segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O DIA QUE RECEBI DOIS BEIJOS DE ZIRALDO


Quase impossível encontrar seu ídolo, trocar palavras, então, está na classificação de lenda! E jantar? Pois é, quando as três coisas acontecem, rendem excelentes histórias e temos de levar isso ao maior número de pessoas.


Não sei quantos livros li do Ziraldo, sei que ele é minha referência de escritor infantil, simples, direto, deliciosamente criativo e talentoso. Em 1999, trabalhava em um instituto de educação, uma multinacional, que tinha o hábito de trazer um palestrante anual, numa espécie de formatura.

Assisti no ano anterior - por quase 3 horas -  ao magnífico Heródoto Barbeiro falar, depois de ter conversado com ele na TV Cultura, de São Paulo. E no ano seguinte, uma colega de trabalho apareceu com um contato da agente do escritor Maluquinho. Sonho. Liguei para ela, que me deu o número da secretária dele. Sonho.

Naquela tarde, lembro-me da roda que os amigos fizeram quando liguei para o escritório do Rio, e quem atendeu ao telefonema? Sim, o homem de sobrancelhas brancas grossas. Reconheceria a voz dele a quilômetros. Gaguejei, consegui e terminei a conversa com a mulher.

Sonho. O preço dele foi aceito. E, três semanas depois, estava eu na recepção do hotel esperando o cara para jantar. Tremia dos pés à cabeça. Ele apareceu, de colete e meias vermelhos. Ele me chamou pelo nome, me abraçou e me deu um beijo na bochecha. Jantamos e conversamos muito. Senti os olhares me encarando e tentando saber quem era o rapaz ao lado do Ziraldo.

No dia seguinte, ele daria uma palestra, mas só depois de ser apresentado por mim. Carinhosa e metidamente elaborei um texto sobre o cara. E li firme, ao som de Bola de meia bola de gude, na versão do 14 Bis.

Dei à plateia as palavras justas que merecia, e o palestrante, emocionado depois da última frase, levantou-se sorrindo e me deu um abraço longo, sob aplausos, mas não ousei enxugar as lágrimas que ele me deixou na bochecha direita.


terça-feira, 24 de novembro de 2015

ÁLGEBRA...

Tentou se divertir o fim de semana todo, mas aquela prova de álgebra lhe tirava as atenções. Culpou-a pelos dois gols perdidos. Amaldiçoou-a por os amigos não poderem aparecer para mais uma rodada, justamente por causa do teste. Desejou morrer porque tinha de estudar algo que não entendia. Imaginou-se na máfia, em que se endossava o ditado "Se não entende algo, livre-se dele". Mas não, era estudar ou... Sim!

Uma cola!

Óbvio! Quem precisaria passar horas debruçado em algo que não lhe serviria para o resto da vida, já que podia, por alguns minutos, materializar o pensamento em lembretes? Decidiu que depois do macarrão daquele domingo, elaboraria a melhor de todas elas e provaria ao professor - não, a esse não -  e provaria ao sistema que álgebra era tão inútil quanto um ioiô.

Mas antes decidiu ver o filme. Depois, foi ao banho, jantou e aí sim, abriu o caderno e se deparou com o horror. Havia cerca de 10 exercícios sobre o assunto. Como não sabia qual poderia cair, o menino decidiu copiar todos. Mas deveria fazê-lo em algo minúsculo. Fez o primeiro, o segundo.

Não percebeu, mas o terceiro, ele resolveu, assim como o quarto, o quinto! E sorriu, sentiu-se poderoso, porque a mágica começou a acontecer. De repente, não precisava mais de cola, de professor, de nada, sentiu-se autodidata, ainda que desconhecesse a palavra.

Do quarto ao décimo, ele resolveu e foram 7 acertos. Como?! Não se deve mexer no milagre nem na fé. Por instantes, viu que a matemática se tornava parte de si. Como os dedos estão para a mão. Por instantes, eles e os números, um só.

Esqueceu a cola, tinha vontade de anunciar a todos o feito, mas não saberia como explicar à mãe nem ao pai que a cola o motivou, a cola o despertou, que realmente a cola era a melhor opção à vida, às provas.

Acordou feliz e tomou café radiante. Seguiu feliz à escola e entrou na sala radiante. Sorriu feliz e pegou a prova radiante. E o sorriso se intensificou quando viu as questões. Resolveu tudo tão rápido e tão perfeito que entregou a prova sorridente e seguiu radiante de volta ao seu lugar.

