quinta-feira, 31 de julho de 2014

EU NÃO SOU DA RUA

Não tinha dormido muito bem, porém não carecia de reclamar sobre isso. Uma noite qualquer como qualquer noite, não teria sido a última, mas tinha sido diferente. Tomou banho, abriu a porta e saiu. Tudo bem que o estresse de dias e mais dias o deixava louco, entretanto não se lembrou de ser feriado. Até olhou no relógio várias vezes para saber se estava no tempo certo. Estava.

Ruas quase vazias, mas ainda assim passos de lá e cá apareciam por ali. Chegou até a padaria, a mesma padaria de sempre. Percebeu que eram funcionários diferentes. O Tião da chapa não estava lá, a senhora gorda com o poodle também não. Nem a menina do caixa era a mesma. O pão não veio como sempre pediu. Perguntou pelo chapeiro, mas ninguém ali conhecia o Tião, a velha gorda , o poodle ou a menina do caixa. E a padaria era a mesma.

Contrariado, pagou por tudo e saiu. Costumava caminhar até o trabalho, o cardiologista recomendou meses atrás, parou na esquina, Certificou-se de que estava no horário, e os carros não passavam. Incrível. Parou na banca do Bigode, que não estava lá. A moça que o atenderia não conhecia o Bigode, provavelmente nem o Tião, a velha gorda, o poodle ou a menina do caixa. Ainda assim, venderia o jornal do dia, que alertava ser aquele dia mesmo.

Não comprou. Na penúltima esquina antes do trabalho, gostaria de entrar no restaurante de sempre, mas as portas ainda se fechavam a ele. Lamentou. Avistou o engraxate na entrada do prédio da empresa. Piorou a lógica, havia um engraxate, no entanto era outro menino por lá, que sorriu a ele e ofereceu graxa.

Estava no meio da lógica absurda, mesmo lugar, pessoas não. E parece que tentaria algo mais arriscado, porém as meninas da portaria eram diferentes, sabiam que ele era e onde trabalhava, não pediram seu crachá, que passou perfeitamente e acessou o sexto andar.

Ao passar pela recepção, viu que não era a Roberta da recepção, mesmo que a menina sorrisse e o cumprimentasse. Ele parou, saiu, olhou o nome e teve certeza de que estava louco porque tinha certeza de que estava certo. E viraria um caos ao chamá-lo pelo nome. A contrariedade não permitiu retribuir. Passou correndo pela recepção. Não eram o João, do Financeiro, o Paulo, do Marketing ou a Cleide do RH. Não eram. Eram outros, que sorriram a ele como sorririam o Tião, a velha gorda, a menina do caixa, o Bigode, o engraxate, a Roberta, o João, o Paulo, a Cleide e até o poodle.

O mundo dos sorrisos se chocava com a sisuda e desesperada expressão do homem, que saiu correndo dali e se sentou em frente ao elevador. Sentiu-se zonzo, como se o mundo estivesse fugindo dele. Como se a vida tivesse escapado de si. Foi então que o elevador apitou e a porta se abriu. Chamado pelo nome, ele reconheceu aquela voz, entretanto não queria ter aberto os olhos e abriu e olhou e tudo se findaria ali, quando viu a avó sorrindo e convidando a uma caminhada. Ele se levantou e quase sorriu, porque o casaco de lã jogado às suas costas aqueceu-o por completo e o protegeria de todos os estranhos por ali.



segunda-feira, 28 de julho de 2014

AUMENTE QUE ISSO AÍ É ROCK'N'ROLL (clique no link abaixo e leia com rock'n'roll)

 No carro apenas o som do rádio e a respiração do casal. Ela olhando o nada, com uma pista martelando a sua mente e ele olhando o trânsito com nada além da pista. “Falo, não falo”, pensou. “Passo, não passo”, pensou. Quando ela viu que poderia falar e acabar com tudo, no momento da primeira vogal, o acorde daquele velho rock’n’n’roll entrou no carro e sentou ao lado dele, que, sem titubear, aumentou o volume, e começou a martelar o volante.

- Amor, será que você poderia abaixar o volume, porque...
- Amor, instante! Depois desse som...
- É que eu...
Agora ele entoava perfeitamente a primeira estrofe.
- Acho que o que eu tenho pra falar é...
-“Well gidy up gidy up and get away, we're goin' crazy and we're goin' today…”
- Amor, por favor…
- “Here we go, rockin’ all over the world”.

Hora da parte instrumental, momento excelente para ela abaixar o volume...
- Amor! Imagina! – aumentando o volume – Essa parte é ótima, ouça esses metais!
- Querido, será que eu poso falar???
- Mas, por Deus, espere esse som acabar, mais 2 minutos! – disse ritmando com a bateria os movimentos da cabeça.

