sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A IGNORÂNCIA E SUAS CÔMODAS JUSTIFICATIVAS

 


Quando criança, associava o ignorante a alguém de atitudes agressivas. Aos poucos, a vida foi me mostrando que o adjetivo tinha uma semântica muito particular e vinha protegida e, quase como um álibi, pautada em suas justificativas para alguma consequência absurda ou até aceitável. Não vivi na pele os castigos com os quais o ser humano adora se travestir e se pautar na ignorância: preconceitos social, religioso, racial ou sexual. No entanto, quando (re)conheci na umbanda a renovação de minha fé, tudo começou a mudar. Mas não vou me pôr no centro disso tudo, justamente porque não me cabe ser vítima, porém cabe a mim sim apontar o que passei a ver com mais atenção essa tal ignorância em relação ao preconceito religioso. Meu olhar nunca foi mais afiado às perseguições que as religiões de matrizes africanas sofriam. Nunca condenei, nem quem sofria, muito menos quem atacava. Talvez pela tão cômoda ignorância ou simplesmente porque não fazia parte do meu dia a dia. Felizmente o mundo está mudando, graças a Deus, a Olorum ou a Alá. Não importa. O que vale ressaltar é essa justiça divina que parece estar mais atenta a atrocidades (ou talvez seja a minha atenção nisso tudo). Poderia citar alguns exemplos que passei por ser umbandista, por pessoas próximas ou não. Contudo as consequências desse preconceito – coberto com o manto da ignorância – ganhou ares ainda mais cruéis semanas atrás. 

Fato recente, em que uma pré-adolescente, de 12 anos, descansava em um terreiro de candomblé em Araçatuba, no interior de São Paulo, depois de ter dedicado cerca de quatro horas de seu dia a fazer orações e danças para seu santo. Estava deitada quando foi surpreendida por policiais armados, que invadiram o centro religioso. Eles chegaram ao local depois de receberem uma denúncia anônima de que a menina estava sendo mantida em confinamento, era alvo de maus-tratos e suposto abuso sexual. Ao ser abordada pelos policiais, a menor foi questionada pela polícia e respondeu com uma negativa, confirmando que estava no terreiro por vontade própria, realizando um tratamento espiritual. À avó da garota, evangélica e possivelmente uma das acusadoras, foi confiada a guarda provisória. Felizmente, a história terminou dias atrás com um final feliz, por intermédio de um juiz da 2º Vara Criminal e Anexo da Infância e Juventude de Araçatuba. Segundo o magistrado, exames realizados na menina apontaram que ela não tinha nenhuma lesão, hematoma ou outro sinal de agressão ou abuso.


O que temos aqui é um claro exemplo de intolerância religiosa, que vem com cores de ignorância, justamente por a prática ser de origem africana. O racismo aparece de mãos dadas às denúncias e a tudo que envolve orixás e a semântica que os cerca. E isso fica muito claro quando se faz um paralelo a práticas de religiões de matrizes africanas e outras que não são. Vejamos. Todos os dias, as mulheres em Bali, na Indonésia, de maioria hindu, preparam oferendas chamadas “canang sari” com flores, frutas, incensos, moedas e doces. Eles são oferecidos a diferentes deuses do hinduísmo e colocados nas calçadas, portas de restaurantes, de hotéis e de templos. 


Certamente, se praticantes de religiões que não têm matrizes africanas passarem por eles, ficarão encantados. Porém tal encantamento se desfaz se estes mesmos admiradores virem qualquer oferenda feita com doces, flores e frutas nas esquinas brasileiras. Com certeza, cruzarão a rua, desviarão da calcada e ainda amaldiçoarão tal ritual. Ah, o preconceito coberto pela ignorância. Ora, e o que dizer daqueles que admiram os deuses gregos ou os romanos. Poseidon, Afrodite, Atlas, Apolo, Atena, Júpiter, Juno, Marte, Vênus, todos eles adoráveis... e brancos. Diferentes, bem diferentes dos odiosos Exu, Oxum, Ogum, Oxóssi, Iansã, Iemanjá, Obaluaê, Omolu, todos negros e perversos. Ah, o preconceito coberto pela ignorância. 


Diria vô Inácio, um preto-velho de voz doce, que não precisamos ter religião para crer em Deus, mas que negar qualquer religião também é negar Deus. E é com a sabedoria das santas almas que prefiro me pautar, porque nela existe a pureza e ensinamentos profundos. Que a justiça continue a abrir os olhos a essa inocente ignorância e que a união das boas práticas de fé prevaleça. Quanto a mim, ainda valho-me da ingenuidade do erê, que me conduz, e espero, de uma vez por todas, desassociar o ignorante a alguém de atitudes agressivas. Axé.      

 

 

   

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