segunda-feira, 30 de setembro de 2013

SANTO SYLVESTER

A caminho da médica, ela jurou ter visto o Sylvester, gato de 11 anos, que fugira há 3 semanas. Não adiantou pedir para o marido parar, o bichano já havia sumido - mais uma vez, provavelmente, - das vistas deles.
 
Pensou ter o mundo ruído, há tanto tempo juntos. Porém a gravidez de dois meses poderia ser um alento a todas as dores.
 
O marido prometeu que deixaria o bebê nascer e, assim que possível, adotariam outro gato, com  a promessa redobrada de cuidados, mesmo que Sylvester - quase que por um milagre - houvesse desaparecido.
 
O bicho era extremamente caseiro, as redes de proteção estavam intactas, e até hoje a dor e a incompreensão ganhavam contornos fenomenais.
 
Chegaram ao consultório. Ele ainda a beijava na testa com aquele sabor de "tudo vai ficar bem". Entraram.
 
- Os exames estão normais, e seu bebê saudável.
 
O sorriso de ambos era um alento ao futuro.
 
- O que eu gostaria de falar a vocês é... Vocês não têm animais, não é? Gato, por exemplo?
 
Silêncio.
 
- Porque seu exame acusou uma baixíssima resistência a uma toxina que os felinos possuem. Então acho que vocês me entenderam. Se você cruzar com um gato, nem olhe para ele, os riscos seriam imensos. Se vocês não têm gatos, melhor, evitamos um trauma maior, que seria a separação...
 
E separação não foi por quase um milagre, foi pela sensibilidade que os humanos nunca terão.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

HISTÓRIAS DE TERROR

Poderia até ter achado estranho o fato de um apartamento tão bem localizado por um valor de aluguel bem abaixo do comum. Perto de tudo, numa metragem que, no mínimo, pediria o triplo do normal. Checou tudo, encanamento, vizinhança, cupins, nada de errado. O corretor apenas justificou que o dono, um homem recluso e de muitas posses, o tinha apenas como uma distração.
 
Não precisou de fiador, alugou-o feliz da vida. Iria a pé ao trabalho e tudo que precisasse faria com poucos passos. Era um sábado quando o caminhão estacionou por lá. Os vizinhos apareceram, como uma espécie de espetáculo, não contemplaram, apenas olhavam de modo curioso, com um ar quase de comiseração. Não percebeu isso.
 
Moraria só. Naquela manhã conseguiu ajeitar o pouco que levou. Eram 15h, quando saiu para o mercado. às 21h, estava fechando a última gaveta do armário. Abriu um vinho e bebeu brindando a si mesmo a conquista.
 
Na manhã seguinte, assim que saiu para sua caminhada, viu uma porta se fechar aqui que a dele se fechou. Achou engraçado, mas não se ateve a isso. Colocou os fones e seguiu para seu vídeo clipe. Andou por quase duas horas, sentindo o cheiro do bairro novo, sentindo o cheiro da própria liberdade.
 
Estava na padaria, quando escutou alguma coisa de vizinho novo. Retirou um dos fones e, como um voyer, ficou a olhar as palavras. Os olhos mal se mexeram e quase se arregalaram quando começou a entender que poderia ter entrado numa roubada. Afinal, saber que os outros 3 inquilinos foram encontrados mortos. Todos. Sem motivo, nada.
 
Sorriu por achar que pudesse crer numa história de terror. Sorriu mais ainda por achar que pudesse protagonizar POLTERGEIST ou O EXORCISTA ou AMITYVILLE. Não cria nisso, mas teve de confessar que não fiou confortável. Voltou receoso, mas voltou. Entrou sorrateiro e se assustou com outra porta fechando às suas costas.
 
Passou a ficar atento a barulhos, que não vieram, a movimentos estranhos, que não vieram. Tomou banho de porta aberta, e nada. Almoçou em paz, até dormiu à tarde com o TV ligado apenas para espantar o nada. Se espantou, nunca se soube, porque nada aconteceu.
 
