto ao sol e acabou dormindo. Num ímpeto de calor, o homem despertou e se virou de bruços. A parte da frente, entre o rosado e o vermelho, contrastava com a brancura traseira. Minutos depois, o sol acabou se escondendo e Valentina percebeu, pela lógica, que os mesmos tons adquiridos em sua metade não atingiriam o mesmo resultado.

Teve uma ideia, virou e revirou suas quinquilharias e encontrou seu guache rosado. Não teve qualquer acanhamento e passou a pincelar o pai, a fim de fazer o serviço incompleto do sol. As demãos duraram uns vinte minutos, o que, do seu jeito, conseguiu amenizar aquela arte. Logo após, o pai acordou e decidiu dar um mergulho.

Foi confiante até as ondas e se entregou às braçadas, à refrescante sensação. No entanto viu a garota que o itinerário que o pai fazia deixava atrás de si um legado vermelho. Sim. Sua obra, seu guache fora se agarrando ao mar, despregando-se do homem sem qualquer discrição.

Aquilo a intrigou e teve a certeza de que, se usasse a tinta que o sol usava, seus desenhos seriam mais vibrantes, mais eternos, à prova de água, à prova de tudo.  

terça-feira, 7 de novembro de 2017

AS LIÇÕES DE VÔ INÁCIO

Seria um castigo qualquer. Os negros rodeavam o pelourinho como uma proteção estéril, pois suas mãos estavam atadas à vida como a corrente à sua raça, como a liberdade ao impossível. Vô Inácio estava ali, costas marcadas e um capitão a estreitar-lhe os passos com a chibata em riste. Talvez pela idade, pela quase surdez, ignorou uma ordem tola e acabou pela centésima vez sob os cortes iminentes.

Sinhozinho da fazenda perguntou-lhe se ele sabia contar, vozinho disse que não e o homem riu de sua ignorância e ordenou que decorasse as vinte chibatadas, que as contasse alto e que elas recomeçariam caso ele errasse a numeração. E assim, o capataz deu dois passos à frente e desceu forte o couro gasto naquela pele gasta. O barulho seco fez todos darem um passo atrás, enquanto o barão berrava a vô Inácio que contasse, e o velho fora certeiro: 20.

Sinhozinho, o capitão e os demais capatazes riram alto. O barão chegou perto e disse-lhe que a esperteza de sua idade não o fariam acabar. O olhar doce e misericordioso fê-lo recuar, e vozinho explicou que preferia fazer de trás para frente, porque era melhor saber quantas faltavam e não quantas mais viriam.

Intrigado e desconfiado, pediu que o capitão não aliviasse na força e, uma a uma, até a última, vô Inácio, com a voz firme e doce anunciava o fim. As feridas abertas mais uma vez faziam os seus chorarem. As dezenas de filhos e netos clamavam a um Deus poderoso que aliviasse o caminhar daquele preto velho de olhar profundo e doçura nas palavras.

Já imóvel, ele respirou fundo, enquanto os algozes o desamarravam e o levavam de volta à senzala. Pelo caminho, o barão os interpelou e avisou que aquela lição fosse aprendida, pois da próxima vez provavelmente vô Inácio não sairia vivo do castigo.

Vozinho não sorriu por fora, mas havia um sorriso naquele olhar, quando falou que nunca conseguiriam colocar-lhe o ódio no coração, e que, se preciso fosse, o ódio deles talvez um dia se cansaria de bater e ficaria mais gasto que o coro da chibata.

Vô Inácio não resistiu aos ferimentos e foi brilhar no céu, amparado por Deus e por todos os anjos, que lhe saudaram em reverência.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

A PRIMEIRA CEIA

Antonio Alves era um trabalhador clichê. Pai de 4, aos 53 anos, ainda sustentava os meninos, porque estava longe de ser menino quando se tornou pai. Levantava às 4h30, trabalhava das 8h às 17h e chegava em casa às 19h, cinco vezes na semana. Aos domingos, ia aos cultos e dedicava sua devoção a Deus, era honesto e seguia sua vida em retidão.

