quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O MILAGRE DO PASTOR

Devota por imposição, Maria não sabia o que era um mundo sem as orações, a bíblia e o culto. Suas percepções da vida iam de encontro ao que ela ouvia do pastor. Não entendia por que haveria tanta punição dos céus se era o amor de Cristo algo sem limite nem restrições. Pra piorar, aquela visita do tio, na Páscoa, ajudou a conturbar ainda mais sua cabeça. Ela tinha 5 anos e não poderia reunir argumentos que contradissessem o que os pais pregavam, mas o tio sim.

Ateu extremista, ela fazia questão de cutucar o irmão e a cunhada, colocado as contradições à mesa. E, com a intenção de passarem um feriado mais em paz, pai e mãe fizeram a besteira de deixar a filha passar a tarde no parque com o tio. O homem não queria árvores, queria mostrar o mundo à sobrinha. Ele a pôs nos ombros com um picolé e saíram por aí vendo a vida. 

Quis o destino que eles se deparassem com uma encenação de a Paixão de Cristo e ficaram os dois olhando as atrocidades do evento. Maria nunca tinha visto nada igual. Apesar de conhecer alguma coisa a respeito, jamais tinha colocado imagens nas passagens que pouca entendia. Sabia que era Jesus ali na frente, no entanto sua percepção infantil fora mais genuína. 

Perguntou por que ele estava apanhando tanto, se havia feito algo de errado. O tio disse que não. Ela perguntou se o pai dele não poderia ajudá-lo. "Ajudar, querida? Foi ele que ajudou a entregar o filho". A menina perdeu o apetite e os sentidos. Ficou paralisada. Não podia ser. Não era o Deus que ela conhecia, a Quem todos amavam. O tio percebeu o baque da sobrinha. E a desceu dos ombros.

"Querida, um dia você vai entender muita coisa. Mas hoje, hoje você não precisa disso. Vem, vamos ver a vida que realmente vale a pena". E a tirou dali, embora os olhinhos arregalados teimassem em procurar por aquela carnificina desmedida. Com muito custo, o tio conseguiu entreter a sobrinha, que não resistiu ao cachorro-quente, ao sorvete e ao carrossel, porque nenhum adulto também;em conseguiria resistir a tudo isso. 

Mas, depois da digestão, veio a noite e, com ela, aquele horror. Maria não conseguiu dormir. Sua cabeça lógica de criança não podia aceitar o que o tio havia sugerido. Mal dormiu e, na manhã seguinte, ela foi questionar a mãe sobre o assunto. A mulher se espantou com tudo aquilo. Sabia que havia dedo do cunhado ali, mas não soube rebater Maria, ou por impaciência ou por ignorância. "Todos nós sofremos como aprendizado, filha". "Mas Jesus tinha que aprender o quê?". E foi o ponto-final a tudo, principalmente à pequena, que blindou seu coração aos cultos e a toda semântica que os envolvia.

Era comum, agora, viajar para outros mundos, enquanto os berros e as adorações eram feitas. Não confiou mais nas curas do pastor, nos relatos de superação e, diariamente, esperava o pai chegar com uma cruz nos ombros ou a mãe com sua coroa de espinhos. Até que ambos morressem e voltassem dali três dias. Aos poucos, os mais próximos percebiam o comportamento arredio e, muitas vezes, seu desdém explícito a tudo. 

Meses depois, sua atitude estava mais do que latente, era uma guerra declarada. Tanto que o próprio pastor aconselhou que Maria fosse colocada para dar seu relato, o que deixou os pais esperançosos, apesar da tensão. Naquele domingo pela manhã, o homem a chamou para frente. Maria foi ao seu encontro desfilando blasé e descaso.

Ele tentou várias vezes induzi-la a falar, mas Maria se manteve calada. E o homem foi se enervando e tentando arguir e nada de a garota se abalar ou falar. Foi quando pôs a própria credibilidade em jogo, dizendo que um raio deveria atingi-lo se Deus não o tivesse capacitado àquele destino. Imediatamente a luz se apagou, e um silêncio horrível se fez. Apenas quebrado pelo riso fino de Maria. Não se pode dizer que não foi um milagre, há semanas a pequena trazia uma sisudez preocupante. Amém?


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