Dormiu atento, ligou o som. Não sonhou, não perdeu o horário. Acordou como acordaria em qualquer lugar e seguiu para o trabalho. E assim, a semana passou sem mudanças. Percebeu quão a rotina pode ser boa e segura. Outro fim de semana. Dessa vez, amigos vieram pra pizza e vinho, houve até dois que ficaram e dormiram no sofá.
 
Pensou em dividir com os dois o que escutou, mas - antes mesmo de passar a preocupação a eles ou endossar a própria neurose - preferiu que o domingo passasse regado a macarrão, molho e pão italiano. E a semana recomeçou de modo normal.
 
As batidas de porta ainda eram comuns e começou a achar que tudo seria um temendo mal-entendido. Ninguém falava com ele, mas o locatário não queria amizades novas. Um mês e tudo normal. A história das mortes sumiram, houve até um vizinho que o cumprimentou. E assim a vida seguiu.
 
Numa terça, ele não apareceu no trabalho. Não atendeu ao telefone de casa ou o celular. Não costumava faltar e, se o fizesse - como já o fez - avisaria. Na quarta também não apareceu. Foi um colega do trabalho que, na quinta-feira, pela rede social, conseguiu avisar o amigo de infância, que saiu voando do trabalho e foi até o apartamento novo.
 
O porteiro interfonou e nada. Subiram voando ao quarto andar. A campainha soou por vezes e nada. Decidiram arrombar a porta. A vitrola rodava em falso, o TV desligado e o corpo imóvel no chão. O cheiro das rosas estavam lá, bem como o começo de um corpo em decomposição. O de gás nem se notava. Nem o porteiro nem o amigo desesperado nem os 4 antigos locatários...

sábado, 21 de setembro de 2013

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

I LIKE TO BE IN AMERICA


Não se pode viver o sonho de outra pessoa e dizer que o realizou por ela, mas pode transformar a sua realidade em um. Usurpar a fantasia alheia não é crime, é um ato de amor, muitas vezes.

A menina tinha 20 anos, mesmo não sendo uma, era uma. E já trabalhava como guia de turismo. Começou cedo, e naquele ano de 1994, em meio à Copa do Mundo nos EUA, estava ela responsável por 40 pessoas.
 
E todos sabem quem são os turistas, e a pior classe deles, os turistas iniciantes. Os que viajam para o exterior pela primeira vez, aqueles que não sabem algo além do “hi”: sanguessugas.
 
Voltam a ser crianças. Enxergam no guia uma mãe, um pai, um psicólogo, o melhor amigo, um guru. Romances já foram revelados, cantadas já foram dadas, confissões já foram feitas. O guia acaba se tornando um semideus, é onipresente, onisciente. Sempre está lá, até mesmo quando não se é pra estar, o guia está.
 
E naquela viagem, a menina assumia todos esses papéis. Seres alucinados por compras, sedentos por tudo. E desejosos de qualquer coisa que possa ter a intervenção do profissional da área.
 
Ela não teve tempo para se lembrar de como o pai amaria conhecer o local, quantas vezes o velho sonhou que era Gene Kelly e dançava na chuva. Até a gripe seria bem-vinda. Ela não teve tempo pra isso.
 
Corria pra lá, corria pra cá, abria águas, fechava portas, distribuía bilhetes, contava passageiros. Achava-os perdidos num canto qualquer de um cassino e se deparava com vários batendo à sua porta da suíte do hotel. 20 dias no inferno doce dos passeios.
 
Tudo se encerraria praticamente naquele show dos 3 tenores, em Los Angeles. Quando chegaram, não havia local para estacionar os ônibus e todos eles despejavam os sedentos ao espetáculo. Com isso, o atraso acaba sendo iminente.
 
Um outro guia estava com os bilhetes de entrada e – sabendo do caos presente – trepou em algo e ficou à vista de todos, inclusive da menina, que – assim que o viu – partiu em disparada. Em minutos, o grupo alcançou-a e finalmente, conseguiriam, debaixo de um escaldante calor, chegar à porta daquele coliseu.
 
