terça-feira, 22 de dezembro de 2015

DONA MARIANA E O CARROSSEL


Aos 80 anos, dona Mariana queria andar num carrossel, era esse o pedido de aniversário. Não queria festa, não queria bolo, queria apenas andar num carrossel. Apaixonou-se por um aos 20 e deixou-se envelhecer, quando se torna criança de novo, para exigir tal capricho.


As netas não se conformavam, quem sabe uma viagem às origens, na Itália, com os filhos, uma festa surpresa, com amigos da infância, já sendo revirados em redes sociais etc. Nada deixava mais brilhantes os olhos da senhora que um carrossel.

Não havia um parque de diversão por ali há anos, o único que encontraram foi a 35 km de distância, um trajeto mínimo para que a magia acontecesse.


E naquele domingo, uma comitiva dos Manfredinni seguiu sob um sol escaldante, mas o ar-condicionado deixou a velhinha acesa. Não sabia aonde iria, no entanto julgou algo sério, porque se ninguém morreu ou casou e todos estavam presentes, deixou-se com bons fluidos.

E sorriu como criança ao notar o que estava prestes a acontecer. Sorriu como nunca sorrira na vida, porque teve a certeza de que os sonhos podem acontecer, mesmo que levem 60 anos.

As bisnetas a pegaram pelas mãos, e pode-se dizer que o clã preencheu o decadente lugar. Não havia mais do que 30 pessoas no parque. A comitiva quase dobrou o lugar. Entraram e rumaram direto ao carrossel. O filho mais velho preencheu com 50 reais a mão da operadora, pedindo que Mariana fosse sozinha no brinquedo, umas voltas só dela, um sonho que se sonhou sozinha.

E assim aconteceu. Demorou quase 5 minutos para ajeitá-la no brinquedo. O parque parou. Visitantes, empregados, todos logo souberam de tudo e largaram por minutos a vida, porque quando sonhos acontecem, embalamos nos dos outros.

E o círculo se fez, tudo pronto. A roda começou a girar, não se sabia para onde olhar, se para o sorriso maravilhado de Mariana, se para as lágrimas de todos por ali ou para as palmas que embalavam cada aceno que ela dava em cada volta, sentada num cavalinho rosa.



Talvez as voltas tenham durado uns 5 minutos ou menos. Mas foram os 5 minutos mais felizes de uma mulher que venceu a Segunda Guerra, perdeu o marido com 5 filhos. Trabalhou como costureira e abriu o próprio ateliê. Expandiu para o Brasil e dois países da América do Sul e para Itália a sua marca.


Seis idiomas. Um patrimônio que poderia comprar a Disneylândia, mas o que ela realmente queria eram as voltas no carrossel.

Quando parou, todos aplaudiram e ela acenava feliz, feliz. O filho mais velho chegou e perguntou se queria mais voltas. Disse que não, "realizar um sonho era divino, mas abusar dele seria indigno".

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O SINO AINDA NÃO TOCOU


Sentou-se na praia deserta. Olhou adiante e, tão indeciso quanto as ondas, ora desejava ser engolido por uma ora torcia para que algumas não o pegassem. Olhou aos lados e só sentiu a brisa forte. Respirou fundo.

Teve a ideia de se levantar e andar. Teria de andar, talvez sentir a areia prender-lhe os movimentos, não poderia saber se algo o agarrava ou se desfazia do passado. Não percebeu que o mar apagava suas pegadas. Talvez desejasse que apagasse as dores que acumulou até aquele dia.

Não havia sol e pensou ser como sombra, intocado por nada. Teve a certeza de que Cristo não teria passado quarenta dias em reclusão, porém era disso que precisava. Andaria por 40 dias, ficaria calado por 40 dias, purgar-se-ia por 40 dias.

Havia ninguém por ali. Caminhou por uns 15 minutos e, como na vida, sentiu que, mesmo andando, parecia estar no mesmo lugar. 15 anos deixados para trás, os mesmos 15 minutos deixados para trás. Respirou fundo. Ajoelhou e passou a cavoucar a areia com o indicador, como se pudesse procurar algo, desvendar outro ou esconder mais um.

Não se lembrou se deixou os chinelos no carro. Sentiu frio, sentiu-se só, mas não solidão, um vazio, porém não se entristeceu com isso, apenas sentiu. Tentou deixar o som em volta dizer o que tinha de ser dito. Deixou que a própria consciência tentasse gritar mais que a maresia daquela tarde cinza.

