segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O DIA QUE PASSEI DE LADRÃO A ANJO

Quem já teve, ou tem, um cão sabe muito bem o amor que existe nessa relação. Muitas vezes, o sentimento está enraizado em sua alma, outras vezes ele cresce sem explicação, simplesmente porque não existe uma teoria que explique o amor. Não importa, é fato que, onde houver pelos e móveis roídos, haverá uma sensação de alegria e ternura.

Na minha terceira e última separação, por motivos que agora não vêm ao caso, não deixei apenas minhas responsabilidades e um passado frustrado, deixei minha cachorra. Mafalda era tão minha que tinha Paciello em seu pedigree. Enfim, depois da morte do meu pai, foi a minha maior e mais duradoura perda que tive em meus dias. 

Passei meses numa tristeza amarga e em lembranças duras. Era comum abrir meu notebook e rolar as fotos dela tela abaixo junto com minhas lágrimas. e meu amor pelo cães virou uma obsessão escancarada. 

Parava donos e seus cães na rua para mexer com eles, tentava me aproximar dos cães de rua para amenizar minha saudade. Muitos até se deixavam acariciar.  Um raciocínio mais lógico pedia pra pegar outro cão, no entanto eu precisava resolver a Mafalda em minha vida, viver aquele luto com dignidade e estar preparado pra me dar outro pet.

Evitava passar por feiras de adoção, não suportava olhar aqueles cães sem uma forte pontada em minha alma. Tinha de resolver aquele luto. E resolveria no tempo certo.

Sempre tive o hábito de caminhar. Punha uns bons quilômetros para pensar na vida e em outras coisas. E foi em uma delas que me deparei com uma cena inusitada. Na mesma calçada, na próxima esquina, eu vi um peludo sozinho e perfumado.

Era fato que ele havia acabado de sair de um banho, a gravatinha vermelha o denunciava sem mistérios. Olhei-o sem grandes ambições e esperei que alguém se aproximasse. Ninguém se aproximou. O bicho estava sentado, com a língua de fora, olhando a vida. Parecia assustado.

Parei minha caminhada e olhei ao redor. Nada. Tive medo de me aproximar de modo mais brusco e assustá-lo e o danado correr ao encontro dos carros. Tentei mostrar naturalidade, mudei minha rota e comecei lentamente a me aproximar. Na metade do caminho, ele se virou para mim. Eu mantive os passos moderados e parei. Se alguém estivesse atrás dele, logo o chamaria, então não fiz qualquer movimento.

Esperei alguns segundos e nada. Agachei-me, assobiei a ele, que logo devolveu um abanar de rabo promissor. Aquilo me encorajou e fui ousado, dizendo um sincero "Vem cá, danado, vem".  Pois não é que funcionou, o cãozinho correu em minha direção, feliz e me deixando numa alegria nada contida.

Ele pulou nos meus braços, eu o agarrei e não tentei me safar das lambidas que ele me dava. Levantei-me e olhei aos lados. Nada. Alguém aparecia em breve. Nada. entre outras tantas lambidas, convenientemente juguei que minha cura havia acabado acontecer. Deus o havia colocado na minha vida, assim, de presente e de gravata vermelha.

Meu luto havia sumido, naquele momento, Mafaldinha deixaria de ser uma tristeza amarga e passaria a ser uma saudade doce. Respirei fundo e o levaria para casa. Era uma sábado quente e o meu trajeto pedia sombras e o do pequeno também. 

Então decidi voltar pela rua onde o encontrei. Desci com ele no colo e, ao virar, duas crianças berraram felizes e correram ao meu encontro, chamando-o pelo nome. O pequeno ficou arisco e logo quis descer. Os pais vinham atrás e o pet correu ao encontro dos quatro, que me agradeceram emocionados. 

Eu deveria ter ficado egoisticamente decepcionado, mas ver o alívio das crianças ratificou o que meu coração sentiu naqueles poucos minutos. Passei de ladrão a anjo e meu luto havia sumido, o pequeno havia me curado e, dias depois, Brigitte, minha pug, de 7 anos hoje, entrava para a minha vida.    


