terça-feira, 28 de julho de 2015

NÃO POSSO MAIS VIVER SEM MIM

E não é que há pessoas que nasceram para se autossabotarem? Firmina era um exemplo típico, daquelas que se odeiam tanto que o inimigo até tenta ajudar. Talvez fosse o DNA ou alguma praga cósmica ou religiosa, que seja, estava em seus dias e em suas decisões o sacramento da sentença à morte.

Isto não era previsto, não estava escrito nas estrelas. Coisas ruins acontecem a todos. Decisões equivocadas também, mas fazer disso uma rotina era talento de poucos. A primeira chance, e isso é dado a todos, aconteceu quando ela tinha 7 anos. Não se pode medir as decisões de uma criança, as possibilidades de erro são tão intensas que o acerto deve ter como brinde 10 anos de sorte em tudo.

Ela adorava o gatinho da vizinha. A proximidade dele era ainda maior pelo fato de a mãe proibir qualquer coisa de 4 patas pela casa. Gostava tanto dele e de ser amiga da menina que teve a brilhante ideia de trazer outro amigo ao felino. Encontrou um cachorrinho pelo caminho naquela tarde. Ele a acompanhou como sombra. Seguiu-a até a casa da amiga, que ficou curiosa com a surpresa que haviam prometido ao Frajola. Assim que a garota apareceu no portão com o gato, o vira-lata começou a latir. O gatinho se assustou, pulou dos braços da dona e sumiu. A amizade terminou.

Na adolescência, depois do trauma da melhor amiga perdida, finalmente retomava uma segunda chance. Eram inseparáveis. Estudos, deveres, cinema. Foi quando a menina lhe revelou que estava apaixonada por um rapaz do segundo ano. Corriam as más línguas que ele não tirava os olhos de Firmina. Mas ela nem queria saber do assunto. Não deixaria outro gato escapar.

Assim que soube que o rapaz odiava as meninas atiradas e tinha a predileção pelas mais difíceis, teve uma ideia genial. Na volta e no ponto de ônibus, decidiu agir, chegou mascando ensurdecedoramente um chiclete, de batom rubro, e ombros à mostra, chamou-o de gostoso e tascou-lhe um beijo à queima-roupa. Não passariam de 5 segundos e o empurrão viria. Não veio. Ele a agarrou e não queria mais soltá-la. Depois a moça teve de explicar à rancorosa amiga que a intenção era genuína. Acabou o ensino médio sozinha.

Passou os 4 anos de faculdade colada nos estudos. Talvez tenha sido o trauma com o gato ou com o rapaz da adolescência. Seus amores nunca aconteceram. Talvez tenha acontecido na mesma época em que surgia uma amizade madura e indissolúvel. O trabalho serviu para uni-las e unidas ficaram, mesmo que cada uma tenha seguido em frente depois de 3 anos no mesmo setor. As empresas eram distintas, entretanto a relação permaneceu.

Foram madrinhas de casamento uma da outra e todos os erros não se repetiriam. Eram confidentes. Sabiam mais de uma e outra do que de si próprias. Até que a amiga começou a ter problemas para ser mãe. O marido desejava gêmeos e não havia período fértil, reza, benzedeira que solucionasse o problema. Justamente na mesma época em que começaram as desconfianças de Firmina com o marido. 

As queixas de ambas aumentavam. A sessão de terapia acontecia diariamente. Uma menstruação atrasada e uma noite de sexo serviam de alento, porém se dissolviam dias depois. As cólicas menstruais e as reuniões noturnas as traziam para a mais dura realidade. Eram como irmãs e se apoiavam uma à outra. Ela não deixaria um terceiro gato aparecer.

E, naquela noite, a amiga liga desesperada, entretanto Firmina não atende à ligação. Duas horas incessantes depois, já de madrugada, a campainha toca. A moça, com os olhos inchados, recebe a irmã também em frangalhos. "Ele foi embora, querida" e se abraça à Firmina de modo desolador, que retribui também o afago soluçando sem parar, dizendo à leal e à infértil escudeira. "Era a secretária dele, sempre foi".

