sábado, 27 de outubro de 2012

GOTEIRA DE NEWTON

Há momentos desnecessários nessa vida. Outros inatingíveis e aquele dia. Ele jurou que deitou na cama, mas acordou no chão, pior, jurou que havia um criado mudo à sua direita, mas o que pairava, digamos assim, era um lustre. De pronto, ele se sentou, esfregou os olhos e virou de volta: o mesmo lustre estava por lá.

Ereto, preso por uma corrente dourada, entrelaçada num ornamento medieval. O que devia pender, erguia. Levantou, olhou ao redor. Rodeou o lustre, não resistiu. Como um joão-bobo, o objeto fez um vaivém bizarro. E piorou quando percebeu que acima dele viu a cama. Abaixou-se violentamente, com os braços protegendo a cabeça.

Nem estrado, nem colchão ou as almofadas vieram abaixo. Ficaram imóveis. Segundos depois, certificou-se de que não estava coberto, morto ou sonhando. Dizem que todos sabem o exato momento entre a vida e morte. Não? Pois bem, eis o primeiro ser que testemunha isso. Uma espécie de sono e lucidez, de dormência e anestesia, fome e vontade de comer. Tomou fôlego. Assustou-se quando percebeu que conseguiu andar. Agachou-se. Teve medo de se levantar. Mas se ficasse sentado nada adiantaria.

Fez-se em pé e em pé ficou. Encarando tudo. Viu a cama no teto. Nem a mesa ou o TV ou os 2 pares de tênis no canto do chão, teto. Correu todo o cômodo e cômodo seria acordar agora. Agora! Nada. Um passo. Dois. O estômago não lhe veio à boca muito menos a franja não lhe desgrudou da testa. E como somos o ambiente em que vivemos e nos acostumamos a tudo, decidiu percorrer a pé o que a vista já fizera. Andou, parou embaixo da cama e jamais pensou em fazer isso em pé.

Saltou. Não alcançou. Até arriscou pensar se conseguiria puxar a colcha, os travesseiros. Nada estava a seu alcance. Ousou pensar se assim estava, inerte, de que adiantaria toda aquela inversão. Era como vender lingerie no Irã. Foi quando escutou um pingo. Sim. Chovia. Correu até a janela e se espantou de ter corrido. Agarrou-se ao batente da janela e soltou quando viu que não era batente, mas, se batente não fosse, seria o quê?
 
Agarrou-se novamente. Viu que chovia de um chão carregado. Pareceu não crer, assim que estendeu a mão e sentiu as costas da mão molharem. As palmas estavam secas. Virou mais uma vez. Tudo estava intacto. Perfeitamente invertido. Voltou-se à chuva. Continuava em ebulição. Tentou juntar as coisas. Coube a ideia de fazer parte de tudo.
 
Sim. Imaginou que pudesse acompanhar o itinerário dos pingos caso se jogasse. Deduziu a insanidade. Voar seria o convite de tudo aquilo, não cairia, voaria. Então, de súbito, subiu no batente da janela, porque se batente não fosse, nada seria. Tomou coragem, sorriu e ainda sorria quando se jogou, e ainda sorria quando morreu, e ainda sorria antes de saber de quantos piches se faziam as nuvens.       

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

HISTÓRIAS DE SALA DE AULA

Colecionar histórias pode ser um passatempo interessante, mas quando se é professor, deixa de ser hobbie e passa a ser enriquecedor. Seguem 3 histórias de sala de aula e atesto que são verdadeiras ,porque eu estava lá.


*                      *                      *

- Professor, cueca é substantivo feminino?

- Sim. Por quê?

- Mas não é homem que usa?


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Numa aula de mesóclise...

- Professor, quando uso o PO-LO-EI-O-EI?

- Não se usa, o correto é apenas pô-lo-ei.

- Não, estou dizendo no futuro.

- Então, porei algo! Apenas o pô-lo-ei seria o correto!

- Antigamente se usava, não é?

- Usava-se apenas em ecos numa caverna, você berraria pô-lo-ei e escutaria de volta: o-ei, o-ei, o-ei!

 *                      *                      *

Numa aula de regência verbal...

- Atentem-se para a regência do verbo PREFERIR, quem prefere, prefere algo A outro...

- Professor, é igual a frango A passarinho?

- Como?

- Frango A passarinho...

A sala riu.

- Isso seria em crase e vamos ver depois... – tentei salvá-lo.