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A MOÇA DE CABELO AZUL

Foram 5 anos economizando. 5 anos se privando de passeios, bares e outros vícios para que Fernando conseguisse realizar o sonho de conhecer Jerusalém, especialmente a via dolosa, numa promessa que fez à avó, em seu leito de morte. O homem não era lá religioso, mas beatificou a velha, que o criou com amor e afinco durante 21 anos árduos entre o nada e o pouco. Ela fez dele um ser digno e pronto para honrar seus compromissos. Fugia de relacionamentos para evitar conflitos, porque as cinzas de dona Eustáquia deveriam ser jogadas sob os cantos da Cidade Santa. 

Com o dólar em alta, ele suou horrores, mas conseguiu a grana que viabilizaria o sonho da avó. Roteiro preparado, valores em dia, sobrariam até uns mil reais para alguma coisa no Duty Free. fez questão de um hotel bom. Seriam 5 dias por lá e suficientes para que enfim ele pudesse viver a sua vida e realizar os seus sonhos. Naquela manhã de sábado, ele foi à agência de viagens que se tornara da família, desde quando as cotações começaram.

Entrou confiante e aliviado e sentou na recepção, revirando as revistas e esperando sair de lá com passagens e estadas fechadas. Fernando se deu conta daquele perfume cítrico que o arrebatou por inteiro. Não sabia de onde vinha, mas tinha certeza para onde o levaria. E ele a viu ali, serena, com uma paz inebriante: um convite a estragos previsíveis. O cabelo azul não lhe incomodou, pelo contrário, era do tom da poesia e da cor da harmonia.

Foi então que ela sorriu, mas ele não notou se sorriu de volta. "Sabrina". "Pra Jerusalém, e você?". Percebe-se pelo começo como tudo pode terminar. Ambos sorriram. "Pra Toscana". "Fernando. Se incomoda?". "Não, faço questão". E ela abriu espaço ao seu lado e a sua vida. Quando se deram conta, estavam num café, conversando como nunca o fizeram antes. Era aquela confiança cega que só acontece uma vez na vida, e o destino escolheu que fosse naquela manhã.

Descobriram muito um do outro. Ela amava Beatles, ele também. Ele preferia os filmes melancólicos, ela também. Viam-se um ao outro em outro corpo, em outra vida e tudo numa química só. "Vem comigo pra Roma, de lá você  segue pra Jerusalém e me encontra na Toscana". 

Era uma proposta tentadora e irrecusável. Uma paixão clichê das boas no melhor roteiro clichê aos apaixonados. Ele sorriu, mas nem os mil reais restantes o ajudariam. "Então eu vou com você pra Jerusalém, e você volta comigo pra Roma. Lá, a gente se vira pra chegar à Toscana". Fernando fraquejou e tentava calcular uma possibilidade, no entanto tomou um beijo inesperadamente esperado e aquilo revirou seu olhar. 

Uma viagem dos sonhos, com a garota dos sonhos e uma loucura daquelas era para fazer valer os 5 anos de nada. Voltaram à agência, fecharam juntos dia e horário. Viajariam dali uma semana e Sabrina teve de voltar para o interior naquele mesmo dia. Fernando a levou à rodoviária  e se beijaram sem modos até o último instante.

O ônibus saiu, ela espalmou a mão no vidro e disse que o encontraria em 7 dias. Ele não sabia como, mas tinha certeza que a loucura compensaria. Jerusalém, Roma, Toscana... E seu trabalho? Seus compromissos? "Pros diabos", foi a sua maior rebeldia, em 26 anos de vida. E ele tinha Sabrina e ela tinha cabelos azuis, um sorriso lindo e uma inteligência contagiante. Fernando tinha tudo.

Não soube como conseguiu encurtar a semana arrastada, nem se perdoava por ter trocado tudo, ideias, sonhos e até seu itinerário e não ter trocado os contatos. Sabrina, de Ribeirão Preto, cabelos azuis. Era somente nisso que ele pensava, era somente isso o que ele queria ver naquele saguão. 

Ele chegou cedo, antes do esperado, antes do combinado. E não demorou para ver a garota vindo com sua mochila imensa e seu azul na franja. Ela sorriu o mesmo sorriso de uma semana atrás e o mesmo sorriso que Fernando sorria. Beijaram-se longamente e logo estava lado a lado na fileira C. Fernando foi na janela, porque era seu batismo. Não dormiram as 12h de voo até Istambul nem dormiriam até Jerusalém. 

Passaram o tempo falando de si e ouvindo-se, soltaram-se as mãos apenas para comer. Estavam felizes e  inconformados de como chegaram até aquele dia sem um ao outro. Pisaram em Jerusalém numa tarde quente. Foram para o hotel e dormiram agarrados. Na manhã seguinte, ele acordou e não encontrou no quarto. Foi ao banheiro, nada. Abriu a porta, espiou pelo corredor. Nada. 