Numa manhã de inverno, enquanto o sol se atrasava, estava no ponto e viu o ônibus apontando, mas não viu os dois assaltantes se aproximarem. Tiraram tudo o que tinha, na mochila estava sua bíblia, ele implorou para não levarem e, num ímpeto de desespero, agarrou um dos bandidos, que o esfaqueou na barriga.

O ônibus parou e de lá desceram quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, que não tardaram em chamar uma ambulância. Provavelmente perderiam o dia, mas optaram em ajudar Antonio. Quase uma hora depois, o Samu chegou e levou a vítima, seguida pelos três, num Uber. 

O hospital mais perto era um público, no entanto o atendimento foi rápido. Por sorte, que seja, o furo não foi tão profundo, rendendo-lhe uma semana de internação. Os filhos e a esposa correram para lá e o seguiram por toda sua recuperação. Assim como os quatro que o salvaram.

No dia de sua alta, a família estava ali, bem como o quarteto, que, numa vaquinha, comprou uma mochila nova, um celular novo e uma bíblia. Ele recebeu os presentes e beijou o livro sagrado. 

A vida seguiu e, dias depois, descobriu Antonio que uma das mulheres era católica, enquanto a outra era espírita. Um homem era umbandista e o outro, ateu. Um ano depois do acidente, resolveram celebrar o evento com um almoço, e quem pagou a conta foi Deus.  

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O PRIMEIRO DESAFIO

14 anos tinha o menino e já encarava seu primeiro desafio: ligar para a garota mais linda da sala, porque ele estava apaixonado, pois todos os meninos morreriam por ela e morreram, já que não passavam da apresentação. Mas ele conseguiu o número do telefone da casa dela, original, old shcool. Decidiu que o faria às 16h daquela sexta-feira. Acordou confiante, observou-a o tempo inteiro durante a aula.

Juntou as forças que podia. Voltou triunfante, seguro. Nada podia derrotá-lo. Ensaiou bem o discurso, não usaria clichês, ele a surpreenderia e ela ficaria sem palavras, quando ele se apresentasse cantando. Então ele desligaria com glamour e sorveria aquela tarde de primavera.

Tomou um banho, passou a colônia do pai, esperou e esperou. Pontualmente às 16h, pegou o telefone, digitou e esperou. Ela atendeu e assim a magia se fez, cantou afinado e realmente ela ficou sem palavras, porque desligara na sua cara e a profecia se fez. Ele olhou aos lados, garantindo que não havia plateia  e sorveu aquela tarde de primavera.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

A TRAVESSURA DO DOCE

A tradição é estadunidense, mas, como todo marketing americano, pegou no mundo. O dia das bruxas era uma forte comemoração naquela rua. Todo dia 31 de outubro, as crianças faziam o ritual e tinham as famosas dores de barriga no dia seguinte.

E naquele ano seria diferente. O casarão. Sim. Há tempos inabitado, há tempos temido. Talvez os pequenos se cansaram dos doces e queiram algo mais emocionante que balas e chocolates. E decidiram que a última visita seria no casarão.

Imponente, lindamente sinistro, diziam que uma família inteira tinha sido morta por um maníaco. Ela ficava no fim da rua, à esquerda. Pais, vizinhos e todos do bairro não se atreviam a passar por ela durante a noite. Evitavam ao máximo.

As janelas cobertas por cortinas, a placa de vende-se já gasta, as paredes tomadas por plantas, o jardim seco, colossal. Não fazia parede com nenhuma outra, porém inegável ser a atração daquela rua, que tinha a porta de entrada do local e uma dos fundos - na rua detrás.

Diziam que barulhos estranhos ocorriam em noites de lua cheia, juntos a todos os clichês de terror que fariam qualquer corvo que passasse por lá dizer: “nunca mais”.

20h. Luzes acesas os afastavam e se puseram em frente ao local. Silêncio. Teria sido uma péssima ideia? Alguém desistiria? Todos estavam amedrontados, porém tinham de entrar para a história daquela rua: os primeiros que enfrentariam os fantasmas de verdade.

Entreolharam-se. Ninguém bateu palmas, ninguém tocou a campainha, porque não havia campainha. Uma pedra para certar a porta? Um “doce ou travessura” como convite? Mas convite a quê? Receberiam ratos, cobras e todos os lobos a uivarem aos 4 cantos o quão estúpidos eram aqueles meninos.

