terça-feira, 31 de outubro de 2017

A TRAVESSURA DO DOCE

A tradição é estadunidense, mas, como todo marketing americano, pegou no mundo. O dia das bruxas era uma forte comemoração naquela rua. Todo dia 31 de outubro, as crianças faziam o ritual e tinham as famosas dores de barriga no dia seguinte.

E naquele ano seria diferente. O casarão. Sim. Há tempos inabitado, há tempos temido. Talvez os pequenos se cansaram dos doces e queiram algo mais emocionante que balas e chocolates. E decidiram que a última visita seria no casarão.

Imponente, lindamente sinistro, diziam que uma família inteira tinha sido morta por um maníaco. Ela ficava no fim da rua, à esquerda. Pais, vizinhos e todos do bairro não se atreviam a passar por ela durante a noite. Evitavam ao máximo.

As janelas cobertas por cortinas, a placa de vende-se já gasta, as paredes tomadas por plantas, o jardim seco, colossal. Não fazia parede com nenhuma outra, porém inegável ser a atração daquela rua, que tinha a porta de entrada do local e uma dos fundos - na rua detrás.

Diziam que barulhos estranhos ocorriam em noites de lua cheia, juntos a todos os clichês de terror que fariam qualquer corvo que passasse por lá dizer: “nunca mais”.

20h. Luzes acesas os afastavam e se puseram em frente ao local. Silêncio. Teria sido uma péssima ideia? Alguém desistiria? Todos estavam amedrontados, porém tinham de entrar para a história daquela rua: os primeiros que enfrentariam os fantasmas de verdade.

Entreolharam-se. Ninguém bateu palmas, ninguém tocou a campainha, porque não havia campainha. Uma pedra para certar a porta? Um “doce ou travessura” como convite? Mas convite a quê? Receberiam ratos, cobras e todos os lobos a uivarem aos 4 cantos o quão estúpidos eram aqueles meninos.

Estavam estáticos. Não se moviam. Não falavam. Apenas olhavam aquilo de cima a baixo procurando algum motivo pra correr ou para noticiar. Nada. Até o cão do grupo não latia: sinal de que tudo estava normal.

Então alguém decidiu agir. Um garoto pegou um bombom e atacou para dentro. Pelo barulho, atingiu a porta. Escuro demais para ver onde caíra. Silêncio. Instantes depois, o improvável: o mesmo bombom é arremessado de volta, mas para o lado da casa.

O suficiente para debandarem e conseguirem a história que queriam. Tinham a melhor noite das bruxas do mundo, um contato direto com o bizarro e o sobrenatural. Viraram notícia. Mesmo que poucos acreditassem, eles sabiam que só eles viram aquele celofane vermelho parado ali no jardim seco.

E como a história é contada pelos vencedores, pena o grupo que estava na outra rua, nos fundos do casarão - e que teve a mesma ideia de atacar um doce – não ter recebido nada em troca.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O QUE TE CONFORTA?

Maristela e Alessandra eram duas amigas com seus sonhos e ambições. Numa noite de bate-papo, lamentavam sobre seus empregos, apesar do bom salário, da segurança, do plano de saúde, questionavam se não estavam na zona de conforto, tão perigosa, tão sedutora e tão obviamente confortável. Mas o confortável esbarrava nos aborrecimentos, nas insônias, nos calafrios aos domingos à noite, nas inconveniências, nas coações, nas alegrias às sextas-feiras.

Por outro lado, aquela grana proporcionava boletos pagos, viagens, passeios, uma carga positiva e de energias boas para conseguir encarar os cincos dias muito difíceis que passavam e passavam e passavam.

Alessandra projetou seu sonho de ser pintora e endossou a habilidade da amiga e o desejo desta de trabalhar com fotografia artística. Maristela ficou lisonjeada e disse que os quadros que a amiga pintara e que enfeitavam a sala de estar eram sempre elogiados - enquanto Alessandra endossava o belo álbum de casamento que Maristela fizera como presente para ocasião.

Estavam radiantes. Alessandra se encorajou de sair, contudo Maristela ficou temerosa, pois ambas as profissões não garantiriam boletos pagos, viagens, passeios. Por outro lado, ainda que o emprego formal rendesse tudo isso, trazia aborrecimentos, insônias, calafrios aos domingos à noite, inconveniências, coações, alegrias de sexta-feira. Saíram com suas projeções e suas medidas e proporções.

