sexta-feira, 29 de novembro de 2013

EU, 171

Costumo falar aos alunos que o melhor método pra se aprender algo é pela dor, o mais eficaz e o perpétuo. E não digo isso só por parecer uma dica, mas por ter vivenciado várias dores ao longo da vida.

Antes de seguir, queria passar uma regra gramatical. Você deve se lembrar da VOZ PASSIVA. A oração “EU CORTO O PÃO” na voz passiva ficaria “O PÃO É CORTADO POR MIM” – talvez tenha ajudado. Salvo com os verbos OBEDECER e DESOBEDECER, não há voz passiva quando o complemento do verbo trouxer preposição, por exemplo “EU PRECISO DE DINHEIRO”, a voz passiva estará errada.

Há 18 anos, na primeira semana de estágio, e no primeiro semestre do curso de Letras, trabalhava numa empresa de educação elaborando materiais didáticos, no setor de Língua Portuguesa. Quando o telefone toca.

Confiante atendo ao chamado, era uma mãe de um aluno de tal franquia. Ela tinha uma reclamação sobre o material didático. Corretamente, a mulher apontou um problema de voz passiva.

A oração trazia o verbo ASSISTIR, no sentido de ver, presenciar. Quando tal significado é abordado, o verbo pede a preposição A. Daí “Eu assisto Ao filme”. Logo a voz passiva presente na oração “O FILME É  ASSISTIDO POR MIM” e no livro estava errada.

Com exatos 3 meses de faculdade, fui soberbo e ignorante ao discordar da mulher, dizendo que tal oração era possível. Ela educadamente discordou, endossando a regra correta. E eu, mais uma vez, confiante no meu futuro título e estágio, disse que ela estava errada.

Mais uma vez, sem perder qualquer compostura, ela soltou para mim: “Menino (isso dói até hoje), por favor, passe a ligação para alguém que entenda (isso dói mais ainda)”. Tomado de ódio, passei a ligação para minha chefe e fui atrás da minha justificativa em livros de gramática.

Enquanto as mulheres conversavam, eu comia livros e livros. A empáfia daquela mulher teria de descer a seco. E minha chefe me defendendo até. E percebi que não era o meu ponto de vista que ela defendia, mas o que eu faria na empresa: livros didáticos.

Meu coração quase gelou, assim que me deparei com a regra defendida pela mãe. Sim, ela estava certa, e eu, errado. Naquele momento, as palavras do meu pai me vieram à mente: “Educação abre portas!”.  E me lembrei que, mesmo errado, ela não havia me destratado. E que a mim só cabia uma atitude.

Assim que pude, fiz um sinal à minha chefe para passar a ligação de volta a mim. Ela o fez e eu, vermelho de vergonha, disse que a mãe estava certa e que aceitasse meus pedidos de desculpa por não ter agido de modo correto.

Ela aceitou educadamente minhas desculpas e aconselhou ficar focado nos estudos. Ao desligar o telefone, olhei para minha chefe, que chorava copiosamente, dizendo que eu – um menino de 22 anos – teria um futuro brilhante, engolindo meu orgulho.

O tapa que levei aquele dia, hoje me é doce, mas engolir a seco minha própria empáfia, minha própria soberba, foi um dos azedos mais eficazes à minha vida.  

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A CONTRAMÃO

O cara tinha essa mania irritante de acumular pessoas. Sim, cativava-as, mimava-as e depois não sabia o que fazer com elas. Tinha a certeza de que cada uma possuía um prazo de validade. Aprendeu que todas dão defeito, umas mais cedo, outras depois do almoço, mas dão.

Sabia que com ela seria igual, antes do anoitecer ou numa tarde de outono, ele olharia fundo nos olhos dela e sentiria que o melhor a fazer era seguir em frente e procurar novas conversas ou aventuras.

Era uma tarde quente, ele a esperava perto de uma esquina, debaixo de uma árvore, pisando a pouca sombra daquelas folhas. Quando sentiu que dessa vez seria diferente. Sim. Não conseguiu explicar. Uma espécie de alegria tenra e apaziguadora invadia-o por completo.