 
Distribuiu os ingressos. Talvez aconteceu quando começou a subir as escadas, as vozes poderosas começaram a cantar: “I like to be in America...”. O grupo disparou numa corrida desenfreada. Ela bem que tentou apaziguá-los, mas o desespero era mais rápido. E, num frenesi alucinógeno, ela disparou também, mas caiu, caiu feio, bateu o joelho e por lá ficou.
 
 
E chorou, chorou como criança, porque sentia falta dos pais, porque não sabia se podia encarar tudo aquilo como adulta e profissional, e, porque, justa e principalmente, era uma dor horrenda. Queria sumir de lá.

Foi quando seu ombro foi tocado no mesmo tempo de “Are you ok?”. Ela levantou os olhos vermelhos e viu, mesmo entra lágrimas, aquele sorriso, o sorriso que era do seu pai, o sorriso que fazia o pai sorrir sempre. Sim, mr. Gene Kelly também fora pego de surpresa e perdia a primeira música do show.

Ele estendeu a mão, “Come on, there’s a show waiting for us”. E assim se foi. Ela não era seu pai, muito menos Ginger Rogers, mas, por minutos - e de mãos dadas - fizeram a mais bela parceria daquela tarde...

terça-feira, 17 de setembro de 2013

AS COCADAS E AS CURVAS DE MERCEDES


Pode ser um apelo começar um conto com um clichê, mas faço desta odiosa muleta um trunfo: "propaganda é a alma do negócio". E quando é bem-feita, quando realmente cai nas graças do público, o sucesso é avassalador.
 
Estava nossa protagonista entrando no terceiro mês de atraso no aluguel, os 400 reais mensais não apareceram porque a venda das cocadas não andavam lá em alta. Mercedes, baiana fogosa no jeito mas curitibana no agir vendia mais pela boca fechada do que pelo produto.
 
Pode-se dizer que as cocadas não era lá grandes coisas, mas as curvas à Shakira e a cor jambo eram mais doces. E naqueles dias de frio e cinzentos, em que se viam descobertas apenas as iguarias, comer ainda era a melhor opção que o teto. Os dois filhos exigiam o esforço. Mas os proprietários da casa não pensavam assim.
 
O casal de idosos, donos de 10 casas daquela rua já não viam com bons olhos as lacunas deixadas pela mulher. 1350 reais fazia falta para os remédios contra artrose e reumatismo. A conversa com os dois não progrediu. Era pagar ou sair.
 
As lágrimas não os convenceram, e a baiana voltou desolada. Ainda que foram generosos, deram dois três dias de prazo, e o nome da futura inquilina caso estes dessem em nada. Encontrou-se com a prima, que fora direta:
 
- Triplique a quantidade de cocadas. Deixe o resto comigo, você terá seu dinheiro.
 
Quando ouviu a proposta, ela ficou indignada, até hoje não se soube se pela proposta em si ou se pela possibilidade de dar certo. Fato é que conseguiria produzir em dois dias 1000 cocadas, a 1,50 cada. E ainda sobrariam 150 reais para uma farta compra no mercado.
 
E estava lá nas redes sociais: "Cocadas da Mercedes nesta sexta, se o estoque das mil acabar, por cinco segundos, Mercedes como veio ao mundo!". Sim, ela tiraria a roupa e exibiria o que os homens queriam, o que as mulheres invejariam.
 
Na noite anterior, cansada com a produção em massa, a prima e as amigas berraram que os comentários passavam dos 300 e as curtidas ultrapassaram os 500. Haveria gente até de outros bairros. Queria dormir, mas um grupo em plantão de manicure, cabelo e depiladora a mantiveram acordada.
 
Mercedes ficava na esquina da rua de baixo. Naquela manhã de sexta, o sol ardia, para felicidade e ódio do bairro. Havia centenas de homens esperando por ela, que apareceu linda como nunca, de vestido branco, sorrindo, com três bandeja imensas de cocadas.
 