Pensou que seria fácil encontrar  alguém de cabelo azul em Jerusalém. Ao menos bastaria afiar o olhar. E ela tinha um sorriso lindo, olhos vivos e uma inteligência doce, pelo menos parecia, mesmo que  moça não tenha demonstrado nenhum interesse nele na recepção da agência. A Fernando coube jogar as cinzas da avó numa esquina da via dolorosa, sem que nenhum segurança percebesse. 


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O MILAGRE DO PASTOR

Devota por imposição, Maria não sabia o que era um mundo sem as orações, a bíblia e o culto. Suas percepções da vida iam de encontro ao que ela ouvia do pastor. Não entendia por que haveria tanta punição dos céus se era o amor de Cristo algo sem limite nem restrições. Pra piorar, aquela visita do tio, na Páscoa, ajudou a conturbar ainda mais sua cabeça. Ela tinha 5 anos e não poderia reunir argumentos que contradissessem o que os pais pregavam, mas o tio sim.

Ateu extremista, ela fazia questão de cutucar o irmão e a cunhada, colocado as contradições à mesa. E, com a intenção de passarem um feriado mais em paz, pai e mãe fizeram a besteira de deixar a filha passar a tarde no parque com o tio. O homem não queria árvores, queria mostrar o mundo à sobrinha. Ele a pôs nos ombros com um picolé e saíram por aí vendo a vida. 

Quis o destino que eles se deparassem com uma encenação de a Paixão de Cristo e ficaram os dois olhando as atrocidades do evento. Maria nunca tinha visto nada igual. Apesar de conhecer alguma coisa a respeito, jamais tinha colocado imagens nas passagens que pouca entendia. Sabia que era Jesus ali na frente, no entanto sua percepção infantil fora mais genuína. 

Perguntou por que ele estava apanhando tanto, se havia feito algo de errado. O tio disse que não. Ela perguntou se o pai dele não poderia ajudá-lo. "Ajudar, querida? Foi ele que ajudou a entregar o filho". A menina perdeu o apetite e os sentidos. Ficou paralisada. Não podia ser. Não era o Deus que ela conhecia, a Quem todos amavam. O tio percebeu o baque da sobrinha. E a desceu dos ombros.

"Querida, um dia você vai entender muita coisa. Mas hoje, hoje você não precisa disso. Vem, vamos ver a vida que realmente vale a pena". E a tirou dali, embora os olhinhos arregalados teimassem em procurar por aquela carnificina desmedida. Com muito custo, o tio conseguiu entreter a sobrinha, que não resistiu ao cachorro-quente, ao sorvete e ao carrossel, porque nenhum adulto também;em conseguiria resistir a tudo isso. 

Mas, depois da digestão, veio a noite e, com ela, aquele horror. Maria não conseguiu dormir. Sua cabeça lógica de criança não podia aceitar o que o tio havia sugerido. Mal dormiu e, na manhã seguinte, ela foi questionar a mãe sobre o assunto. A mulher se espantou com tudo aquilo. Sabia que havia dedo do cunhado ali, mas não soube rebater Maria, ou por impaciência ou por ignorância. "Todos nós sofremos como aprendizado, filha". "Mas Jesus tinha que aprender o quê?". E foi o ponto-final a tudo, principalmente à pequena, que blindou seu coração aos cultos e a toda semântica que os envolvia.

Era comum, agora, viajar para outros mundos, enquanto os berros e as adorações eram feitas. Não confiou mais nas curas do pastor, nos relatos de superação e, diariamente, esperava o pai chegar com uma cruz nos ombros ou a mãe com sua coroa de espinhos. Até que ambos morressem e voltassem dali três dias. Aos poucos, os mais próximos percebiam o comportamento arredio e, muitas vezes, seu desdém explícito a tudo. 

Meses depois, sua atitude estava mais do que latente, era uma guerra declarada. Tanto que o próprio pastor aconselhou que Maria fosse colocada para dar seu relato, o que deixou os pais esperançosos, apesar da tensão. Naquele domingo pela manhã, o homem a chamou para frente. Maria foi ao seu encontro desfilando blasé e descaso.

