segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O REAL VALOR DA CONQUISTA

Quando o despertador tocou naquele dia, Bernardo não teve o mesmo ânimo da manhã anterior. Não era doença, não era indisposição... Bom, de fato era, porque não estava disposto a seguir o ritual que vinha fazendo há meses. E aquela sensação o intrigou. Geralmente ele iria ao banho, ligaria o rádio e escutava as notícias como vinha fazendo há anos. Mas naquela manhã, ele simplesmente não estava a fim.

Sentou na cama e procurou em algum canto do seu quarto quais seriam os motivos que o faziam travar. Estava há 10 meses no cargo e na empresa com que sempre sonhou. Tinha um salário ótimo e uma vida de excessos. O supérfluo há tempos passou a fazer parte do essencial e não abocanhava sua rotina financeira. Chegou a espiar a foto de sua cabeceira e se viu perto do Coliseu, uma viagem de 40 dias incríveis há menos de um ano.

Tudo estava perfeito. Ainda se lembrara do fim de semana anterior e jurou que havia areia ainda no chinelo que comprara em Angra. Suspirou. Geralmente, ele pegaria o celular e responderia a alguns e-mails da filial de Madri, num bom espanhol. Não também não estava a fim. Pelo contrário, ele desligou o telefone e não quis saber de nada naquele momento.

Em vez das notícias, ele pôs Mozart. Abriu as cortinas do apartamento e decidiu ver a cidade para onde seus olhos apontassem. E não, não preparou os ovos com cottage nem cortou o mamão ou bateu o iogurte natural com aveia e ameixa, simplesmente porque não estava a fim. Sorriu, abriu o forno e sorriu, pois havia ainda 3 pedaços de pizza. Fez o café e os devorou frios e sentiu aquela explosão de sabores. Adorava a coceira que dava em seu céu da boca com tal combinação. 

Lembrou da última vez que sentiu isso, quando saboreou um bife de chorizo com papas fritas num restaurante no bairro da Boca, em Buenos Aires. Fechou os olhos e sentiu o vento de lá, viu a beleza da cidade e o frescor de Puerto Madero. Deu-se conta de que há tempos não ia para lá como há tempos não fazia uma traquinagem boa. 

Entre tomar um banho e chegar ao aeroporto foram quase duas horas. Embarcaria para Argentina no primeiro voo disponível, às 11h30. E foi uma viagem tranquila. E não demorou para - depois de pedir ao taxista, num bom espanhol, que o levasse aos pontos mais lindos da cidade e que não corresse - se sentar naquele restaurante na Boca e devorar o mesmo prato que imaginou horas atrás. 

Eram ainda 16h, quando, num ímpeto, decidiu seguir para Colonia do Sacramento. Chegaria a tempo de ver o pôr do sol e passaria um dia todo no século XVI e na bela cidade uruguaia. E foi o que Bernardo fez. Pôs os pés em suas ruas centenárias e viu um dia espetacular terminar. Ele sorriu orgulhoso. Porque, ao longo de seus 38 anos, nunca tinha feito o que sempre planejou: viver um dia todo sem planejar.

Acordou num país, almoçou em outro e, agora, iria dormir num terceiro. Escolheu o melhor quarto do hotel, cuja vista dava ao mar, queria olhar a vida na água, gostava de ver a lua refletir nas marolas. Queria também ver uma aurora diferente. Jantou feliz e era lagosta. Pediu o champanhe mais caro do local, abriu as janelas e sentou em frente à imensidão que o separava da vida real. Devorou sem pressa a garrafa e adormeceu.

Acordou com os primeiros raios de sol e se emocionou ao vê-los bailar nas ondas mansas. Tomou um banho e, na ducha, sentiu que ainda não podia repetir o que vinha repetindo há anos, ser livre era um vício fascinante. Fartou-se com o café farto e ganhou as ruas históricas de Colonia. Sentiu o cheiro da vida e percebeu que nunca parou para fazer isso em lugar algum. E era doce, a vida tinha cheiro de waffles. 

Depois do almoço, alugou um carro e foi para Montevidéu e não sabia quanto tempo passaria por lá. Pelo caminho, parou em algumas fazendas, comprou queijo, doce de leite e outras iguarias. Ainda havia sol, quando chegou à capital. Tempo suficiente para ir à sua cafeteria preferida e devorar uma torta de creme com um espresso duplo. Depois disso tudo, Bernardo se viu satisfeito. Era hora de voltar. Seguiu para o aeroporto de Carrasco e embarcou novo último voo para São Paulo. Não dormiu na viagem, aproveitou as quase 3h para refazer suas últimas 36 horas. Sorriu orgulhoso. 

Quando abriu a porta de casa, já passava das 2h. Jogou-se na cama e dormiu ainda com o gosto da torta de creme de horas atrás. Às 6h30, o despertador tocou, Bernardo, de supetão, pôs-se de pé. Ligou o celular e respondeu aos 15 e-mail's pendentes, num bom espanhol. Ignorou as mensagens da empresa e do chefe. Foi ao banho, preparou seus ovos com cottage, raspou o mamão e bebeu o iogurte batido com aveia e ameixa, enquanto escutava as notícias do rádio. 

Seguiu para a empresa e sabia muito bem o que diria às preocupações protocolares. "Uma virose terrível". Ele mesmo se questionou por que não falar a verdade e se gabar de sua ousadia, mas não, preferiu ser um segredo só seu, daqueles que massageiam fantasias e incentivam outras. E Bernardo tinha a melhor das conquistas: daquelas que não se colocam no currículo nem se exibe ao mundo, ou seja, as que verdadeiramente interessam. 



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