Sentou-se nos calcanhares, abraçou os joelhos e não imaginou até quando pudesse ficar daquele jeito. Procurou alguma resposta em mais uma onda que chegava e perdeu as contas de quantas esperou para isso acontecer.

Viu um siri, que tentava se enfiar na areia. Pensou em ajudá-lo, preferiu não. Enfim,  o bicho conseguiu.

E foi então que soube que tinha de fazer, a única coisa cabível, a última chance e mais uma de acertar. Tantos anos andando de lado, decidiu ser siri e se esconder no mundo, enfiar-se na vida e tampar-se com os dias.

Voltou ao carro, pôs-se na estrada e seguiu. Os chinelos ficaram na praia mesmo, pois os pés que os calçaram uma vez agora não lhe serviriam mais.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O DIA QUE RECEBI DOIS BEIJOS DE ZIRALDO


Quase impossível encontrar seu ídolo, trocar palavras, então, está na classificação de lenda! E jantar? Pois é, quando as três coisas acontecem, rendem excelentes histórias e temos de levar isso ao maior número de pessoas.


Não sei quantos livros li do Ziraldo, sei que ele é minha referência de escritor infantil, simples, direto, deliciosamente criativo e talentoso. Em 1999, trabalhava em um instituto de educação, uma multinacional, que tinha o hábito de trazer um palestrante anual, numa espécie de formatura.

Assisti no ano anterior - por quase 3 horas -  ao magnífico Heródoto Barbeiro falar, depois de ter conversado com ele na TV Cultura, de São Paulo. E no ano seguinte, uma colega de trabalho apareceu com um contato da agente do escritor Maluquinho. Sonho. Liguei para ela, que me deu o número da secretária dele. Sonho.

Naquela tarde, lembro-me da roda que os amigos fizeram quando liguei para o escritório do Rio, e quem atendeu ao telefonema? Sim, o homem de sobrancelhas brancas grossas. Reconheceria a voz dele a quilômetros. Gaguejei, consegui e terminei a conversa com a mulher.

Sonho. O preço dele foi aceito. E, três semanas depois, estava eu na recepção do hotel esperando o cara para jantar. Tremia dos pés à cabeça. Ele apareceu, de colete e meias vermelhos. Ele me chamou pelo nome, me abraçou e me deu um beijo na bochecha. Jantamos e conversamos muito. Senti os olhares me encarando e tentando saber quem era o rapaz ao lado do Ziraldo.

No dia seguinte, ele daria uma palestra, mas só depois de ser apresentado por mim. Carinhosa e metidamente elaborei um texto sobre o cara. E li firme, ao som de Bola de meia bola de gude, na versão do 14 Bis.

Dei à plateia as palavras justas que merecia, e o palestrante, emocionado depois da última frase, levantou-se sorrindo e me deu um abraço longo, sob aplausos, mas não ousei enxugar as lágrimas que ele me deixou na bochecha direita.


terça-feira, 24 de novembro de 2015

ÁLGEBRA...

Tentou se divertir o fim de semana todo, mas aquela prova de álgebra lhe tirava as atenções. Culpou-a pelos dois gols perdidos. Amaldiçoou-a por os amigos não poderem aparecer para mais uma rodada, justamente por causa do teste. Desejou morrer porque tinha de estudar algo que não entendia. Imaginou-se na máfia, em que se endossava o ditado "Se não entende algo, livre-se dele". Mas não, era estudar ou... Sim!

Uma cola!

Óbvio! Quem precisaria passar horas debruçado em algo que não lhe serviria para o resto da vida, já que podia, por alguns minutos, materializar o pensamento em lembretes? Decidiu que depois do macarrão daquele domingo, elaboraria a melhor de todas elas e provaria ao professor - não, a esse não -  e provaria ao sistema que álgebra era tão inútil quanto um ioiô.

Mas antes decidiu ver o filme. Depois, foi ao banho, jantou e aí sim, abriu o caderno e se deparou com o horror. Havia cerca de 10 exercícios sobre o assunto. Como não sabia qual poderia cair, o menino decidiu copiar todos. Mas deveria fazê-lo em algo minúsculo. Fez o primeiro, o segundo.

Não percebeu, mas o terceiro, ele resolveu, assim como o quarto, o quinto! E sorriu, sentiu-se poderoso, porque a mágica começou a acontecer. De repente, não precisava mais de cola, de professor, de nada, sentiu-se autodidata, ainda que desconhecesse a palavra.

Do quarto ao décimo, ele resolveu e foram 7 acertos. Como?! Não se deve mexer no milagre nem na fé. Por instantes, viu que a matemática se tornava parte de si. Como os dedos estão para a mão. Por instantes, eles e os números, um só.