Ele tentou várias vezes induzi-la a falar, mas Maria se manteve calada. E o homem foi se enervando e tentando arguir e nada de a garota se abalar ou falar. Foi quando pôs a própria credibilidade em jogo, dizendo que um raio deveria atingi-lo se Deus não o tivesse capacitado àquele destino. Imediatamente a luz se apagou, e um silêncio horrível se fez. Apenas quebrado pelo riso fino de Maria. Não se pode dizer que não foi um milagre, há semanas a pequena trazia uma sisudez preocupante. Amém?


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O REAL VALOR DA CONQUISTA

Quando o despertador tocou naquele dia, Bernardo não teve o mesmo ânimo da manhã anterior. Não era doença, não era indisposição... Bom, de fato era, porque não estava disposto a seguir o ritual que vinha fazendo há meses. E aquela sensação o intrigou. Geralmente ele iria ao banho, ligaria o rádio e escutava as notícias como vinha fazendo há anos. Mas naquela manhã, ele simplesmente não estava a fim.

Sentou na cama e procurou em algum canto do seu quarto quais seriam os motivos que o faziam travar. Estava há 10 meses no cargo e na empresa com que sempre sonhou. Tinha um salário ótimo e uma vida de excessos. O supérfluo há tempos passou a fazer parte do essencial e não abocanhava sua rotina financeira. Chegou a espiar a foto de sua cabeceira e se viu perto do Coliseu, uma viagem de 40 dias incríveis há menos de um ano.

Tudo estava perfeito. Ainda se lembrara do fim de semana anterior e jurou que havia areia ainda no chinelo que comprara em Angra. Suspirou. Geralmente, ele pegaria o celular e responderia a alguns e-mails da filial de Madri, num bom espanhol. Não também não estava a fim. Pelo contrário, ele desligou o telefone e não quis saber de nada naquele momento.

Em vez das notícias, ele pôs Mozart. Abriu as cortinas do apartamento e decidiu ver a cidade para onde seus olhos apontassem. E não, não preparou os ovos com cottage nem cortou o mamão ou bateu o iogurte natural com aveia e ameixa, simplesmente porque não estava a fim. Sorriu, abriu o forno e sorriu, pois havia ainda 3 pedaços de pizza. Fez o café e os devorou frios e sentiu aquela explosão de sabores. Adorava a coceira que dava em seu céu da boca com tal combinação. 

Lembrou da última vez que sentiu isso, quando saboreou um bife de chorizo com papas fritas num restaurante no bairro da Boca, em Buenos Aires. Fechou os olhos e sentiu o vento de lá, viu a beleza da cidade e o frescor de Puerto Madero. Deu-se conta de que há tempos não ia para lá como há tempos não fazia uma traquinagem boa. 

Entre tomar um banho e chegar ao aeroporto foram quase duas horas. Embarcaria para Argentina no primeiro voo disponível, às 11h30. E foi uma viagem tranquila. E não demorou para - depois de pedir ao taxista, num bom espanhol, que o levasse aos pontos mais lindos da cidade e que não corresse - se sentar naquele restaurante na Boca e devorar o mesmo prato que imaginou horas atrás. 

Eram ainda 16h, quando, num ímpeto, decidiu seguir para Colonia do Sacramento. Chegaria a tempo de ver o pôr do sol e passaria um dia todo no século XVI e na bela cidade uruguaia. E foi o que Bernardo fez. Pôs os pés em suas ruas centenárias e viu um dia espetacular terminar. Ele sorriu orgulhoso. Porque, ao longo de seus 38 anos, nunca tinha feito o que sempre planejou: viver um dia todo sem planejar.

Acordou num país, almoçou em outro e, agora, iria dormir num terceiro. Escolheu o melhor quarto do hotel, cuja vista dava ao mar, queria olhar a vida na água, gostava de ver a lua refletir nas marolas. Queria também ver uma aurora diferente. Jantou feliz e era lagosta. Pediu o champanhe mais caro do local, abriu as janelas e sentou em frente à imensidão que o separava da vida real. Devorou sem pressa a garrafa e adormeceu.

Acordou com os primeiros raios de sol e se emocionou ao vê-los bailar nas ondas mansas. Tomou um banho e, na ducha, sentiu que ainda não podia repetir o que vinha repetindo há anos, ser livre era um vício fascinante. Fartou-se com o café farto e ganhou as ruas históricas de Colonia. Sentiu o cheiro da vida e percebeu que nunca parou para fazer isso em lugar algum. E era doce, a vida tinha cheiro de waffles. 