- Não, olha só, prefiro frango A passarinho.

Mas ele mesmo se entregou às gargalhadas.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

140 TONS DE BRANCO!

Anos de amizade, aprenderam a ver as rugas aparecerem juntas e não notaram. Quase como um ritual, pois relacionamentos longevos são o lado bom do protocolo. Eram adultos já quando trocaram a primeira conversa e pareciam os mesmos quando acabam de trocar a última palavra.

Mesmo que o aperto das mãos não fosse mais tão firme, afinal a artrose acostumou-se a vir junto com as bebidas, sempre quiseram eleger um local próprio para se fugir das esposas, dos casos, da família. Conseguiam por um tempo, mas nem todas as mesas resistiram, em 40 anos, foram 4 os santuários. E em todos eles, os garçons sabiam quais eram as bebidas, os dias, os pratos.

Entre palavras novas e velhas, as risadas, as dores e sussurros, mais do que cabelos caíam pelo caminho, não se podiam cair as estatísticas, as aventuras. E como todo velho acaba colocando numa vitrina os dias gloriosos, a qual apenas um voyer a frequenta, havia um shopping inteiro por aqui. Não se podia voltar, muito menos envelhecer sem histórias para contar. Manias e vontades de velhos não se discutem. Barulho.

Não podiam precisar quantas coisas fizeram ou quantas deixaram de fazer ou quantas ainda viriam. Como no dia em que um esqueceu a aliança no motel e o outro emprestou a própria enquanto fora buscar a original com a recepcionista.                            

E como não se sensibilizar com as sensíveis e milhares de sessões dos 3 Corleones e dos 6 Balboas. Ficaram mudos nos velórios dos pais. Viajaram muito ouvindo as mesmas músicas e contando as mesmas histórias. Defendiam as cagadas alheias e criticavam-se quando os holofotes se apagavam. Barulho. Gritos.

Poderiam seguir várias histórias aqui, mas não conseguiria terminar, porque o barulho cresce, os gritos aumentam e a molecada nos olha incrédula. Bem, não se podia voltar, muito menos envelhecer.

Manias e vontades de velhos não se discutem. Foi hilário ver as mãos enrugadas empurrar as pequeninas, tomar a destra do Neymar e seguir confiante. E o amigo ficou pra ver se o velhote aguentaria o pique até o meio-campo sem um enfarte iminente.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

PILATOS OU PILATES?

Talvez a primeira coisa que o moleque tenha falado não foi “papai” ou “mamãe”, mas o nome do time de coração. O que significa que a paixão era eterna. Cresceu, chorou, vibrou, sofreu e amou.

Pela devoção ao time, ansiando – quem sabe – um pensamento louco, trabalhar com os jogadores. Formou-se em fisioterapia. Fez mestrado e conseguiu uma vaga num clube menor. E quis o destino que seu nome crescesse entre os do futebol.

Recuperou vários num método revolucionário. Logo, um amigo, vizinho de um cunhado de um atacante de renome, indicou-o para tratamento. Tudo bem que o atleta era do time rival, isso não vem ao caso, porque a profissão não escolhe o amor, senão o inverso.

Não só tratou o rapaz, como o recuperou, o que, quase que num relâmpago, o colocou como o responsável da agremiação. Sim, era pago e muito bem reconhecido, para tratar dos inimigos. E fazia com maestria. Ganhou respeito, fez amigos, era querido e se viu contagiado pelo ambiente.

Quis também a vida que colocasse os dois rivais numa final. Ninguém conhecia as cores que defendia o doutor, porém soube que, pela primeira vez. O meia do time estava num tratamento forte, durante toda a semana, para entrar em campo. Quase não dormiram para colocá-lo às ordens.

A equipe toda confiava no rapaz, que era um Merlin da fisioterapia. Semana tensa, ele se dividia entre o trabalho e a cruel bifurcação entre o amor antigo e o atual. Nunca pensou como lidar com aquilo, não sabia lidar com aquilo.

Ao entrar em campo, e passar pelo banco do time de coração, foi hostilizado pelos atletas e pelo técnico.Não entendeu. Mas compreendeu que era um elogio.

O meia estava escalado, poderia se sentir um traidor, e não. Estranhou não desejar estar na arquibancada entre os muitos que reconheceu por ali.

Ao jogo. Tenso, faltas, discussões. O zagueiro tentou por várias vezes voltar com o recuperado para o banco. Caçou o rapaz em campo, despertando um sentimento revoltoso. Entretanto o trabalho foi benfeito, e a lesão não voltaria.