Esqueceu a cola, tinha vontade de anunciar a todos o feito, mas não saberia como explicar à mãe nem ao pai que a cola o motivou, a cola o despertou, que realmente a cola era a melhor opção à vida, às provas.

Acordou feliz e tomou café radiante. Seguiu feliz à escola e entrou na sala radiante. Sorriu feliz e pegou a prova radiante. E o sorriso se intensificou quando viu as questões. Resolveu tudo tão rápido e tão perfeito que entregou a prova sorridente e seguiu radiante de volta ao seu lugar.

Para se gabar, pediu licença ao professor para deitar a cabeça e cochilar. Não percebeu os olhares raivosos de todos. De tão feliz, adormeceu. E despertou minutos depois com a mãe ao seu ouvido: "dormiu sentado estudando, filhão? 10 é pouco hoje, hein?! Vamos, o café está na mesa!".

E percebeu realmente que havia algo mais inútil que o ioiô e a álgebra...

terça-feira, 17 de novembro de 2015

AH, ESSAS MULHERES...

A angústia é o maior incentivo e o mais natural para a confissão. Quando o amigo percebeu que a voz lhe embargava, convidou-o para uma cerveja e deixou que tudo desinchasse. A consciência leve, ainda que não resolva a situação, ao menos desafoga o aperto e desacelera a perturbação.

Ele fora testemunha do começo daquele relacionamento promissor, nunca se largavam e juraram amor eterno. Era triste ouvir tudo aquilo. Não podia crer que se afastavam e que a única coisa que os unia eram as indiferenças. 

No segundo copo, soube que a mulher não olhava mais na cara do marido, que era comum reclamar e passar nos cantos balbuciando alguma imprecação. Que disse que o odiava na cara dele, sem medo nem respeito. Que - pode isso? - chegou a cuspir na sua cara. Incrédulo, o amigo se emocionou com as lágrimas daquele homenzarrão. 

Viu que o desânimo e a tristeza eram-lhe a sombra da realidade. Viu-o desabar, perder o brilho de anos atrás, o sorriso de uma vida toda e a autoestima que o precedia. Maldita. Odiou-a também, quando soube que no aniversário do amigo não seguiu o protocolo, sequer ficou por lá e passou a noite sabe-se lá onde, sabe-se lá com quem.

E acabou se emocionando ainda mais ao saber que o amigo não queria a separação, que dizia que o casamento era para sempre, que a vida fora ótima à união de ambos e não poderia virar o rosto à felicidade como tem virado há meses. Soluçando, revelou que, sempre que brigavam, ele lhe trazia flores, como um perdão, como redenção e ela teimava em jogá-las no lixo.

Nojenta. Vadia.

Horas depois, o amigo não permitiu que ele dirigisse. Levou-o de táxi e deixou-o em casa. Torceu para não encontrar aquela maldita, seria capaz de lhe dar um murro, porém, se o fizesse, teria de bater-lhe no olho esquerdo, porque o direito, dessa vez, havia fechado por inteiro, sem contar o nariz quebrado e as outras escoriações pelo corpo que, a essa altura, e pelas semanas que passaram, já deviam ter desaparecido...

terça-feira, 10 de novembro de 2015

BRÁCTEA VERMELHA

Quando se deu conta, estava esmerando as plantas daquela padaria. Uma a uma, posicionadas em fileira, vermelhas, numa sintonia linda e pensou: "como conseguiam cultivar já há semanas as mesmas plantas e todas estarem lindas, continuarem intactas?".

Não murcharam, não caíram. Sem perceber – mas isso seria inevitável – faz uma comparação com a própria vida até aquele momento. 46 anos, 5 casamentos falidos, duas pensões em atraso, 4 empregos mal resolvidos.

Tentou contar quantos amigos tinha, amigos daqueles que se escoram bêbados voltando sabe-se lá de onde. Tentou duas vezes, não conseguiu.

Também não lembrou quando foi a última fez que a única filha havia telefonado a ele sem a desculpa de um extra ou para reclamar pela falta disso. Preferiu não ir a fundo para não se chatear ainda mais.

E os irmãos? Os 4, tirando a mais velha, morta num enfarto fulminante, tentou também se lembrar qual foi o último contato: na missa de sétimo dia do pai, morto três anos depois da mãe.

Mas tinha o Chico, sim, mesmo que fosse o barbeiro, era bom ouvinte, bom papo e, ao menos uma vez por mês, talvez precisasse só disso, ele esquecia um pouco sobre toda a solidão que o acompanhava.