Fora recebida sob aplausos e vaias. Mais palmas que urros. Mal chegou e começou o escambo. A cada venda, era uma pedaço daquele vestido que caía, um alvoroço intenso e insano. Nunca se vendeu tanto, nunca se comeu tanto.
 
Em três horas, 500 cocadas já tinham sido devoradas. Foi quando as vendas começaram a parar. Nas próximas 3 horas, apenas 100 foram consumidas. Os homens não conseguiam mais dinheiro, porque todos exibiam suas listas de fiado. As mulheres ficavam por lá e já podavam qualquer movimento. Houve quem comprasse dez, o mais ousado comprou 20, mas, por uma hora, ninguém mais comprava e ninguém saía dali.
 
Faltavam 400 cocadas e tudo parecia estagnar-se. Mercedes desesperada, homens aos prantos e mulheres sorrindo. Até que, a pouco tempo de a noite surgir, apareceu um senhor. Ele sacou da carteira 400 reais, jogou nas mãos da prima e disse com a voz clara e direta:
 
- Vejamos o que Mercedes esconde...
 
O aluguel estava salvo, a compra no Extra também. Os aplausos vieram em seguida. Embebida de alegria, a baiana pediu palmas e chorava como louca, estava feliz, tirar a roupa seria um prazer inenarrável.
 
E, com o alvoroço de todos, que formaram um círculo em volta dela, a baiana provou que era uma Gabriela de melhor que Sonia Braga. Por 5 segundos, exibiu as fartas coxas, as bandas lisas, cor de mel, e uns seios desenhados.
 
Ninguém saiu de lá, ficaram parados vendo a moça se vestir e subir triunfante com as bandejas vazias. Com a prima e as amigas cantando. Aquele corpo deixou o mundo boquiaberto e desnorteado. Até mesmo a senhora, dona dos dez sobrados.
 
Mesmo com a dívida de Mercedes paga, mesmo com todos os aluguéis em dia, ainda assim, a velha não conseguiu saber por que faltavam 400 reais na conta final daquele mês.
 
  

sábado, 7 de setembro de 2013

CORES DE MACONDO... (clique na música abaixo e escute-a lendo o texto)


Poderia não haver mais razão para algo nessa vida. Chegou a pensar que tudo estava acabado, que a luz não pudesse mais brilhar, que somente a chuva fosse prevalecer. Olhava pela janela o tempo frio e cinza, houve uma época que isso fosse um dos bons motivos pra sorrir.
 
Chegou a desejar o sol, não por opção, mas por algo diferente, que quebrasse a sequência gélida de dias tão sufocantes.
 
O roupão branco, os pés na pantufa e o jazz de fundo combinavam com a xícara do chá já gelado e de uma das torradas mordidas. Se fosse boa em orações, se fosse boa em pedir, embalaria uma reza agora. Mas se esqueceu da fé, esqueceu-se da época de catequese, largou a religião há anos e preferiu as surpresas da vida.
 
Lembrou que havia uma garrafa de uísque, dos bons, presente da amiga que vivia na Escócia, onde o destilado nacional valia. No entanto a preguiça estava bêbada, travou-a. Preferiu rever as fotos do curso de fotografia, amava as sépias, porém as em branco e preto a fascinavam.
 
Percebeu que nem sempre as cores poderiam estar presentes na vida dela, não que isso simbolizasse alegria, muito pelo contrário, sempre soube que cores e notas maiores nem sempre traziam sorrisos. Sempre leu e via cores nas palavras.
 
Desejou estar em Macondo, talvez o sentimento de solidão não durasse por cem anos, contudo sentia-se mais próxima desta do que de si, porque solidão é quando nos afastamos de nós mesmos. Sabia que precisava trazer a si mesma para junto dela.
 
De repente, lembrou-se do aniversário, sim, como pôde ter esquecido. De súbito, tirou o roupão, enfiou-se no banho. Separou qualquer roupa e viu que a chuva havia parado. Preferiu não pegar o guarda-chuva porque decidiu que não mais choveria naquele dia. Saiu de casa e aspirou o melhor aroma que poderia aspirar, aquele cheiro de asfalto molhado era um vício cultivado há anos, aprendera com o pai.
 