Estavam estáticos. Não se moviam. Não falavam. Apenas olhavam aquilo de cima a baixo procurando algum motivo pra correr ou para noticiar. Nada. Até o cão do grupo não latia: sinal de que tudo estava normal.

Então alguém decidiu agir. Um garoto pegou um bombom e atacou para dentro. Pelo barulho, atingiu a porta. Escuro demais para ver onde caíra. Silêncio. Instantes depois, o improvável: o mesmo bombom é arremessado de volta, mas para o lado da casa.

O suficiente para debandarem e conseguirem a história que queriam. Tinham a melhor noite das bruxas do mundo, um contato direto com o bizarro e o sobrenatural. Viraram notícia. Mesmo que poucos acreditassem, eles sabiam que só eles viram aquele celofane vermelho parado ali no jardim seco.

E como a história é contada pelos vencedores, pena o grupo que estava na outra rua, nos fundos do casarão - e que teve a mesma ideia de atacar um doce – não ter recebido nada em troca.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O QUE TE CONFORTA?

Maristela e Alessandra eram duas amigas com seus sonhos e ambições. Numa noite de bate-papo, lamentavam sobre seus empregos, apesar do bom salário, da segurança, do plano de saúde, questionavam se não estavam na zona de conforto, tão perigosa, tão sedutora e tão obviamente confortável. Mas o confortável esbarrava nos aborrecimentos, nas insônias, nos calafrios aos domingos à noite, nas inconveniências, nas coações, nas alegrias às sextas-feiras.

Por outro lado, aquela grana proporcionava boletos pagos, viagens, passeios, uma carga positiva e de energias boas para conseguir encarar os cincos dias muito difíceis que passavam e passavam e passavam.

Alessandra projetou seu sonho de ser pintora e endossou a habilidade da amiga e o desejo desta de trabalhar com fotografia artística. Maristela ficou lisonjeada e disse que os quadros que a amiga pintara e que enfeitavam a sala de estar eram sempre elogiados - enquanto Alessandra endossava o belo álbum de casamento que Maristela fizera como presente para ocasião.

Estavam radiantes. Alessandra se encorajou de sair, contudo Maristela ficou temerosa, pois ambas as profissões não garantiriam boletos pagos, viagens, passeios. Por outro lado, ainda que o emprego formal rendesse tudo isso, trazia aborrecimentos, insônias, calafrios aos domingos à noite, inconveniências, coações, alegrias de sexta-feira. Saíram com suas projeções e suas medidas e proporções.

Alessandra jogou ao alto os 8 anos de FGTS e benefícios. A empresa tentou prometendo o mundo, mas o dela tinha outro valor. Nunca sentiu tanto alívio e felicidade. Ainda que tivesse perdido a semântica perigosa de sua zona de conforto, preferiu arriscar fazer o que acreditava que a deixasse feliz.

Maristela não pôde crer e jurou que os sonhos tinham ficado naquela mesa de bar e que apesar dos aborrecimentos, das insônias, dos calafrios aos domingos à noite, das inconveniências, das coações, das alegrias às sextas-feiras, ainda assim havia de haver boletos pagos, viagens, passeios, uma carga positiva e de energias boas para conseguir encarar os cincos dias muito difíceis que passavam e passavam e passavam.

Um ano depois, Alessandra - que se dedicara intensamente à sua pintura e teve um dos melhores anos nos seus 35, já havia vendido seu carro, cortado o supérfluo, mudado o plano de seu celular para pré-pago e ido somente a Curitiba, numa promoção da Gol - conseguia sua primeira exposição, que estava marcada para dali duas semanas, com 15 quadros.

Um ano depois, Maristela - que conseguira uma promoção, praticamente dobrara seus ganhos possibilitando dobrar seus benefícios, comprara um Iphone 11, viajara duas vezes à Europa, assumira a prestação de um novo apartamento e as de um novo carro - continuava com seus aborrecimentos, insônias, calafrios aos domingos à noite, inconveniências, coações e alegrias às sextas-feiras e não irá à exposição da amiga, porque ambas não falavam mais a mesma língua.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

OS OLHOS CLAROS

Começou a ter sonhos premonitórios ainda criança. Foi quando não distinguia o imaginário do real. Só se deu conta da diferença aos 10, ao sonhar com o avô morto e um livro nas mãos e a cena se repetir na semana seguinte. 