Naquela manhã, pesou todos os dias que viveu e chegou a conclusão de que havia nada do que esperar, havia nada do que se gabar. Todos os insucessos possíveis lhe eram de domínio. Sem amigas, sem amantes, percebeu que a maior aventura da sua vida foi ter se perdido num bairro da zona norte.

Não recebia mensagens há dias, ninguém havia curtido sua última postagem, há dois meses.

Havia todos os motivos para ratificar a própria insignificância.

“Pro inferno”, pensou. Ao sair da padaria, chegou perto das plantas vermelhas, tão lindas, tão bem cuidadas, tocou-as e sentiu que tudo poderia mudar. Uma onda de euforia e de ânimo voltaram a si como um frenesi. Sentiu-se jovem, renovado, um milagre de Deus.

Ao sentir o toque da natureza, soube que a tudo haveria uma cura. Sim, as plantas eram de plástico.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

UM HERÓI NA BIG APPLE

Talvez tenha sido aos 8 anos, quando viu Nova Iorque num filme e imaginou que os cenários fossem tão mentirosos quanto o super-herói que cruzava os arranha-céus de lá. Mas não, o irmão mais velho certificou-o de que a cidade existia e, na primeira matéria do jornal, em que mostrava o Central Park, creu estar sonhando e colocou na cabeça que era lá que gostaria de ir, de viver, gostaria de se vestir de Nova Iorque. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Por ela, conheceu o jazz, conheceu Woody Allen, conheceu museus e Sinatra. Dançou com os hippies em Hair e pegou um táxi com De Niro. Perdeu o sono com os musicais e virou o ano, todos eles, na grande bola brilhante. Ele vivia Nova Iorque, ele era Nova Iorque. Quando olhou ao lado, à sua vida, percebeu que teria de fazer por si. Decidiu ser seu próprio Superman e salvar-se da mesmice. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Aos 13, começou a entregar os remédios da farmácia do bairro, dois meses depois, já tinha 30 dólares. Sim, o tio, formado em economia, já aparecia em seu destino. Aos 15, começou a fazer um escola técnica, e os motores apareceram em sua vida. Com o estágio, em dois anos, já contabilizava 1000 dólares. Aos 18, percebeu que seus 2000 dólares, depois de uma feira de intercâmbio, pagariam sua passagem e ainda serviriam para um fôlego para limpar banheiros por ali. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

E foi o que ele fez.  O pai conseguiu pagar o táxi e comprar uma boa mala. O padrinho ajudou com alguns casacos e blusas e a mãe só deu lágrimas. E o rapaz já deixava para trás tudo que viabilizou seu foco. Já sentia a brisa gelada do inverno e o bafo quente do verão. Tiraria fotos com a Estátua da Liberdade e alimentaria os esquilos do Central Park. Subiria até o topo do World Trade Center e ajudaria o King Kong a descer do Empire State. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Desceu 10h depois no aeroporto JF Kennedy e fora recepcionado pelo representante da escola, que o levou até a nova família. Mal ouviu o que o rapaz dizia pelo caminho, no itinerário, como uma chamada oral, fora falando os nomes das ruas e a história dos prédios com a voz embargada de criança faminta. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Foi para o Brooklyn e quase teve um torcicolo ao tentar divisar toda Brooklyn Bridge e parece ter escutado que a família que o receberia moraria por lá, e morava. Saiu sorrindo e viu um casal de cinquentões à sua espera. O sobrado geminado de tijolos cor de barro e suas janelas vitorianas era mais que uma fantasia, seria sua nova roupa. Acatou o pedido e saiu correndo atrás dele.

Aprendeu a ir ao curso, o que lhe ocupava meio período, e decidiu trabalhar, semanas depois, porque um dia sem respirar Nova Iorque era um dia perdido, não queria mais perder todos os quase 6600 dias sem ar.  Pelo conhecimento do pai americano, soube que, naquele mês de setembro, abririam vagas numa lanchonete no World Trade Center. O rapaz, há 15 dias por ali, ficou alucinado. Naquela mesma segunda-feira, foi até as torres gêmeas, ficou embasbacado, porque ainda não as havia visto. Encaixou-se no perfil e não se importou de começar no dia seguinte. Não haveria aula na manhã daquela terça-feira. Acatou o pedido e foi atrás dele.