Depois do almoço, alugou um carro e foi para Montevidéu e não sabia quanto tempo passaria por lá. Pelo caminho, parou em algumas fazendas, comprou queijo, doce de leite e outras iguarias. Ainda havia sol, quando chegou à capital. Tempo suficiente para ir à sua cafeteria preferida e devorar uma torta de creme com um espresso duplo. Depois disso tudo, Bernardo se viu satisfeito. Era hora de voltar. Seguiu para o aeroporto de Carrasco e embarcou novo último voo para São Paulo. Não dormiu na viagem, aproveitou as quase 3h para refazer suas últimas 36 horas. Sorriu orgulhoso. 

Quando abriu a porta de casa, já passava das 2h. Jogou-se na cama e dormiu ainda com o gosto da torta de creme de horas atrás. Às 6h30, o despertador tocou, Bernardo, de supetão, pôs-se de pé. Ligou o celular e respondeu aos 15 e-mail's pendentes, num bom espanhol. Ignorou as mensagens da empresa e do chefe. Foi ao banho, preparou seus ovos com cottage, raspou o mamão e bebeu o iogurte batido com aveia e ameixa, enquanto escutava as notícias do rádio. 

Seguiu para a empresa e sabia muito bem o que diria às preocupações protocolares. "Uma virose terrível". Ele mesmo se questionou por que não falar a verdade e se gabar de sua ousadia, mas não, preferiu ser um segredo só seu, daqueles que massageiam fantasias e incentivam outras. E Bernardo tinha a melhor das conquistas: daquelas que não se colocam no currículo nem se exibe ao mundo, ou seja, as que verdadeiramente interessam. 



quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CONTE-ME SOBRE SEUS SONHOS

"Um dia largo tudo e sumo". Era isso que Maria costumava dizer desde seus 16 anos, quando começaram os conflitos com o pai, militar rígido que a queria advogada, enquanto a filha insistia em ser artista plástica. Mais do que o não apoio, ela tinha dois inimigos em casa, a autoridade do pai e o silêncio da mãe. 

Não bastava o emprego de meio período num escritório de engenharia, que bancava os cursos on-line e presenciais. Apesar de ela mesma financiar os seus sonhos, era comum que o homem zombasse daqueles objetivos ridículos, endossando que ela tinha talento para um belo hobby. 

Maria se calava e tomava aquele combustível para si. Foram meses de desaforo e coações. Nesse ínterim, não souberam que ela ganhou três concursos, muito menos da bolsa para estudar em Paris. Maria sabia que não tinha como seguir até lá, suas economias não alcançavam suas intenções. Abriu a caixa de joias e viu uma bela quantidade de brincos e de pulseiras que lá estavam. Recolheu tudo. Raspou o cabelo e o vendeu também.

Chegou à casa com mais de 3 mil reais na mochila e viu o olhar de nojo que recebera de volta. Não quis jantar. Trancou-se no quarto, comprou a passagem só de ida. Foi a última coisa que fez antes de também vender o notebook.

Dois dias depois, poderia ter jantado com os pais, numa forma de ritual de despedida, ainda que só para ela, mas o pai se recusou a comer com a filha naquele visual e a mãe apenas a serviu. Foi a melhor refeição que teve em dias. O silêncio, a despedida solitária e a certeza de estar ali pela última vez em sua vida. Não tinha intenções de voltar porque nada havia mais ali, nunca houve. Trancou-se no quarto, fez as malas e decidiu não dormir. 

Escreveu uma longa carta aos pais, tentou ser sincera e entender os seus motivos. Porém fez questão de expor os próprios e dizer quão decepcionada estava ela também com ambos. O avião partiria às 8h. Às 3h30, saiu do quarto num esforço sobre-humano de carregar a bagagem pesada e manter a quietude intacta. Conseguiu. Seu coração pulsava tão forte que isso seria capaz de despertá-los, mas eles não acordaram. Deixou a carta em cima da mesa da cozinha, abriu a porta e ganhou a rua. O motorista do Uber chegou em pouco tempo e, 40 minutos depois, ela estava no aeroporto.

Sorria sem motivos e com todos eles. Quando pisou o avião, ela chorou e sentou chorando, orgulhosa de si e cheia de confiança, isso era tudo o que precisava. Ela subiu com alegria e chegou a Paris com naturalidade. Enquanto isso, o pai se enervava com o choro desesperado da mãe, que não se conformava com a inércia do marido cuja única preocupação era saber se os dólares escondidos haviam sido encontrados.