Na adolescência, anteviu a gravidez de uma amiga e evitou dois acidentes dos seus pais. Tentava não se influenciar pelo óbvio, no entanto percebeu ser inútil. Era sonhar, era acontecer. E, desses desafios que surgem na vida, numa noite de verão, conseguiu ver os olhos claros da menina em seus braços, ela sorria o seu sorriso e isso o despertou.

Não estaria pronto, tinha acabado de alugar seu primeiro apartamento, tinha uma vida estável e com as rédeas firmes. Ela só poderia vir do encontro da noite seguinte. Ele não apareceu e deu um drible na obviedade e decidiu fazê-lo ao extremo. 

Logo depois, se viu de gravata em Paris e Paris era sua nova e última morada. Viajou ao Brasil numa manhã seguinte, porque viu que sua mãe não suportaria o câncer e brindou meses depois o restaurante do pai, um desejo de anos do velho.

Finalmente, aos 31, viu-se pronto para trazer a menina à vida. Havia encontrado uma italiana que andaria consigo até o fim dos dias. Sabia que o choro de uma criança seria iminente. Os anos se passavam e os dois ficavam somente entre eles e ficariam assim para sempre, porque às vezes os sonhos passam ou nem sempre podem ser realizados.
    

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Perdeu a fé, porque ia a missas e percebeu que Deus não escutava e tudo bem que não fazia a sua parte, mas cria que bastasse estar na igreja para o divino tomar conta. Perdeu a fé porque o pastor disse que Deus ajuda a quem estendia a mão, mas não precisava disso, pois, se Deus fosse quem todos diziam que era, não precisava estendê-la, Ele mesmo já deveria sabê-lo.

Perdeu a fé porque a psicografia dizia que ela perdera a fé e que o sofrimento servia para sua evolução, mas ela se julgava a pior das afortunadas e percebeu que o passe não a curou totalmente. Perdeu a fé porque Exu colocou o espelho em sua cara, mostrando uma alma putrefata e tomada de autopiedade, ficou louca quando viu que dependia de si para dar o primeiro passo.


Decidiu tirar a própria vida, mas não conseguiu, porque soube que somente os céus tinham autoridade para isso e ordenaram que ela vivesse até aprender. Morreu ignorante, culpando o mundo e provando que Deus não existe e, se existisse, era uma propaganda enganosa.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

TODOS SOMOS HERÓIS!

Odeio clichês, mas o título acabou sendo inevitável. É impossível não associar infância e heróis. Todos nós já fomos ou quisemos ser um.

E por que também não crescer querendo ter uma capa? Posso dizer que tive e tenho heróis como quem tem melhores amigos. Cansei de contar quantas vezes já voei e salvei cidades. Mas também, quantas vezes fui e sou uma estrela do rock ou um Nobel literário.

Voz de Freddie Mercury e mente de Saramago...

Mas o primeiro herói. Ah, sempre o primeiro herói. Aos 12 anos, assisti ao musical HAIR, de Millos Forman, filme da peça de estrondoso sucesso na Broadway, nos anos 60, filmada no fim dos 70. Esse filme mudou minha vida cultural!

Quando vi Berger (Treat Willians) - o líder hippie que tenta convencer um caipira a não ir ao Vietnã – cantando, idolatrado por todos e dançando em cima de uma mesa, chutando toda burguesia para o chão, eu quis ser aquele cara.

Por anos, eu fui Berger!

Quando nem mais me lembrava de minha identidade secreta, numa das várias tentativas minhas de emplacar um trabalho meu, deparei-me com uma amiga de uma grande amiga minha. Essa atriz entrou na minha vida para revelar ao mundo algo que eu sempre soube:

- Adriano, você, que ama Hair, já reparou como o Berger é a sua cara?

Sorriso. Assim como perdi as contas de quantas vezes vi o filme, não sei quantas vezes essa frase ressoou em minha mente.