Não voltou e se reverteu numa coroação. Aos 16 do segundo tempo, numa arrancada e numa explosão impressionantes, ele levou meio time e colou o ponto final naquela tarde. Mentiria se não vibrasse com o próprio trabalho. E o jogo acabava. A família dele saindo calada, ele sendo ovacionado.

Depois da festa, decidiu passar na casa do pai. Parou o carro, tocou a campainha. A mãe abriu, ele entrou. O pai o olhou, sorriu, abraçou-o e disse:

- Que belo advogado você teria sido...

sábado, 20 de outubro de 2012

A SEXTA DO SARGENTO PIMENTA

Nunca foi repreendida, sempre educada, exemplo de filha. Dominava o português, o inglês, o espanhol e o francês. Tocava piano desde os 10. Nunca pediu mesada, mas a tinha há 10 anos. Notas impecáveis. Sorridente, centrada. Odiava redes sociais, lia desesperadamente.

Amava cinema, amava teatro, rúcula e frutas. Frituras em festas, saía muito, gastava nada. Poucos amigos. Invejada, desejada, por pais, sogros e filhos. Ainda assim não tinha inimigos. Sentava no fundo do cursinho, mal perguntava, mal falava. Pele muito branca, não se expunha ao sol.

Amava Beatles e Mozart. Amava pintura. Não pintava. Fã de Quino, de Camus, de Eça. Odiava Chaves, desprezava E.L. James, mas se excitou com duas páginas.

Não reclamava. Não chorava nem surtava. Não tinha cólicas menstruais. Nunca beijou ou algo assim. Viu três novelas na vida, conheceu várias igrejas e rezou uma vez. Odiava praia, amava cães, mas tinha um gato. Ganhou aos 18 anos um passaporte de presente, preferiu ao carro.

Fazia as unhas em casa. Molhava morangos no leite condensado e não dava ao gato. Jantava com os pais todas as sextas à noite. Passou na primeira fase da Fuvest. Passou na segunda fase da Fuvest.

Única. Perfeita. Dez anos de mesada em uma poupança, 4 idiomas saltando entre os dentes. Tanto dinheiro assim, tantas palavras assim. Naquela manhã ela não se levantou. Porque há dez horas embarcara num voo non stop a Londres para nunca mais voltar. Mas o gato ficou...

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MARCELO CORTEZ, GEORGE FOREMAN E MIYAGI-SAN

Existem histórias que muitos diriam terem saído da mente fértil das pessoas e outras que de tão férteis não poderiam ser verdadeiras. Mas esta não, aconteceu de fato, porque Marcelo Cortez, comparsa e amigo, estava lá.

Numa tarde de trânsito intenso em São Paulo, ou seja, qualquer dia da semana, em plena avenida 23 de Maio, um motorista de ônibus, crioulo imenso, de 1,90, deu uma fechada numa Kombi enferrujada, guiada por um japonês de uns 70 anos, mais enferrujado ainda.

A discussão foi iminente, pois homens disputam duas coisas nessa vida, mulheres e as pistas das ruas. A Kombi acabou quebrando e o trânsito parou, acalorando mais os nervos.

Nunca se soube os nomes dos envolvidos, mas se pudéssemos batizá-los de George Foreman e senhor Miyagi, os contornos seriam tão perfeitos. Um xinga daqui e outro de lá, até a paciência ceder. E cedeu. Bastou um “Vou partir sua cara” e nunca se soube de quem veio, para o pastelão começar.

O gigante desceu do ônibus, e o gafanhoto saiu da ferrugem. E enquanto todos se pasmavam com a morte iminente do velhinho, eis que o show começou. Em movimentos convidativos, um prenúncio ao combate, o pequeno oriental começou a fazer os movimentos do Kata, uma dança que antecipava o ataque.

Respiração, determinação, concentração, movimentos perfeitos, olhos vidrados, tensão no ar. A roda se abriu, a montanha estaria perdida e olhava aos lados numa espécie de ajuda. Sabia do que aqueles japoneses mirrados eram capazes.

Ficou num impasse, se tomasse uma surra, talvez ficasse anos no chão, pela vergonha e a burrice de comprar uma briga daquelas. Aqueles movimentos circulares amedrontariam qualquer guerreiro.