Pelo caminho, cruzou com uma cerejeira, as folhas pesadas e o pouco vento eram suficientes para se derrubarem. Ficou embaixo da árvore e viu aquela chuva de flores. Os olhos escuros e grandes se arregalaram e sorriram uma paz que há tempos achou não mais sentir.
 
Saiu de lá, entrou numa loja e comprou o presente. Mais aliviada e com a sensação, mais que dever, de justiça cumprida, sempre soube agradar aos outros e agora não seria diferente. Voltou depois do café e da livraria, entrou no apartamento e viu a aniversariante sentada no sofá. Sorriu e estendeu o presente a ela, que o pegou sem cerimônias e acabou com o embrulho.
 
Era o CD de que mais gostava. Colocou e escutou agora com você, leitor, a canção que elegeu ser a última nota triste de toda a sua vida: feliz aniversário a si. 


 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

É ISSO MESMO?

Meu pai sempre me dizia um coisa: "Perguntar não ofende". Posso endossar essa lição nas linhas que correrão por aqui hoje. Estudou até a oitava série, mas devorava o jornal e com a vida me passou dicas essenciais, que embalo e embalarei eternamente.
 
Primeiro emprego da moça, a família de 9 precisava sempre de uma renda extar. Aos 18 anos, conseguiu um emprego na recepção de um motel. Mesmo que a religião não permitisse, trabalhar com o pecado dos outros nunca foi pecado, pecado era morrer de fome e de frio.
 
Passou o melhor batom, calçou o melhor sapato. O tailleur preto era uma cortesia do local. Antes de sair, ouviu da avó: "Ouça tudo que for possível, fique atenta a tudo que fizerem, você saberá tirar suas conclusões".
 
Orgulhosa, chegou dez minutos antes e colocou o sistema "Atenção" modo ON. Em segundos reparou que poderia ter vindo de sapatos baixos, porque ficaria praticamente em pé por 6 horas. Pois as duas de lá estavam assim.
 
Percebeu que a frequência pela manhã era de executivos, envoltos de reuniões que nunca aconteceram e o principal, seguiu a dica da mais experiente: "Não se espante com nada, aqui tudo pode acontecer".
 
Naquele primeiro dia, ficou apenas fazendo um trabalho mecânico, passava as chaves do quarto, separava as balinhas da saída e afins. No fim do dia, ouviu a ligação de um rapaz que esqueceu os anéis de prata em uma das suítes. Foi ela que ajudou a separá-los e foi ela quem escreveu o número da suíte.
 
Estava para sair, quando viu o requerente chegar. O alvoroço foi geral, junto com ele havia uma bela poodle, o que a fez e a outras meninas ficarem encantadas. Depois de algumas carícias pelo vidro, o rapaz pegou os anéis e sumiu.
 
No dia seguinte, fato similar aconteceu. O rapaz esquecera a mochila marrom, couro legítimo em uma das suítes. Foi ela quem atendeu à ligação. Orgulhosa, conseguiu se comunicar perfeitamente sem gaguejar, separou a mochila. 
 
Horas depois, o homem aparecia junto a uma persa linda branca. O alvoroço foi ainda mais retumbante. De tão fofa, uma delas até saiu da recepção e foi ao encontro da bichana que miava feliz com tanto carinho e atenção. A moça ganhou um elogio das demais, promissora carreira àquela menina.
 
E naquele mesmo dia. Já havia se acostumado com pessoas esquecidas. Atendeu ao chamado de uma mulher desesperada, dessa vez era a aliança de casamento que fora deixada por lá. Porém o desespero se justificava ainda mais, claro que não fora com o marido que passara as 4h daquela tarde.
 
A menina estava só na recepção, fez o procedimento padrão. Separou o objeto e anotou a suíte. Menos de meia hora, um rapaz apareceu na portaria requerendo a aliança, que lhe foi negada. O estardalhaço começou. Não adiantou que ele falasse mil vezes que fora a amante que ligara, a menina não cedeu e chamou o segurança.
 