 Mas ela não poderia esperar, tentou mais uma vez...
 - Por favor, será que você pode baixar esse...
 -“I'm gonna tell your mama what you're gonna do, so come on out with your dancing shoes…”.
           
 Então, tomada por uma insanidade previsível, ela berrou cinco mil decibéis mais alto que o volume 18 daquele som:
 - Abaixa a porra desse som!!!
 Ele, numa expressão aterrorizada e surpresa, obedeceu à ordem do dia, baixou tudo o que poderia e com aquele olhar de “espero que seja algo realmente importante, porque a última parte da música também é muito boa e, quando uma música é muito boa, deve-se prestar uma reverência a ela escutando-a até o final” disse:
 - Diga...

 Sentiu que era tudo ou nada, que deveria decidir sua vida antes da próxima curva e que tudo poderia depender da resposta que ele daria. Seria o silêncio até o destino final daquela viagem e o fim da viagem juntos ou o alívio para o resto de sua vida e sem mais delongas, emendou:
 - Aquele SP Eventos na fatura do cartão de crédito, você não me levou a nenhum motel nesses últimos meses! Como você pôde?! – já com lágrimas nos olhos

Ele parou incrédulo, olhou com aqueles olhos arregalados - que poderiam simbolizar desde um ultraje, até uma revelação ou até um “você me fez abaixar o volume para dizer isso?! E eu que pensei que fosse algo realmente importante, porque a última parte da música também é muito boa e, quando uma música é muito boa, deve-se prestar uma reverência a ela escutando-a até o final” – e disse:

- Emprestei o cartão para o Rubão, que estava caído de grana e precisava impressionar a menina...
- Como?! Como?! Você acha que eu acredito nisso?!
- Creia no que você quiser...
E voltou a aumentar o volume, mas a música já havia terminado. A curva já havia passado, assim como a música, mas as dúvidas ainda tocavam alguns acordes por lá. O silêncio se fez de novo e nenhuma outra música tocaria até o fim do trajeto.

Chegaram em casa. Ela quieta, ele também. Quando entraram, o pisca da secretária eletrônica piscando. Ela acionou as duas mensagens, uma da mãe e a outra do Rubão. Ela escutou chorando a última e se atirou nos braços dele pedindo desculpas. Acabaram a briga na cama. Minutos depois, ainda nus, ele no banheiro, ela na cama:

- Amor, posso dizer à mamãe que vamos almoçar lá amanhã?
- Claro!
- Vou ligar para ela então.
Pegou o telefone e acionou o redial.
- Alô?
- Quem fala?
- Rubens...

I'm gonna tell your mama what you're gonna do, so come on out with your dancing shoes…”.
   

           

           


segunda-feira, 21 de julho de 2014

E A FICHA NÃO CAIU...

Diria uma sábia avó que tudo se resolve na mesa. Alegrias e tristezas, rancores e remorsos, para cada sentimento uma iguaria, para cada sensação um tempero. O ser humano aprende desde sempre a culpar algo ou alguém e a mesa acaba sendo o divã natural da vida.

Mas ainda ela não nos será importante. Fato é que há anos o avô queria uma linha telefônica. O ano era 1975, o já velho homem começou a contar as moedas da aposentadoria e viu que, se economizasse bastante, conseguiria, em 5 anos uma linha para a senhora, a filha e os dois netos.

Estava fissurado na história. Dizia que todo ser digno merecia um telefone, porque sempre foi dado às coisas do futuro, sempre foi dado aos inventos mundanos. Gabava-se de ter dois rádios de pilha e um TV preto e branco. Ninguém além dele poderia ligar os aparelhos, porque ninguém além dele saberia manuseá-los.

Todas as questões tecnológicas passavam por ele. Em 1976, disse a todos que já existia nos Estados Unidos um forno em forma de TV, que se podia ver a água ferver e a pipoca pular. Disse também que havia um aparelho que colocava as imagens no TV na hora que se desejasse.

E endossava a teoria de que “se Neil Armstrong realmente fora à Lua, por que o homem não conseguiria fazer aparelhos dos sonhos? Por que ele mesmo, ainda que velho, não poderia usá-los para visitar a Lua e  tocar as estrelas?”.

Três anos mais, leu numa revista no barbeiro que no Japão o tal sonhado e perto telefone já poderia andar pelas ruas, que o tal celular seria uma moda avassaladora. Foi nessa tarde que saiu correndo pra contar as economias que guardava no cofre secular do pai e se aliviou, estava perto de tudo. E que se o tal celular realmente viesse a existir, o Brasil demoraria anos ainda para tal.