E ambas chegam ao limbo, beijando os pés do capeta sem dó nem vergonha. Horas depois, já amparadas, fazem um voto de amor eterno. Cansadas, decidem fazer um chá. Talvez tenha sido o cheiro da erva-cidreira e Firmina levantou de súbito, levando ao chão tudo que havia na mesa, xícaras, colheres, a bolsa, e foi vomitar em jatos no lavabo da sala.

Não havia amanhecido quando a amiga, depois de se certificar que a moça estava bem, começou a recolher tudo o que havia no chão. Ah, sim, o teste de gravidez ao lado da escova tinha dado positivo...

terça-feira, 21 de julho de 2015

AMOR...

Todo ser humano nasce com a capacidade de amar. Seja o amor por alguém, por algo, por um animal, independe, todos sabem amar.

Não existe um jeito de amar, existe o amor em si.

E eles se encontraram, numa mesma frequência, numa mesma química. Ele adorando falar, ela adorando fazer.

Pode-se dizer que amor é atitude, porém há quem discorde, ou melhor, complemente, dizendo que amor também é palavra. Porque a palavra alimenta.

Tinham tudo, o tempo certo, o tom exato e a cor equilibrada. Mas quando e se a dúvida aparecia, um reparava que ela falava de menos e a outra reparava que ele falava de mais.

E, às vezes, um reparava que ela agia de mais e a outra reparava que ele agia de menos. Um estudando o outro.

Quando se ama, não há que se entender, há que se sentir, porque a razão aparece em livros, não no beijo.

E o ser humano muitas vezes se dá o direito à dúvida e, dependendo de quão coeso seja o sentimento, o genuíno sobrevive sempre.

Mas não há aqui um tratado de relacionamentos, há um dia de chuva, numa tarde fria.

Não se sabe precisar quem sentiu primeiro, fato é que naquele momento, ela apareceu na porta do quarto, enquanto ele lia. Ela chegou bem perto e disse:

- Eu amo você.

Ele sorriu, olhou-a de uma forma tão terna e plena que o sorriso disse mais que todas as vezes que a boca o fez. Depois, ele beijou-lhe os olhos, abraçou-a e massageou-lhe os pés.

Não se sabe se ela voltou a falar aquilo de novo ou se a massagem se repetiu, ambos, depois daquela tarde, ratificaram que aquilo tudo seria para sempre.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

LONG LIVE ROCK'N'ROLL

Não soube quando ou qual foi o exato momento, mas, antes mesmo de falar “mamãe”, a menina já cantava o que David Coverdale cantasse. Havia até um vídeo caseiro, em VHS, dela, vibrando ao som de HERE I GO AGAIN, e isso ela deveria ter uns 2 aninhos.

Existem paixões, existem obsessões e existem coisas que Brígida sabia. Ela não o queria para marido, ela não o queria para amigo, ela o queria para se vestir dele, como um casaco de couro, como uma calça jeans, como uma pele que a esquentasse no inverno e a resfriasse no verão.

Paredes do quarto, capas de caderno, proteções de tela, para onde se olhasse a vida dela enxergava-se o inglês de cabelos longos e voz de trovão. Sua fase no Deep Purple e toda a trajetória no Whitesnake eram a trilha sonora da moça.

Shows em VHS, shows em DVD, em blu-ray, tudo o que já existia passara pelos olhos dela. Só faltava o ao vivo, que aconteceria em duas semanas.  Ela conseguiu. Anos rezando e ela conseguiu. Sim! Brígida não dava chiliques, Brígida não berrava, no entanto explicar por que chorava tanto sem emitir som algum por dois dias seguidos não foi tarefa fácil.

- Ela vai ao show do Whitesnake... - e quem a conhecia bastava a justificativa. Jantou aos prantos, estudou aos prantos e trabalhou aos prantos.

1 dia antes do show, talvez fosse pela proximidade do evento, ou talvez fosse pela proximidade do evento, ou talvez fosse pela proximidade do evento, ela caiu em febre, de 40 graus. Desmaiou no trabalho e acordou em casa. Não comia direito há 3 dias, só bebia Coverdale e mais nada. 

Eram 10 horas da manhã, quando se viu no quarto com os pais, a irmã e duas amigas. E bastou olhar a camiseta preta de uma delas, apenas se ergueu da cama e começou a tirar o pijama.