E foi então que aconteceu, foram apenas dois golpes, e poderiam ter sido mais, se  Miyagi-san não tivesse desmaiado e acordado apenas no dia seguinte. Pois é, já não se fazem mais samurais como antigamente.

 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

ALGUÉM VIU O GATO PRETO?

Já diria Francis Bacon que "evitar a superstição também é uma superstição". Assim como problemas, a superstição se encaixa na vida de todos. Em uns mais, em outros não. Envolver futebol então, o clichê fica completo.

Naquele ano, os irmãos e dois amigos começaram a temporada indo aos jogos de modo normal. Sem mais detalhes. Fato é que o time jogou tão bem, que decidiram fazer uma brincadeira:

- Próximo jogo, todos sentam na mesma disposição no carro. E usam uma mesma peça de roupa.

Ratificando o primeiro parágrafo, existem aqueles que levam bem mais a sério essa história de pé de coelho. E assim foi, outro jogo, mesma disposição no carro e cada qual com uma mesma camisa ou um boné. Mas um deles não, dos pés à cabeça, tênis, meias, cueca, calça e camiseta.

Todas as vezes que fossem ao estádio, era assim que acontecia. Uma espécie de feitiço de tempo, e o pior é que tudo caminhava. Incríveis 100% de aproveitamento. Só vitórias. E de repente, o talismã virou o menino. Os outros só se preocupavam em sentar nos mesmos lugares.

Era comum perguntarem ao trevo da sorte se os apetrechos estavam prontos ao jogo seguinte. E foi assim que - jogo a jogo - os resultados eram obtidos. Não pela dedicação dos jogadores, nada, tudo estava nos rituais e principalmente nas roupas do moleque.

E chegaram à final do regional. Passaram a noite anterior concentrados. Chegaram a espiar se tudo estava ok para domingo. Como uma relíquia,a indumentária estava dobrada em cima da cama, reservada para a volta olímpica.

E foram confiantes, decisivos. Os anos sem campeonato acabariam naquela tarde. Mas o improvável aconteceu. Tudo o que poderia dar certo ficou pra fora. O time perdeu e aquela besteira de superstição foi esquecida. Até a volta em silêncio, cada um sentou onde pôde.

O fusca azul já se estava bem longe do estádio, quando um berro foi dado:

- A cueca está errada!!! - gritou o talismã, olhando para dentro da calça.

Como pude ser tão imbecil de confundir cueca branca com listras pretas com a bege de mesma estampa?

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O CUMBUCA PESTILENTO

Não eram irmãos, mas viviam como univitelinos. Desde a terceira série. E seguiram assim até os 20 anos, quando um deles engravidou a namorada, de 17, e teve a maturidade adiantada.

A separação foi iminente. Responsabilidades diferentes, caminhos opostos. Mas quis a vida que a esquina de ambos voltassem a se cruzar quase 20 anos depois. O casado, agora com mais um, de 15, e a mais velha de 20, e o solteiro com ninguém.

Numa noite, na casa da família, estava o amigão do pai, finalmente haveria um rosto para as várias histórias que circularam pelos cantos da casa. Não se sabe ao certo qual foi o momento exato, mas quando a menina cruzou a sala, mais do que o perfume entrou com ela, uma libido avassaladora tomou conta do tio.

Sorridente, educada, parecia uma extensão do pai, formando quase que um trio de amigos. E assim passou a noite, agradável, desejou ter para si uma cozinheira como aquela e uma menina como aquela.

Viraram amigos nas redes sociais. Os gostos eram os mesmos. As brincadeiras também. Madura para a idade dela, imaturo para a idade dele. Par fatal. Quando perceberam, conversavam mais os dois que os amigos. Quando perceberam, trocaram os números dos celulares.

Um torpedo numa madrugada, um “durma bem”, despretensioso e atrevido terminou em “beijaria sua boca uma noite inteira”. Ficaram a madrugada inteira conversando por sms.

Por acaso – pensemos assim – por acaso, o quarentão saiu de uma reunião perto da faculdade da menina e a viu na rua. Ele parou, ela entrou, uma carona despretensiosa. Mas a mão dela foi mais rápido e já estava na perna dele, que acelerou e parou no primeiro Drive-in que lhe cruzou a janela, o Cumbuca.

Exatos 30 minutos por lá ficaram, e não se sabe o que fizeram porque a cortina estava fechada. Eles saíram, ele a deixou em frente ao prédio e sumiu de lá. Uma loucura. Ele estava sorrindo um sorriso besta, ela sorria outro bem mais encorajador.