De repente, as sombras não precisavam mais estar ali. Decidiu encarar a luz forte do sol, porque era de calor que ele precisava, era luz que ele pedia, era de outra sombra ao lado da própria.

Percebeu que algo estava destoando do comum, que o incomum reinava firme e decisivo. Viu música na barulheira da quadra a distância, enxergou mais o colorido do céu e precisou os tons das buzinas.

De repente, ele soube que era ela, sim, ela. Sempre soube que nunca sentiria isso e que, se sentisse, poderia ser o aviso do eterno. Soube que poderia deitar a cabeça no ombro dela e ser para sempre. Soube que aqueles olhos sorriam a cada minuto. Entendeu todas as dicas que ela passou a ele sem tabelas ou divididas, vieram limpas e num campo macio.

Tentou ensaiar um pequeno discurso, soube que um dia poderia usá-lo, mas nunca que fosse naquele dia, naquela tarde e com ela. Sim, ela.

Relaxou e deixou que o improviso e o coração falassem, porque, se pudesse cantar, era isso que deveria fazer.

O celular toca, era ela. Momento crucial, deveria estar perto, ele atende. Ele sorri, ele a ouve, e ouve, e ouve, e ouve. O sorriso se apaga. Ele guarda o celular no bolso. Entra na padaria e pede um café sem açúcar. Ele o bebe como se nada houvesse. Paga e sai imponente depois de tropeçar na própria sombra...

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

IRRETOCÁVEL

A história sempre é contada pelos vencedores, pelos que ganham os desafios mais gostosos, mais saborosos. E é fácil de antever quem será um vencedor, quem será um perdedor.

Vejamos de perto a vida do rapaz. Aos 6 anos, já era uma assumidade entre todos os alunos minúsculos de lá. Foi de causar inveja o moleque, no dia da formatura, lendo a mensagem de fim de ano, para pais e demais analfabetos daquela plateia.

Chegava à primeira série despontando como um diferencial e tanto. O que muitos demoravam pra saber, ele já respondia. Um modelo, um mimo aos professores. Enveredou-se na carreira da esgrima. Sim. Enquanto todos corriam atabalhoadamente atrás de uma bola, ficava o moleque de canto, com sua espada.

Era costumeira a vontade de furar a bola dos plebeus, que gritavam e incomodavam a concentração quase mediúnica do rapaz, que se formou com louvor no ensino médio e ingressou na faculdade de Administração, seguindo os passos do pai, empresário único no ramo de açougues.

E foi o que aconteceu. Ainda no segundo ano de curso, já era o diretor geral da rede de mais de 35 estabelecimentos. Falava inglês e espanhol e começou a se arriscar no russo e no mandarim. Conheceu Solange, uma estudante de moda que queria ser atriz, mas não tinha memória ou talento para tal.

Linda e limítrofe, parceria perfeita. Não entendia de negócios, não queria saber. Encontrara a mulher ideal pra gastar dinheiro, ter filhos e fotos invejáveis nas redes sociais. E foi o que acontecia. De paris a Nova Iorque, de Roma a Grécia – as fotos eram únicas, sem contar um fotógrafo profissional que os acompanhava, numa espécie de Caras privado.

E quase enlouqueceram, quando descobriram que haveria um encontro dos alunos do século passado. Claro! Melhor que as fotos, eram ver ao vivo o luxo, a sofisticação do casal, com dois filhos prodígios e tudo em cima.

Abriram a casa de campo deles, colocaram 5 vans à disposição de todos. E as 50 pessoas apareceram encantadas com o altruísmo saudosista do rapaz, empresário de renome, orador, encantador, que se vestia de Papai Noel em dezembro e distribuía comida e presentes aos carentes, mesmo que por dez minutos e dez fotos.

Pai de família zeloso, homem eminente.

Estava a mil milhas do Rodolfo, colega de sala, que devia ao banco. Do Bruno, mágico de festas infantis, que pagava pensão a duas ex-esposas e não via os filhos há meses. Da Claudia, que acabara de sair da reabilitação. Até do talentoso Marcio, que prosperou por anos na construção civil, mas perdeu tudo no jogo.