E isso o intrigou ainda mais. Todas as notas de cem estavam lá, os vinte mil estavam intactos. Talvez ele tenha sorrido por isso, talvez tenha se orgulhado da ausência da filha ou, no fundo, era uma admiração pela determinação dela. 

A mãe caiu numa depressão e numa culpa sem precedentes. O pai não tinha paciência pra isso. O casamento acabou em meio ano e ela vive da pensão enfadada do marido. O homem se aposentou em três anos e comprou uma casa no litoral, onde passa grande parte vendo TV. Maria nunca mais apareceu, foi engolida por Paris. Um dia pensou em ligar no aniversário da mãe, mas acabou dormindo e não se lembrou de fazer outra tentativa em qualquer outro dia de sua vida. 


terça-feira, 13 de outubro de 2020

SUSPENSE NACIONAL DE ÓTIMA QUALIDADE

 Eu poderia muito bem dizer que Bom dia, Verônica, série nacional que estreou recentemente pela Netflix, é uma novela. Sim. A definição nos diz que novela é quando várias tramas iniciam e se encerram em uma só. Pois é exatamente isso que acontece nesse excelente trabalho, baseado no livro de Ilana Casoy e Raphael Montes.

Janete (Carolina Morgado) é casada com Brandão (Eduardo Moscovis), tenente coronel da PM, com seus desvios de comportamento e de caráter. Ela é a vítima clássica da violência doméstica, sofre abusos verbais e físicos, não tem a quem recorrer e sua autoestima inexiste. Vale ressaltar que o excelente roteiro, também com a assinatura dos autores, fica ainda melhor com a bela atuação de ambos atores.

Forçada a recrutar mulheres que chegam a SP, vindas do Maranhão - aliás uma rara falha na obra, que não esclarece por que isso - Janete aborda meninas entre 17 e 24 anos, oferecendo trabalho. Ela as convida até o carro, e aí Brandão ataca, deixando as moças inconscientes e as levando a um sítio, onde acontecem rituais sanguinários, também não explicados.

O tenente prende as meninas por ganchos, furando-lhes a pele e as erguendo (a cena me fez lembrar do ritual no longa UM HOMEM CHAMADO CAVALO, 1970, direção de Elliot Silverstein - no qual, para se tornar um membro da tribo, o americano é erguido por garras que lhe perfuram a pele). Janete, durante a tortura, é posta numa cadeira e tem sua cabeça coberta por uma caixa de madeira, tampando-lhe a visão.

Cansada dos abusos e depois de assistir a uma entrevista de Verônica (Tainá Muller) - que se [predispõe a ajudar mulheres que sofrem assédios e violência - ela a procura para denunciar o marido. A escrivã tem seus segredos e começa a desconfiar da entidade em que trabalha, o que acaba mexendo demais com sua vida pessoal, fazendo que o marido e os filhos fujam para um local mais seguro.

O ótimo suspense, com direção José Henrique Fonseca, mostra como a vulnerabilidade humana fica aparente, nos oprimidos e nos opressores, que geralmente sofreram algo para reagirem desta forma. A química entre os atores e
a excelente trama dão um tom sombrio e perturbador. A tensão fica latente em todos os episódios e não existe um respiro sequer, o que deixa a série num tom ideal.

A semelhança da arte com a vida aqui é muito estreita, talvez por isso o sentimento de incômodo fique ainda mais evidente, porque provavelmente você deva encaixar alguém na pele de Janete, alguém muito próximo, uma parente, uma vizinha. E não é exagero meu dizer que sua noite de sono pode ficar um pouco mais atribulada.

Longas que exploram a realidade sempre são mais densos e poucos previsíveis, aliás é isso o que não falta na série, cujas surpresas se renovam de modo constante. Fica aqui a dica de um excelente trabalho. Há tempos o Brasil vem se firmando em produzir séries excelentes, Bom dia, Verônica é um exemplo típico de como os talentos nacionais vêm sendo produzidos. Ainda bem! 