O pior é que essas coisas ocorrem em duas ocasiões, uma como evento, outra quando se atribui uma narração. Mas aqui, ficaríamos com o ímpar.

Silêncio. Mas vai explicar a gargalhada que a menina soltou quando, numa caminhada com o pai e a mãe – no momento em que passavam pelo Drive-in, viu um bloco de concreto na entrada e o selo da Anvisa interditando o local. Se os pais não desconfiaram, ao menos o órgão de segurança tratou de pôr fim ao caso.

 

 

domingo, 14 de outubro de 2012

O BEIJO DO CAPETA!

A infância é determinante. Tanto para o bem como ao mal. Digamos que os caminhos que se trilham são conquistados pelas direções que nos mostram. E aqui temos um exemplo típico de efeito contrário.

Ela, uma menina de 4 ou 5 anos, não se pode precisar dessa distância. O irmão, fanático pelo Kiss cismou em se fantasiar de Gene Simmons, porque ídolos não são escolhidos, eles nos escolhem.

E se isso realmente vingaria, naquela noite, ela foi escolhida e mais do que rock'n'roll, havia uma promessa de festa a noite toda. Então, o rapaz decidiu se trajar de sonhos - ou pesadelo - e pregar uma peça na caçula. Escondeu-se no fundo da casa e esperou pelo bote certo.

E mais do que susto, conseguiu arrancar um soluço tenebroso, trevoso e um choro angustiado. A pequena mal conseguia descrever o que pulava na frente dela, só sabia que se o demônio não existisse, acabara de ser criado.

O mal estava feito. Porém graças aos bons ventos, a menina cresceu e percebeu que outros sustos poderiam ser mais vis que aquele diabo negro. Apaixonou-se pelo som pesado da banda e disse a si mesmo que o trauma se calara.

O que realmente se prova é que, mais de 20 anos depois, toda vez que o Kiss entra pelo ar, a moça sempre se pega olhando aos lados. E que, em um dos shows deles por aqui, ela ficou de costas ao palco, porque somente o que os olhos não veem, o coração sente. 

sábado, 13 de outubro de 2012

QUANDO CLARK GABLE VIROU CLARK KENT

Clark sempre sonhou em ser herói. Desde que se reconheceu como homônimo do Super-homem manteve essa mania quase obsessiva de se diferenciar de todos.

Tudo bem que o pai dissera que o batizara depois de assistir ao ...E O VENTO LEVOU, mas isso era apenas um detalhe. Quando criança, imaginou-se voando, mas comeu grama e levou três pontos na testa em sua primeira tentativa.

Na adolescência, imaginou salvar a mocinha do intruso insistente, mas o namorado teve lá seus motivos para lhe sapecar um bofetão. 

E teve a certeza de que todas as responsabilidades viriam na fase adulta. E como sabia que não voaria, não levantaria trens ou pararia aviões, decidiu ser de ferro. Decidiu ajudar as pessoas da melhor maneira possível, um talento inerente a ele: o humor.

Cativava o mundo com seu sorriso e seu alto astral. Era ouvidos aos chorosos e ombro aos capengas. Levantava o moral mais que Lexotan. Enfrentava depressões e as tampava com palavras doces. Era imbatível. Não havia dor que resistisse a Clark.

Até que um dia, os inimigos o pegaram, esperaram numa esquina e avançaram. Estava envolto num mar de lamúria e autopiedade. Não conseguiu sair, não teve voz. 

Não havia espelho, não havia saída. E hoje, lá se vê o homem de aço, à espreita, procurando a própria paz. Ninguém o procurou porque não havia uma bula que explicasse como. A capa enroscou num alçapão e o herói morre só, porque ninguém salva o super-herói a não ser ele mesmo.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

TRILHAS E HISTÓRIAS

Eu e minha fiel escudeira
A vida fica mais emocionante quando você faz caminhadas, quando está atento às coisas à sua volta. As 3 pequenas histórias a seguir aconteceram nas caminhadas que faço por aí com a Mafalda, e atesto a veracidade delas porque eu e minha pug estávamos lá.

*          *          *

Descendo uma das ruas da Chácara Klabin, um rapaz me aborda num domingo pela manhã:

- Onde fica a rua Russeau?

- Russô?

- Não, Russeau. - insisitiu

- Se escreve Rousseau, mas se pronuncia Russô! - tentei.

- Droga, esses americanos querem dominar o mundo.