Dos gêmeos Rubens e Ricardo, que abriram um restaurante de bairro e tinham sido assaltados duas vezes naquele semestre. Da Margarida, divorciada, professora, que quase não fora ao encontro por causa das provas para serem corrigidas.  

Da Silvinha, sim, a namoradinha da sétima série, que engordara tanto por causa de um hipertireoidismo, mas decidiu encarar o passado. A esposa do rapaz sorriu ao vê-la. Bem diferente do Jonas, carreteiro de primeira. Os únicos ausentes foram a Melinda, que seguia uma carreira brilhante nos palcos da Europa e do Ademir, senador. Mesmo que ambos estivessem livres naquele dia, não conseguiram confirmação na festa.

O discurso foi lindo, o almoço de primeira, o fotógrafo estava lá a toda. Só clicava a família, a casa e os mais bem vestidos. Tudo inesquecível. Até a Margarida, já meio bêbada falar que viu o jardineiro, um alagoano de quase dois metros de altura, enrabar o anfitrião perto da casa da árvore.

Mas quem acreditaria numa bêbada frustrada, que endossaria que a história sempre é contada pelos vencedores, pelos que ganham os desafios mais gostosos, mais saborosos.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

SANGUE DE QUAL SANGUE?


Quando Helena ficou sabendo que era adotada, a primeira reação que teve foi de nojo dos pais biológicos e de gratidão e amor eternos aos adotivos. Ela tinha 12 anos e conseguiu ratificar aquela dúvida que sempre pairava nas noites de insônia, nas fotos e nos comentários.

Trancou a informação no rancor da alma e decidiu jogar a chave fora. Mergulhou nos estudos e no seu mundo. A mãe amarguradamente se arrependeu de ter aberto a boca, sempre preferiu a segurança da mentira à instabilidade do real. Soube que deveria ter seguido o instinto.

O pai não, vivia dizendo que o comportamento da menina era da idade e não da verdade. Ao menos se escondia nos livros, um mundo mais seguro e rico que o detrás da porta.

Anos se passaram, e, aos 20, naquela manhã fria, ela abriu a porta da cozinha e disse: “quero conhecê-los de perto!”.

E o medo aparecia. O choro da mãe foi quase um pedido de perdão pelo pecado alheio. O pai abraçava a esposa como um acalento necessário e previsto. Era uma possibilidade, aliás metade de duas escolhas. Por 20 anos o não prevaleceu, agora chegava a hora do sim.

O pai abriu a gaveta que nunca foi aberta, retirou a pasta que nunca mais foi mexida e pegou os nomes que já estavam apagados em sua memória. Entregou-os à menina, que, serenamente, sorriu, deu um beijo nos dois e saiu.

Uma rápida consulta pela internet e descobriu dois casais possíveis, mesmo tendo a certeza de saber já quem corria seus traços e suas veias. Chamou o pai, porque a mãe tomara um calmante fortíssimo. Ele comprovou apenas com um menear de cabeça.

A moça, então, se identificou aos dois, que, em menos de meia hora responderam de modo solícito e cordial. Um encontro marcado para o fim de semana. Ela iria sozinha, assim como os dois do outro lado.

Não eram os porquês, não eram as justificativas, era apenas a curiosidade, pois o sangue se reconhece e se renova com o tempo. E era de sangue que ela falava, apenas a parte física.

Naquele sábado, os pais decidiram sair cedo e deixaram a filha com suas decisões. A mãe chorou o dia todo, o pai a consolou o dia todo. Preferiram sumir e tentar esquecer como seria aquela tarde, como seria aquele encontro.

Tentaram passar o maior tempo possível longe de casa. Decidiram voltar depois das 20h, quando, provavelmente, a filha já estaria de volta. E foi assim que aconteceu.

Eles entraram e viram que ela estava no quarto, escutando aquela canção que a deixava feliz, e a mãe chorou ainda mais. Os planos fracassaram, tantos anos de dedicação e formação esvaíam com apenas uma tarde.
 
O pai bateu à porta. A menina, com a voz agradável, convidou-o a entrar. Ela estava no banheiro tentando retirar as lentes de contato. O pai parou em frente a ela, que sorriu. Ele sorriu de volta, e antes que perguntasse como foi tudo, ela pediu para que ele sentasse em frente ao notebook e olhasse para tela.