Alessandra jogou ao alto os 8 anos de FGTS e benefícios. A empresa tentou prometendo o mundo, mas o dela tinha outro valor. Nunca sentiu tanto alívio e felicidade. Ainda que tivesse perdido a semântica perigosa de sua zona de conforto, preferiu arriscar fazer o que acreditava que a deixasse feliz.

Maristela não pôde crer e jurou que os sonhos tinham ficado naquela mesa de bar e que apesar dos aborrecimentos, das insônias, dos calafrios aos domingos à noite, das inconveniências, das coações, das alegrias às sextas-feiras, ainda assim havia de haver boletos pagos, viagens, passeios, uma carga positiva e de energias boas para conseguir encarar os cincos dias muito difíceis que passavam e passavam e passavam.

Um ano depois, Alessandra - que se dedicara intensamente à sua pintura e teve um dos melhores anos nos seus 35, já havia vendido seu carro, cortado o supérfluo, mudado o plano de seu celular para pré-pago e ido somente a Curitiba, numa promoção da Gol - conseguia sua primeira exposição, que estava marcada para dali duas semanas, com 15 quadros.

Um ano depois, Maristela - que conseguira uma promoção, praticamente dobrara seus ganhos possibilitando dobrar seus benefícios, comprara um Iphone 11, viajara duas vezes à Europa, assumira a prestação de um novo apartamento e as de um novo carro - continuava com seus aborrecimentos, insônias, calafrios aos domingos à noite, inconveniências, coações e alegrias às sextas-feiras e não irá à exposição da amiga, porque ambas não falavam mais a mesma língua.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

OS OLHOS CLAROS

Começou a ter sonhos premonitórios ainda criança. Foi quando não distinguia o imaginário do real. Só se deu conta da diferença aos 10, ao sonhar com o avô morto e um livro nas mãos e a cena se repetir na semana seguinte. 

Na adolescência, anteviu a gravidez de uma amiga e evitou dois acidentes dos seus pais. Tentava não se influenciar pelo óbvio, no entanto percebeu ser inútil. Era sonhar, era acontecer. E, desses desafios que surgem na vida, numa noite de verão, conseguiu ver os olhos claros da menina em seus braços, ela sorria o seu sorriso e isso o despertou.

Não estaria pronto, tinha acabado de alugar seu primeiro apartamento, tinha uma vida estável e com as rédeas firmes. Ela só poderia vir do encontro da noite seguinte. Ele não apareceu e deu um drible na obviedade e decidiu fazê-lo ao extremo. 

Logo depois, se viu de gravata em Paris e Paris era sua nova e última morada. Viajou ao Brasil numa manhã seguinte, porque viu que sua mãe não suportaria o câncer e brindou meses depois o restaurante do pai, um desejo de anos do velho.

Finalmente, aos 31, viu-se pronto para trazer a menina à vida. Havia encontrado uma italiana que andaria consigo até o fim dos dias. Sabia que o choro de uma criança seria iminente. Os anos se passavam e os dois ficavam somente entre eles e ficariam assim para sempre, porque às vezes os sonhos passam ou nem sempre podem ser realizados.
    

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Perdeu a fé, porque ia a missas e percebeu que Deus não escutava e tudo bem que não fazia a sua parte, mas cria que bastasse estar na igreja para o divino tomar conta. Perdeu a fé porque o pastor disse que Deus ajuda a quem estendia a mão, mas não precisava disso, pois, se Deus fosse quem todos diziam que era, não precisava estendê-la, Ele mesmo já deveria sabê-lo.

Perdeu a fé porque a psicografia dizia que ela perdera a fé e que o sofrimento servia para sua evolução, mas ela se julgava a pior das afortunadas e percebeu que o passe não a curou totalmente. Perdeu a fé porque Exu colocou o espelho em sua cara, mostrando uma alma putrefata e tomada de autopiedade, ficou louca quando viu que dependia de si para dar o primeiro passo.


Decidiu tirar a própria vida, mas não conseguiu, porque soube que somente os céus tinham autoridade para isso e ordenaram que ela vivesse até aprender. Morreu ignorante, culpando o mundo e provando que Deus não existe e, se existisse, era uma propaganda enganosa.