- Ficou louca, o que está fazendo?! – disse a mãe mais estarrecida ainda quando teve a certeza de que ninguém a prenderia por lá.

- Vou ver o Coverdale... – calma e firmemente.

O pai tentou impedi-la, porém o olhar que dera a ele foi o suficiente para que lhe desse a extrema-unção. Vestiu-se, a mãe chorando, a irmã indiferente, as amigas sorrindo, ampararam-na pelos braços. Driblaram a sorte e seguiram.

Às 19h, os portões foram abertos, as últimas forças que teve, ela usou para correr e correu mais que todos, que, minutos depois, a alcançariam no parapeito, colada ao palco.

E Brígida desandou a chorar. Teve a certeza de que não estava anêmica, desidratou de tanto chorar e desidratar-se-ia, caso seguisse com aquilo tudo. Chorou com todas as forças, porque sabia que o veria, sabia que merecia tudo aquilo, sabia que em algum momento, ele a olharia e isso, dentro de todas as utopias que sonhou, seria o laço mais estreito com o ídolo.

21h30. As luzes se apagaram, ela ainda chorava e rezava para ter forças e conseguir vê-lo claramente. A música veio junto com o clarão. Levantou a cabeça e não sabe qual momento aconteceu, parece que viu um loiro chegando ao microfone e tudo ficou escuro. Desmaiou. Sim, no momento crucial entre herói e fã, ela foi fã e ele herói, e a vida teve de tirá-la de lá.

As amigas berraram e os seguranças foram mais rápidos, debruçaram-se sobre ela e a puxaram para dentro do setor entre o palco e o público.

E, como num estalo, ela acordou. Talvez não tenha premeditado, num salto, livrou-se de um deles, chutou as partes baixas de outro, escalou a estrutura de ferro e, em segundos, estava cara a cara com David Coverdale, que sorriu. Não o mesmo sorriso dela, mas sorriu.

Atirou-se no pescoço dele, por segundos, porque os trogloditas a tiraram de lá numa velocidade muito maior, sob a ovação do público e os berros de outras.

Brígida não pôde ver o show, escutou-o de fora até o fim, porém aqueles segundos intermináveis que passou valeram cada lágrima. No dia seguinte, ela chegou no trabalho no mesmo horário e seguiu até lá cantando: “here I go again on my own”.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

O BOMBRIL DA VIDA

Sempre acreditei que a fé é um excelente remédio a tudo. Serve como um utilitário a qualquer um, a qualquer situação. Serve como apazíguo ao depressivo, como biotônico ao otimista, como milagre ao descrente. É o Bombril da vida.

Serve como antagonismo e compartilhamento. A primeira vez que entendi o primeiro foi no filme ENSINA-ME A VIVER, em que se vê um jovem que simula a própria morte aprendendo a alegria e o sorriso de uma jovem senhora de 79 anos. 

Quando assisti ao filme, na década de 1980, não havia compreendido muito bem a temática, mesmo porque não havia o Rambo para matar os vietcongues maldosos. Revi o longa há uns 5 anos e pude entender que todos, até mesmo Rambo, deveriam passar alguns dias com a insuportável felicidade de senhora Maude.

Quando li DOM QUIXOTE, em 1999, deparei-me com a inusitada e manjada análise de que o cavaleiro e seu Rocinante eram inseparáveis na loucura. Mas, ao fechar a última página, tive a certeza de que o homem nunca fora maluco, fora sempre um incansável otimista, que encontrou na morte e em seus devaneios a ratificação de tudo que cria.

Minha apreensão se tornou doce, quando vi O EXPRESSO DA MEIA-NOITE, em que o estudante Billy Hayes é preso no aeroporto turco e jogado numa prisão degradante, sofrendo torturas físicas e psicológicas. A fé bate à sua porta e ele a recebe sem querer. Ali, eu aprendi que tudo pode acontecer.

Minha intenção não é convencê-los de algo. Minha intenção é apenas saber que, como uma sombra, uma surpresa, uma recompensa ou por erro, a fé tem lá suas facetas. Sonhar com ela, desejá-la ou idealizá-la não é escolha, mas talento de muitos.