Ele assim o fez, sentou. A menina, lá mesmo do banheiro pediu para que ele apertasse o “agora não” na rede social. O pai sorriu, e a música nem tinha ainda chegando ao refrão...
 
 

sábado, 2 de novembro de 2013

AS ÚLTIMAS FÉRIAS DE UM MENINO


Férias na casa da avó eram inesquecíveis. Sempre foram. Desde os 8 anos. Bolinho de chuva, mimos, dormir na rede, uma fazenda antiquada e aconchegante. Casa na árvore, colchão de molas e lareira.

Mas naquele ano algo estava diferente. As travessas de bolinhos aumentaram, os pés já não cabiam mais na cama nem ele mais no colo dela e mal conseguia ficar em pé na casa da árvore. Os 14 anos eram diferentes, o horário do TV trazia outra programação.

As caminhadas ficavam mais longas, o silêncio o seguia como sombra. Outras trilhas apareceram e levaram a itinerários bem mais coloridos. Nunca soube que havia uma cachoeira perto de lá. Não soube pensar se aparecera de um ano pra cá ou se seus olhos procuravam algo que nunca olhou.

Acreditou que estava no meio da divagação quando ela apareceu. Teve apenas tempo de se esconder. Viu que estava nua porque as roupas se amontoavam numa pedra. Sentiu vontade de entrar também na água, de perguntar seu nome. Mas preferiu a segurança.

Ficou parado lá vendo cada braçada, cada mergulho. Era linda. Sentiu que a amou naquele momento, porque nunca vira sol iluminar algo tão bonito. Sorriu.

Mexia apenas o olhar e descobriu algo mais doce que as delícias que saíam do forno da sua avó. E teve a certeza disso quando ela saiu da água...

Mesmo que não a tenha seguido, mesmo que no ano seguinte ela não tenha voltado a nadar e mesmo que não teve a certeza se realmente ela existiu, nunca mais seria diferente, inesquecível, porque não se pode esquecer a melhor redação que fez sobre as férias que passou.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O ODIOSO HÁBITO DE SE ACOSTUMAR

Sabe-se lá quando foi que o hábito começou. O fato é que todo domingo era dia de comer na sogra. Ninguém perguntou, ninguém desistiu ou convidou. A verdade é que chuva ou sol, frio ou calor, estavam lá os 4 filhos, as 4 noras e os 6 netos.

Pode-se chamar de ritual, se olharmos a vida das 16 pessoas envolvidas, podemos resumir assim: preparar o almoço, arrumar a mesa, varrer a frente, preparar as crianças e seguir para a velha casa no bairro decadente.

Cumprimentar os vizinhos, sorrir, porque se sorri todo domingo a quem estiver por ali. Ver o mesmo pipoqueiro na mesma esquina da mesma rua da mesma casa. Parar na mesma ordem de chegada os carros. E olha que já era uma revolução se alguém burlasse o protocolo.

Os assuntos variavam porque alguém no mundo tinha de mudar o rumo das coisas. Mas fosse como fosse. Domingo era sempre assim e assim foi por 10 anos seguidos até a morte do avô, que aconteceu numa sexta, o que não impediu de o almoço acontecer dois dias depois.

Anos depois, foi a vez da avó, estopim de toda a comilança dominical, pegar um itinerário diferente. Não se atentaram, mas pararam naquela manhã em frente da casa fechada. Não havia almoço nem calçada limpa e talvez até o pipoqueiro tivesse se perdido ao longo desse período.

E cada família decidiu tomar caminho contrário. Os da zona sul seguiram pra lá e os da zona norte nortearam, quem tinha de ficar no centro ficou e quem não também sumiu de lá. E já que um novo ritual se formou, assim se fez. Foi a última vez que se viram ou se falaram e perceberam que só se relacionaram porque nunca se perguntaram o motivo.

Mas parece que dois dos casais se encontraram numa fila de cinema, e se realmente fossem eles, não haveria assunto, porque o pipoqueiro - que na esquina ficava há 20 anos - não era o mesmo que estava por ali.