Não fosse a intervenção das mais velha, que percebeu a muvuca e saiu do almoço esbaforida, talvez o escândalo seria maior. Era o segundo dia, e a carreira promissora da menina acabava.
 
Em casa, ela tentava explicar o porquê da demissão: "O rapaz não apareceu com bichinho algum, nem um papagaio ou uma tartaruga, vó! Não podia devolver a aliança".
 
Pois é, talvez o conselho da nona não fora bem recebido, as conclusões foram tiradas. E aqui meu velho pai poderia ter entrado em ação antes de a menina protagonizar o escarcéu, mais uma vez endosso a lição do senhor Ary: "Perguntar não ofende". 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

INDEPENDÊNCIA OU MORTE!

Talvez as crianças tenham essa carência excessiva de heróis ou talvez a minha visão carente deles traga isso. Fato é que, por alguns meses, invejei d. Pedro I, pois queria protagonizar algo importante por aí. Bom, isso não aconteceu, mas endosso que a cena abaixo povoou algumas das cenas mais emblemáticas da minha infância.
 
Era comum ver carros com fitinhas verdes e amarelas nas antenas dos carros, era comum ver INDENPENDÊNCIA OU MORTE na Sessão da Tarde. Lembro que via até a cena emblemática, porque era a única que se encaixava com as figuras dos meus livros de História. Quem sabe não separo um tempo para rever o filme e tento encaixar o pouco que sei sobre o assunto.
 
Tarciso Meira foi o melhor d. Pedro I que existiu e, assim como o rei Arthur, deva agradecer por terem escolhido Sean Connery para representá-lo, tenho certeza de que o original ficou bem satisfeito com a performance do global. Tanta certeza quanto saber que José Bonifácio, ele mesmo se interpretou no filme, por anos achei que Dionísio Azevedo fosse sangue direto do cara.
 
Não sei explicar, mas sempre amei os feriados de 7 de Setembro, tanto que decidi adiantá-lo por aqui! Enfim, vivas ao Brasil!
 
 
 
 
 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

NIETZSCHE OU ROUSSEAU? ROCKY BALBOA!

Não sei se é um desvio de comportamento aos mais intelectuais, mas sempre achei, desde a adolescência, e sempre vou achar que Rocky Balboa é um mito. Tal filosofia não pede agora uma justificativa, porém serve como pano de fundo ao texto de hoje.

Assistindo pela enésima vez ao sexto filme da série, em uma determinada cena, Balboa e o filho de uma amiga estão num abrigo a cães, escolhendo um para ser adotado. Stallone para em frente a um simpático vira-lata, que se mostra imóvel. O ex-lutador está propenso a pegá-lo, mas o rapaz diz que o bicho parece quase morto, pois não se mexe.

O Garanhão Italiano retifica, dizendo que o cãozinho não está quase morto, senão economizando energia a algo grandioso, uma perfeita alusão à personagem da Filadélfia, famosa pela paciência e persistência, características fundamentais para as conquistas que teve no boxe.

Vi e revi essa cena, no entanto somente agora ela me ajudou a lembrar um fato que presenciei anos atrás numa sala de aula. Lecionava Inglês para pessoas que prestariam concursos públicos e, em 2003, havia um rapaz que se sentava no fundo da sala.

Eram 10 encontros. E em todos esses 10 encontros, ele dormia a aula toda. Virou piada. Muitos alunos brincavam, pedindo pra eu falar baixo, senão o rapaz acordaria. Confesso que rebatia meio intrigado, e por que não com parte do orgulho ferido, teimando em afirmar que minha aula era dinâmica demais para provocar sono em alguém: imaturidade acadêmica.

Ao término desses 10 encontros, havia uma aula de revisão, na qual exercícios e dúvidas eram sanados para se ratificar o aprendizado. E, nesse dia, o rapaz estava acordado, e também virou piada entre todos, porque 90% das dúvidas da sala, foi ele quem tirou.