E foi numa tarde de agosto que reuniu a família no jantar, pediu para a esposa comprar carne e fazê-la naquele jantar, porque haveria uma notícia importante a dar a todos. Sim, foi durante o filé mignon ao molho madeira, que ele tinha a grande notícia: o telefone estava ligando àquela família.

Aplausos. Os quase adolescentes vibraram, a filha chorou e a esposa não se continha. Sim. Depois de 4 anos, um a menos, valeu a pena a falta de carne e de peixe. Porque agora estariam ligados ao mundo. Os Rubiões teriam o primeiro telefone na vida.

Começaram as discussões a quem ligariam primeiro, risadas e alegrias, regadas a um tempero fenomenal, a uma iguaria única, a felicidade. Na manhã seguinte, ele mesmo estava na Telesp requisitando uma linha, prometida para duas semanas. Saiu de lá e se deu ao luxo, ainda com a economia, de comprar um champanhe para ocasião e um quilo de bacalhau.

4 anos voaram, mas 7 dias não. O avô não cabia em si, todas as manhãs e tardes ele ficava à espreita, talvez a Telesp errasse pra menos. Porém a noite anterior ao dia veio, e com ela trouxe mais do que uma lua linda, e estrelas cintilantes, trouxe o sono eterno do patriarca, que morreria durante o sono e não mais acordaria.

Foi durante a madrugada, quando a avó acordou e pediu para ele um copo d’água. Ele não apenas se calava, como o corpo não respondia nem a respiração balbuciava. Prantos. Choros. Os vizinhos acordaram. Os netos não criam e a filha lamentava.

A rua amanheceu triste. Rubião estava calado, prestes a realizar seu maior sonho. Puseram-no na sala, e o vaivém alucinante da vizinhança se calou quando a campainha tocou. A ordem de serviço mandava instalar o aparelho. O rapaz entrou assustado e mais assustado ainda quando acatou o pedido de todos, que choravam ainda mais com o sonho do avô.

Ele tomou a água e começou a trabalhar. A avó deixou a filha com os vizinhos e seguiu para a cozinha. Em alguns minutos, o cheiro tomou conta do local. Não era apenas o bacalhau, regado a azeite, muito azeite, como pediu o marido, eram as batatas, os pimentões, as cebolas e o arroz.

Os vizinhos saíram. E o instalador seguia o séquito, até ser parado pela família, os únicos 4 Rubiões que restavam nessa vida. O convite foi feito e ele teve de aceitar. Como citado no início da história, a sábia avó endossava mais uma vez as palavras: “tudo se resolve na mesa”.


E, naquela tarde, o rapaz comeu o melhor bacalhau de sua vida e a família deixou – até quando o carro funerário apareceu – o aparelho nas mãos frias daquele sonhador, que não experimentou o melhor bacalhau do mundo nem atendeu à primeira chamada, mas que deveria estar agora mais perto da Lua de Neil Armstrong, tocando as estrelas.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

AS FLORES DE AUSCHWITZ

Terminar a vida rodeada de fins e sozinha não é a ideia que uma pessoa tem para seu legado. E era assim que todos daquele asilo sentiam. Mesmo tendo tudo o que um hotel cinco estrelas teria, acabava não tendo tudo o que um coração necessita.

Largos campos floridos, 5 refeições excelentes, fartas e diárias. Atividades o dia todo, um clube de campo chamado Auschwitz. Os nomes aqui não nos vêm ao caso, porém vale ressaltar que ele, empresário do ramo alimentício, pai de 5, avô de 12. Ela, viúva de um tenente-coronel, mãe de 2, avó de nenhum.

Talvez tenha sido no gamão da tarde ou na hidroginástica de quinta pela manhã. Fato é que, ao ajudá-la a descer pra água, as mãos nunca mais se soltaram. Passaram realmente a ver tudo como a vida pede, flores em qualquer arte, música em qualquer som, cor em qualquer cinza.

Depois de um mês juntos, com direito a visitas noturnas e vinhos escondidos, decidiram oficializar o matrimônio. O asilo ficou em festa. Até as famílias de ambos apareceram e apareceram todos, todos.

Uma cerimônia harmoniosa, com violinos, daminhas até um padre da mesma idade conseguiu celebrar os 30 minutos de cerimônia, regada a lágrimas e todo o cenário campestre de manhã de primavera e clima de Central Park.

Talvez tenha sido La Traviata, de Verdi, ou talvez tenha sido o clima, ou talvez tenham sido os olhares apaixonados, ou talvez tenha sido um milagre, não importa, fato é que um dos filhos dele, o mais novo, sensibilizado e solteiro, morando num apto de 4 suítes, decidiu chamá-los pra viver com ele, na zona sul de SP, condomínio fechado, segurança etc.