Para se gabar, pediu licença ao professor para deitar a cabeça e cochilar. Não percebeu os olhares raivosos de todos. De tão feliz, adormeceu. E despertou minutos depois com a mãe ao seu ouvido: "dormiu sentado estudando, filhão? 10 é pouco hoje, hein?! Vamos, o café está na mesa!".

E percebeu realmente que havia algo mais inútil que o ioiô e a álgebra...

terça-feira, 17 de novembro de 2015

AH, ESSAS MULHERES...

A angústia é o maior incentivo e o mais natural para a confissão. Quando o amigo percebeu que a voz lhe embargava, convidou-o para uma cerveja e deixou que tudo desinchasse. A consciência leve, ainda que não resolva a situação, ao menos desafoga o aperto e desacelera a perturbação.

Ele fora testemunha do começo daquele relacionamento promissor, nunca se largavam e juraram amor eterno. Era triste ouvir tudo aquilo. Não podia crer que se afastavam e que a única coisa que os unia eram as indiferenças. 

No segundo copo, soube que a mulher não olhava mais na cara do marido, que era comum reclamar e passar nos cantos balbuciando alguma imprecação. Que disse que o odiava na cara dele, sem medo nem respeito. Que - pode isso? - chegou a cuspir na sua cara. Incrédulo, o amigo se emocionou com as lágrimas daquele homenzarrão. 

Viu que o desânimo e a tristeza eram-lhe a sombra da realidade. Viu-o desabar, perder o brilho de anos atrás, o sorriso de uma vida toda e a autoestima que o precedia. Maldita. Odiou-a também, quando soube que no aniversário do amigo não seguiu o protocolo, sequer ficou por lá e passou a noite sabe-se lá onde, sabe-se lá com quem.

E acabou se emocionando ainda mais ao saber que o amigo não queria a separação, que dizia que o casamento era para sempre, que a vida fora ótima à união de ambos e não poderia virar o rosto à felicidade como tem virado há meses. Soluçando, revelou que, sempre que brigavam, ele lhe trazia flores, como um perdão, como redenção e ela teimava em jogá-las no lixo.

Nojenta. Vadia.

Horas depois, o amigo não permitiu que ele dirigisse. Levou-o de táxi e deixou-o em casa. Torceu para não encontrar aquela maldita, seria capaz de lhe dar um murro, porém, se o fizesse, teria de bater-lhe no olho esquerdo, porque o direito, dessa vez, havia fechado por inteiro, sem contar o nariz quebrado e as outras escoriações pelo corpo que, a essa altura, e pelas semanas que passaram, já deviam ter desaparecido...

terça-feira, 10 de novembro de 2015

BRÁCTEA VERMELHA

Quando se deu conta, estava esmerando as plantas daquela padaria. Uma a uma, posicionadas em fileira, vermelhas, numa sintonia linda e pensou: "como conseguiam cultivar já há semanas as mesmas plantas e todas estarem lindas, continuarem intactas?".

Não murcharam, não caíram. Sem perceber – mas isso seria inevitável – faz uma comparação com a própria vida até aquele momento. 46 anos, 5 casamentos falidos, duas pensões em atraso, 4 empregos mal resolvidos.

Tentou contar quantos amigos tinha, amigos daqueles que se escoram bêbados voltando sabe-se lá de onde. Tentou duas vezes, não conseguiu.

Também não lembrou quando foi a última fez que a única filha havia telefonado a ele sem a desculpa de um extra ou para reclamar pela falta disso. Preferiu não ir a fundo para não se chatear ainda mais.

E os irmãos? Os 4, tirando a mais velha, morta num enfarto fulminante, tentou também se lembrar qual foi o último contato: na missa de sétimo dia do pai, morto três anos depois da mãe.

Mas tinha o Chico, sim, mesmo que fosse o barbeiro, era bom ouvinte, bom papo e, ao menos uma vez por mês, talvez precisasse só disso, ele esquecia um pouco sobre toda a solidão que o acompanhava.

Naquela manhã, pesou todos os dias que viveu e chegou a conclusão de que havia nada do que esperar, havia nada do que se gabar. Todos os insucessos possíveis lhe eram de domínio. Sem amigas, sem amantes, percebeu que a maior aventura da sua vida foi ter se perdido num bairro da zona norte.

Não recebia mensagens há dias, ninguém havia curtido sua última postagem, há dois meses.