*          *          *

Parado numa esquina em uma das ruas pelo Ipiranga, duas mulheres conversando.

- Fulana não gosta de sicrana porque sicrana é negra.

- Odeio gente precoce.

*          *          *

Numa noite quente, pronto para atravessar a rua Vergueiro, esperando pelo semáforo abrir, uma senhora a mim e à Mafalda:

- Que lindinho!

- É ela, é menina. - pontuei.

- Quem disse que eu estou falando da cachorrinha?

*          *          *






segunda-feira, 8 de outubro de 2012

SEM LEGENDAS

Não há comparação entre legendas e dublagem, mas quando o talento é latente, temos de aplaudir em pé a versão em língua portuguesa!

Segue uma sequência dublada e maravilhosa do grupo inglês Monty Phyton, com o filme A VIDA BRIAN. Assisti a esse filme nos anos 90, quando o longa já tinha mais de 20 anos. Hoje, quase 40 anos depois, é uma prova viva de que genialidade sempre rimará com longevidade.

Espero que esses 4 minutos inspirem vocês a ver - ou rever - os 87 restantes!

Bom divertimento e: "olhem sempre pro lado bom da vida!".

sábado, 6 de outubro de 2012

OS CEGOS DO LOGRADOURO

Existem situações em que você imagina nunca mais ter de presenciar ou protagonizar. Ou por vergonha ou pela simples bizarrice do fato.

Dia desses, indo para a aula, olho par ao lado e vejo uma menina atravessando a rua e lendo CINQUENTA TONS DE CINZA. Não importa a qualidade da leitura, o melhor é saber e ver um leitor devorando uma história, entregue à trama e a outras coisas também, se nos apegarmos ao teor da história.

O que isso tem a ver comigo? Em 2002, atravessando uma viela no bairro do Sumaré, em São Paulo, eu fiz a mesma coisa. Atravessei a rua, mas DOM QUIXOTE estava comigo, ele, o moinho e Sancho Pança não viram também, mas um Corsa verde brecou em cima de mim!

Paralisei de medo e de vergonha, afinal nada justificaria minha imprudência. Quando olhei ao motorista, havia uma coisa vermelha ao volante. Reparei que era o Nando Reis, que, sorrindo, colocou-se pra fora do vidro e me disse:

- Meu amigo, ninguém lê no Brasil, você acha que eu mataria um leitor?

Achei o máximo, o susto passou e a lição ficou.

E voltando à moça que lia E. L. James, fico imaginando se ela fosse atropelada. Fico imaginando se eu fosse atropelado. Mesmo que a qualidade da leitura fosse diferente, dois leitores e amantes das letras estariam mortos.

A diferença é que eu levaria como óbolo ao barqueiro a lança de Dom Quixote e a menina, a do Christian Grey.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

CONAN JR.

Na aula de inglês, em plena atividade de fala, os alunos estavam repetindo a pronúncia das palavras. E sempre chega a hora da tortura, quando cada um tem de fazer um solo, interpretando as personagens na conversação do livro.

Professor ouvindo as vozes trêmulas, corrigindo cada pronúncia. Chega a vez de um adolescente marrento. Ele se nega a cumprir os pedidos do teacher. Pacientemente, ele pede mais uma vez que o menino aja como os demais, porém, de um modo mais ofensivo, ele se nega.

Depois de mais um pedido e de mais uma negação, o professor pede que ele se retire da sala, porque se não fosse para fazer valer o investimento dos pais, que se retirasse. Ele se nega de modo quase bárbaro. O lente não tem outra saída.

- Não sai você, saímos nós.

E o deixa lá, quase como num castigo e numa situação constrangedora. Todos se levantam empolgados com a coragem do educador e com a empáfia do rebelde.

No dia seguinte, o pai, de aproximadamente 2,10 está na coordenação querendo saber quem foi o professor que teve a coragem de fazer aquilo com o filho.

Quando a coordenador aponta a mim, sorrindo, tentei pensar numa boa explicação nas entrevistas em outras escolas para o olho roxo. Quanto mais se aproximava, mais crescia - uma espécie de Conan de regatas. Ele chegou perto, olhou-me, estendeu a mão e disse:

- Obrigado, professor, e parabéns por mostrar que ainda se exige respeito aos mais sábios!

Eu não tive reação, senti vontade de abraçar o cara por me livrar do desemprego e da surra, mas esse foi um dos motivos que me disseram estar no caminho certo.