Talvez tenha sido a atitude, o casal, sem titubear, aceitou. E a cena foi completa. Saíram de lá num carro com latas berrando pelo asfalto e placa de recém-casados nas portas. Instalaram-se na suíte dos fundos, cuja visão ao parque do Ibirapuera era perfeita. Havia wi-fi e TV a cabo, além de livros e uma banheira.

Assim como, todas as noites de sexta e sábado, um happy-hour com dez ou quinze amigos, uma barulheira que nem mesmo a porta separando o corredor dos quartos à sala conseguia isolar. Ainda que a enfermeira tentasse pedir um pouco mais de compreensão, depois de ser cantada por um dos presentes, o silêncio não vinha.

O caçula os via apenas pela manhã, durante o café, exigência do pai, para colocarem os assuntos em dia. Ainda assim, nessa frequência, não puderam reclamar da lua de mel, que se findava em 5 semanas.

Decidiram se libertar de vez daquilo. Pior que a falta de carinho é o carinho não estender a mão andando ao lado de ambos. E se libertaram voltando à prisão. E sorriram de novo com mais calma, não sabendo o exato momento. 

Talvez tenha sido durante o café da manhã do dia seguinte, quando uma abelha pousou na violeta da mesa ao ar livre daquele cinco estrelas, margeado por largos campos floridos, 5 refeições excelentes, fartas e diárias, atividades o dia todo, naquele clube de campo chamado Auschwitz

quarta-feira, 2 de julho de 2014

LEE MAJORS OU MICHAEL JACKSON? BERTINHO

Adalberto desde criança queria ser ator. Adorava atuar em frente ao espelho e imitar Gene Kelly aos parentes, mesmo que tivesse de mostrar fotos do americano para a família saber quem era a estrela.

De família humilde, filho de mecânico e de uma lavadeira, seus sonhos não poderiam esbarrar nas graxas do pai nem sumirem com as águas da mãe.

Não se dedicou aos estudos, o pouco tempo que sobrava depois de ajudar no mercado do senhor Antenor, ele se dedicava à dança. Fã ardoroso de Lee Majors, o protagonista de O HOMEM DE SEIS MILHÕES DE DÓLARES, adorava quebrar gravetos como o cara.

A convite da professora, ele via os episódios vidrado, mal tocava no suco de laranja. A cultura e a televisão o fascinavam e acabavam alimentando sua determinação e barriga.

Cresceu, fez duzentas peças no quintal de casa e duas na escola, mas teve de parar porque as notas eram baixas. Sua obsessão foi tamanha que, num esquema – desnecessária a burocracia aqui -, em meses, aos 18 anos, estava nos Estados Unidos.

Arranhava o inglês e passou a ser garçom em Los Angeles. Nos primeiros dias, descobriu um grupo amador de teatro, que atuava para crianças com câncer. Começou como grilo, e uma fala só, lindamente declamada como “It's a beautiful day, kids” – ninguém dizia isso como ele, ninguém.

Falante, simpático e obcecado - por um amigo de um cliente do bar, que conhecia o vizinho da prima de um conhecido do assistente de um diretor - soube que o novo clipe do Michael Jackson precisaria de dançarinos.

BEAT IT seria filmado em dois dias, os testes levariam uma semana, o dono, com a promessa de que Adalberto conseguiria, cobriu a sua ausência. E cá esperemos pelo resultado.

Era noite, quando o telefone do bar tocou. Ele servia duas cervejas, que foram ao chão com o berro da menina do caixa. “You’re in, you’re in, you got it, you got it!!!” – o bar veio abaixo e, por uma noite, ele foi Michael Jackson.

Duas noites sem aparecer pelas gravações, e a estrela estava de volta. A notícia correu pelos clientes, que trouxeram amigos, que triplicaram as vendas de bebidas e o caixa, que rendeu uma reforma mais tarde e um cargo de gerência ao brasileiro.

No dia de estreia do clipe, houve quem cobrasse entrada. Todos se espremiam para ver nos dois TV’s espalhados pelo bar onde estaria o garçom.

Entre os dançarinos e as ligeiras aparições, ele teve uma ideia magnífica. No fim do clipe, ele faz uma aceno à câmera, por dois segundos (4:55 e 4:57) - está de chapéu, à direita, e levanta a mão, dando um olá ao mundo - (se a curiosidade falar mais alto,veja o vídeo abaixo) o cucaracha esteve ao lado do rei do pop, que apertou sua mão, enquanto conversava com o diretor.

Não, Lee Majors não soube que seu maior fã esteve no clipe, mas aquela exibição e o próprio Bertinho - ao menos aos pais - valiam mais do que 6 milhões de dólares e eram mais talentosos que Gene Kelly.