A conclusão de todos foi unânime: o aluno tinha de recuperar todos os encontros num só. Pois bem, entrei no embalo, houve quem reclamasse que só o dorminhoco perguntava, mas endossei: "vou aproveitar que ele está acordado".

Naquele ano, uns 5 meses depois, houve o concurso para a Receita Federal. Havia uns 90 alunos naquela sala, e apenas um deles passou: o soneca. E melhor, ou pior, gabaritando Inglês, acertou as dez questões da prova.

Havia um jornal mensal do curso, sempre com questões que envolviam o mundo dos barnabés, dicas, depoimentos etc. E o daquele mês traria a entrevista do coordenador com o concursado. Eu me encontrei com o aluno na coordenação naquele dia e tinha de perguntar, sanar a dúvida de todos: "Como alguém que dormiu o curso todo conseguiu se sair tão bem numa prova pesada como a que a ESAF desenvolve?".

Ele foi direto: "Adriano, nunca dormi na sua aula, ela era dinâmica demais pra isso. Ouvia tudo o que você falava em sala, gravei todas as aulas. Minha concentração é melhor com olhos fechados, assim eu economizo energia".

Mais uma vez, ratifico que, dentre todos os pensadores e filósofos do mundo, Rocky Balboa acaba sendo um dos maiores mitos de todos os tempos.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

ESQUINA DESCE!

Ninguém se engrandece, quando se nasce grande, grande se é. A nobreza está no DNA, não se adquire com o tempo, acentua-se como natureza.

Quando não se precisa acentuar o próprio nome ou os próprios feitos, pede-se também que os nomes dos envolvidos sejam preservados. Fato é que o rapaz de Agudos, interior de São Paulo, veio para a capital com o mesmo sonho de todos, vencer.

Entre tantas pedras e enganos, viu-se como motorista de taxi, sem um carro próprio, era apenas quem levava passageiros e a menor parte no fim do dia, como muitos daquela região. Pode-se dizer que os sorrisos também povoam as poucas rendas.

O grande diferencial é que, quando se nasce grande, coisas poucas berram, e a natureza segue seu caminho. O homem estava decidido a mudar o itinerário e virou na esquina, à esquerda, dos livros e dos estudos.

Não nos cabe aqui saber quantas linhas cruzaram seus olhos, talvez muito mais que os faróis e ruas do taxi alheio, e começou sua contribuição ao funcionalismo público, sendo agente penitenciário. Mas as grades do local não prenderam o nobre.

Anos depois, com o curso de Direito, não se prendeu às leis ou apenas a clientes, deixou-se conduzir a delegado da Polícia Civil e ainda assim não se podia ficar preso a isso. Virou mais algumas páginas e agora se vê como promotor público.

Nunca mais soube o que foi contar as economias ou suspirar com o dia primeiro de cada mês, porém a mesma sombra imensa, o conduzia a grandezas naturais. O hábito de pegar o transporte público não o abandonara.

E foi numa dessas andanças que, num ônibus, muitos anos depois, encontrou com um colega taxista, dos tempos dos carros alheios. Agora, orgulhoso, o homem era motorista de ônibus. Estava cheio, e mais cheio ficou quando contou a história de sua ascensão profissional ao ilustre passageiro. 

Relatou cada detalhe dos tempos magros e dos atuais. Gabou-se de ter uma renda fixa, de poder dar à família algo mais equilibrado, de finalmente ter vencido nessa vida. Os olhos brilhantes ainda brilhavam quando perguntou ao colega qual era a sua atual profissão.

O servidor não titubeou, encheu o peito e disse que continuava ainda a guiar para os outros e parabenizou o motorista pela satisfação da conquista. E ainda via os olhos brilhando do motorista, quando desceu no ponto e seguiu ao fórum João Mendes.

O promotor se misturou a tantos outros anônimos, não se via diferença entre os vários com passos apressados, sonhos na cabeça e vitórias nos ombros. A diferença era o sorriso, ninguém poderia notar o sorriso terno e gratificante daquele senhor, feliz por ver a alegria alheia passar livre, como um carro solitário durante uma madrugada fria em São Paulo.