Havia todos os motivos para ratificar a própria insignificância.

“Pro inferno”, pensou. Ao sair da padaria, chegou perto das plantas vermelhas, tão lindas, tão bem cuidadas, tocou-as e sentiu que tudo poderia mudar. Uma onda de euforia e de ânimo voltaram a si como um frenesi. Sentiu-se jovem, renovado, um milagre de Deus.

Ao sentir o toque da natureza, soube que a tudo haveria uma cura. Sim, as plantas eram de plástico.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

UM HERÓI NA BIG APPLE

Talvez tenha sido aos 8 anos, quando viu Nova Iorque num filme e imaginou que os cenários fossem tão mentirosos quanto o super-herói que cruzava os arranha-céus de lá. Mas não, o irmão mais velho certificou-o de que a cidade existia e, na primeira matéria do jornal, em que mostrava o Central Park, creu estar sonhando e colocou na cabeça que era lá que gostaria de ir, de viver, gostaria de se vestir de Nova Iorque. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Por ela, conheceu o jazz, conheceu Woody Allen, conheceu museus e Sinatra. Dançou com os hippies em Hair e pegou um táxi com De Niro. Perdeu o sono com os musicais e virou o ano, todos eles, na grande bola brilhante. Ele vivia Nova Iorque, ele era Nova Iorque. Quando olhou ao lado, à sua vida, percebeu que teria de fazer por si. Decidiu ser seu próprio Superman e salvar-se da mesmice. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Aos 13, começou a entregar os remédios da farmácia do bairro, dois meses depois, já tinha 30 dólares. Sim, o tio, formado em economia, já aparecia em seu destino. Aos 15, começou a fazer um escola técnica, e os motores apareceram em sua vida. Com o estágio, em dois anos, já contabilizava 1000 dólares. Aos 18, percebeu que seus 2000 dólares, depois de uma feira de intercâmbio, pagariam sua passagem e ainda serviriam para um fôlego para limpar banheiros por ali. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

E foi o que ele fez.  O pai conseguiu pagar o táxi e comprar uma boa mala. O padrinho ajudou com alguns casacos e blusas e a mãe só deu lágrimas. E o rapaz já deixava para trás tudo que viabilizou seu foco. Já sentia a brisa gelada do inverno e o bafo quente do verão. Tiraria fotos com a Estátua da Liberdade e alimentaria os esquilos do Central Park. Subiria até o topo do World Trade Center e ajudaria o King Kong a descer do Empire State. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Desceu 10h depois no aeroporto JF Kennedy e fora recepcionado pelo representante da escola, que o levou até a nova família. Mal ouviu o que o rapaz dizia pelo caminho, no itinerário, como uma chamada oral, fora falando os nomes das ruas e a história dos prédios com a voz embargada de criança faminta. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Foi para o Brooklyn e quase teve um torcicolo ao tentar divisar toda Brooklyn Bridge e parece ter escutado que a família que o receberia moraria por lá, e morava. Saiu sorrindo e viu um casal de cinquentões à sua espera. O sobrado geminado de tijolos cor de barro e suas janelas vitorianas era mais que uma fantasia, seria sua nova roupa. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Aprendeu a ir ao curso, o que lhe ocupava meio período, e decidiu trabalhar, semanas depois, porque um dia sem respirar Nova Iorque era um dia perdido, não queria mais perder todos os quase 6600 dias sem ar.  Pelo conhecimento do pai americano, soube que, naquele mês de setembro, abririam vagas numa lanchonete no World Trade Center. O rapaz, há 15 dias por ali, ficou alucinado. Naquela mesma segunda-feira, foi até as torres gêmeas, ficou embasbacado, porque ainda não as havia visto. Encaixou-se no perfil e não se importou de começar no dia seguinte. Não haveria aula na manhã daquela terça-feira. Acatou o pedido e foi atrás dele.

Imaginou-se Clark Kent indo ao seu primeiro dia de trabalho no Planeta Diário. Saiu do metrô confiante e feliz naquele 11 de setembro de 2001. Eram 8h, e ele atendia o seu primeiro cliente. Às 8h46, um avião atingiu um dos prédios. Às 9h03, um segundo avião atingiu o outro prédio. Às 9h59, um deles desabou, seguido pelo segundo, às 10h28. Às 8h30, o dono da lanchonete perguntara quem estava livre para pegar uma encomenda na rua ao lado, o brasileiro, querendo mostrar serviço, acatou o pedido e foi atrás dele.