quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CONTE-ME SOBRE SEUS SONHOS

"Um dia largo tudo e sumo". Era isso que Maria costumava dizer desde seus 16 anos, quando começaram os conflitos com o pai, militar rígido que a queria advogada, enquanto a filha insistia em ser artista plástica. Mais do que o não apoio, ela tinha dois inimigos em casa, a autoridade do pai e o silêncio da mãe. 

Não bastava o emprego de meio período num escritório de engenharia, que bancava os cursos on-line e presenciais. Apesar de ela mesma financiar os seus sonhos, era comum que o homem zombasse daqueles objetivos ridículos, endossando que ela tinha talento para um belo hobby. 

Maria se calava e tomava aquele combustível para si. Foram meses de desaforo e coações. Nesse ínterim, não souberam que ela ganhou três concursos, muito menos da bolsa para estudar em Paris. Maria sabia que não tinha como seguir até lá, suas economias não alcançavam suas intenções. Abriu a caixa de joias e viu uma bela quantidade de brincos e de pulseiras que lá estavam. Recolheu tudo. Raspou o cabelo e o vendeu também.

Chegou à casa com mais de 3 mil reais na mochila e viu o olhar de nojo que recebera de volta. Não quis jantar. Trancou-se no quarto, comprou a passagem só de ida. Foi a última coisa que fez antes de também vender o notebook.

Dois dias depois, poderia ter jantado com os pais, numa forma de ritual de despedida, ainda que só para ela, mas o pai se recusou a comer com a filha naquele visual e a mãe apenas a serviu. Foi a melhor refeição que teve em dias. O silêncio, a despedida solitária e a certeza de estar ali pela última vez em sua vida. Não tinha intenções de voltar porque nada havia mais ali, nunca houve. Trancou-se no quarto, fez as malas e decidiu não dormir. 

Escreveu uma longa carta aos pais, tentou ser sincera e entender os seus motivos. Porém fez questão de expor os próprios e dizer quão decepcionada estava ela também com ambos. O avião partiria às 8h. Às 3h30, saiu do quarto num esforço sobre-humano de carregar a bagagem pesada e manter a quietude intacta. Conseguiu. Seu coração pulsava tão forte que isso seria capaz de despertá-los, mas eles não acordaram. Deixou a carta em cima da mesa da cozinha, abriu a porta e ganhou a rua. O motorista do Uber chegou em pouco tempo e, 40 minutos depois, ela estava no aeroporto.

Sorria sem motivos e com todos eles. Quando pisou o avião, ela chorou e sentou chorando, orgulhosa de si e cheia de confiança, isso era tudo o que precisava. Ela subiu com alegria e chegou a Paris com naturalidade. Enquanto isso, o pai se enervava com o choro desesperado da mãe, que não se conformava com a inércia do marido cuja única preocupação era saber se os dólares escondidos haviam sido encontrados.

E isso o intrigou ainda mais. Todas as notas de cem estavam lá, os vinte mil estavam intactos. Talvez ele tenha sorrido por isso, talvez tenha se orgulhado da ausência da filha ou, no fundo, era uma admiração pela determinação dela. 

A mãe caiu numa depressão e numa culpa sem precedentes. O pai não tinha paciência pra isso. O casamento acabou em meio ano e ela vive da pensão enfadada do marido. O homem se aposentou em três anos e comprou uma casa no litoral, onde passa grande parte vendo TV. Maria nunca mais apareceu, foi engolida por Paris. Um dia pensou em ligar no aniversário da mãe, mas acabou dormindo e não se lembrou de fazer outra tentativa em qualquer outro dia de sua vida. 


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