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A IGNORÂNCIA E SUAS CÔMODAS JUSTIFICATIVAS

 


Quando criança, associava o ignorante a alguém de atitudes agressivas. Aos poucos, a vida foi me mostrando que o adjetivo tinha uma semântica muito particular e vinha protegida e, quase como um álibi, pautada em suas justificativas para alguma consequência absurda ou até aceitável. Não vivi na pele os castigos com os quais o ser humano adora se travestir e se pautar na ignorância: preconceitos social, religioso, racial ou sexual. No entanto, quando (re)conheci na umbanda a renovação de minha fé, tudo começou a mudar. Mas não vou me pôr no centro disso tudo, justamente porque não me cabe ser vítima, porém cabe a mim sim apontar o que passei a ver com mais atenção essa tal ignorância em relação ao preconceito religioso. Meu olhar nunca foi mais afiado às perseguições que as religiões de matrizes africanas sofriam. Nunca condenei, nem quem sofria, muito menos quem atacava. Talvez pela tão cômoda ignorância ou simplesmente porque não fazia parte do meu dia a dia. Felizmente o mundo está mudando, graças a Deus, a Olorum ou a Alá. Não importa. O que vale ressaltar é essa justiça divina que parece estar mais atenta a atrocidades (ou talvez seja a minha atenção nisso tudo). Poderia citar alguns exemplos que passei por ser umbandista, por pessoas próximas ou não. Contudo as consequências desse preconceito – coberto com o manto da ignorância – ganhou ares ainda mais cruéis semanas atrás. 

Fato recente, em que uma pré-adolescente, de 12 anos, descansava em um terreiro de candomblé em Araçatuba, no interior de São Paulo, depois de ter dedicado cerca de quatro horas de seu dia a fazer orações e danças para seu santo. Estava deitada quando foi surpreendida por policiais armados, que invadiram o centro religioso. Eles chegaram ao local depois de receberem uma denúncia anônima de que a menina estava sendo mantida em confinamento, era alvo de maus-tratos e suposto abuso sexual. Ao ser abordada pelos policiais, a menor foi questionada pela polícia e respondeu com uma negativa, confirmando que estava no terreiro por vontade própria, realizando um tratamento espiritual. À avó da garota, evangélica e possivelmente uma das acusadoras, foi confiada a guarda provisória. Felizmente, a história terminou dias atrás com um final feliz, por intermédio de um juiz da 2º Vara Criminal e Anexo da Infância e Juventude de Araçatuba. Segundo o magistrado, exames realizados na menina apontaram que ela não tinha nenhuma lesão, hematoma ou outro sinal de agressão ou abuso.


O que temos aqui é um claro exemplo de intolerância religiosa, que vem com cores de ignorância, justamente por a prática ser de origem africana. O racismo aparece de mãos dadas às denúncias e a tudo que envolve orixás e a semântica que os cerca. E isso fica muito claro quando se faz um paralelo a práticas de religiões de matrizes africanas e outras que não são. Vejamos. Todos os dias, as mulheres em Bali, na Indonésia, de maioria hindu, preparam oferendas chamadas “canang sari” com flores, frutas, incensos, moedas e doces. Eles são oferecidos a diferentes deuses do hinduísmo e colocados nas calçadas, portas de restaurantes, de hotéis e de templos. 


Certamente, se praticantes de religiões que não têm matrizes africanas passarem por eles, ficarão encantados. Porém tal encantamento se desfaz se estes mesmos admiradores virem qualquer oferenda feita com doces, flores e frutas nas esquinas brasileiras. Com certeza, cruzarão a rua, desviarão da calcada e ainda amaldiçoarão tal ritual. Ah, o preconceito coberto pela ignorância. Ora, e o que dizer daqueles que admiram os deuses gregos ou os romanos. Poseidon, Afrodite, Atlas, Apolo, Atena, Júpiter, Juno, Marte, Vênus, todos eles adoráveis... e brancos. Diferentes, bem diferentes dos odiosos Exu, Oxum, Ogum, Oxóssi, Iansã, Iemanjá, Obaluaê, Omolu, todos negros e perversos. Ah, o preconceito coberto pela ignorância. 


Diria vô Inácio, um preto-velho de voz doce, que não precisamos ter religião para crer em Deus, mas que negar qualquer religião também é negar Deus. E é com a sabedoria das santas almas que prefiro me pautar, porque nela existe a pureza e ensinamentos profundos. Que a justiça continue a abrir os olhos a essa inocente ignorância e que a união das boas práticas de fé prevaleça. Quanto a mim, ainda valho-me da ingenuidade do erê, que me conduz, e espero, de uma vez por todas, desassociar o ignorante a alguém de atitudes agressivas. Axé.