Imaginou-se Clark Kent indo ao seu primeiro dia de trabalho no Planeta Diário. Saiu do metrô confiante e feliz naquele 11 de setembro de 2001. Eram 8h, e ele atendia o seu primeiro cliente. Às 8h46, um avião atingiu um dos prédios. Às 9h03, um segundo avião atingiu o outro prédio. Às 9h59, um deles desabou, seguido pelo segundo, às 10h28. Às 8h30, o dono da lanchonete perguntara quem estava livre para pegar uma encomenda na rua ao lado, o brasileiro, querendo mostrar serviço, acatou o pedido e foi atrás dele.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

COMO SUA VIDA É?

Diziam que a garota era diferente. Que corria em círculos e pensando para saber se as ideias se chocavam. Que gostava de olhar o arco-íris refletindo no rio, imaginando que as águas sorriam para ela. Que andava pela rua ouvindo música, protagonizando a abertura do próprio filme.

Mas até provar se isso mesmo era fato, todos deixavam de sonhar.

Diziam que a garota amava caminhar pelas alamedas em dias cinza só para realçar a cor das árvores. Diziam que ela amava ficar no inverno em praças com galhos secos e pendurar maçãs, só para sentir o gosto das cores rubras.

Mas até provar se isso mesmo era fato, todos deixavam de sonhar.

Diziam que a garota, enquanto fazia compras no supermercado, se imaginava colhendo flores, que enquanto estava só em casa, afastava os móveis, colocava a música preferida e fazia um show a milhões, sempre com bis. Diziam que ela tentava entender as pessoas apenas pelo olhar.

Mas até provar se isso mesmo era fato, todos deixavam de sonhar.

Diziam que a garota era todo sorrisos, que ninguém jamais a vira chorar e que sua alegria não ofendia, contagiava. Diziam que, quando viajava, fazia questão de se perder entre a cultura do local e os costumes, como os olhos que perdem a linha de um bom livro, ou a boca que busca aquele amendoim misturado ao sorvete.

Mas até provar se isso mesmo era fato, todos deixavam de sonhar.

Diziam que a garota um dia sumiu. Que, se realmente tudo que fizera fosse fato, não passariam de besteiras, porque - para sonhar - precisa de coragem e, para ter coragem, não se pode impor limites, tem que se lamber a última página do livro e ler tudo o que passa pela sua vida.

Mas até provar se isso mesmo era fato, todos deixavam de tentar.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

OUTONO... (vá até o fim, clique na música e leia o texto com ela)

Não era a luz nem o local. Não era o clima nem o ambiente. Era tristeza mesmo. Aquela melancolia aguda que arde o peito e que nos faz tremer, desejando que nos tire de lá a qualquer momento.

Estava sozinho no casamento do melhor amigo. Tentou disfarçar a solidão, mas chega aquele momento em que cada um segue com seu par. Ele respirou fundo encarou o vazio do seu lado esticou a mão ao nada e saiu para o jardim com ninguém.

A música estava longe, muito longe, e aquele fim de tarde de outono era um convite a tudo, menos à tristeza. E ele conseguia sentir-se só. Tentou chorar para desafogar o peito, mas nem isso conseguiu, além de cabisbaixo achou-se inútil.

Deve ter ficado minutos olhando o champanhe borbulhar, percebeu-se contando cada estouro dela e quase sorriu quando enfiou o nariz no copo para tentar sentir cócegas.

Viu que aquilo não funcionou. Estava disposto a entrar, despedir-se do amigo e seguir a um lugar qualquer. Pôs o pé no salão de volta e a música tocou. Fechou os olhos e se viu em um local aconchegante e seguro.

Talvez tenha sido a música, talvez tenha sido o cheiro do bolo. Ou talvez tenha sido aquela moça. Não, não se parecia com a ideal nem chegava perto do que imaginava para si, porém fez o que deveria ter feito.

Aproximou-se, sorriu o mais sincero dos sorrisos, estendeu a mão. Ela retribuiu sorrindo e eles dançaram até a última nota.

Não perguntou o nome dela, entretanto soube que, às vezes, uma dança pode colocar ao menos a melancolia sentada, à espera também de um outro par.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

A BOLHA!


O problema às vezes é apenas acordar. Sim, enquanto dorme, nada atrapalha. E foi assim, e é assim, e será assim. Choveu o dia todo e isso não seria grandes coisas ao cara, acontece que no fim daquele sábado, ele, ainda de pijama, estava em seu escritório fuçando algo na internet – quando escutou uma gota, sim.


O barulho seco e breve no obsoleto carpete castor entregava o que viria a se tornar num tormento inesquecível. Imediatamente ele olhou pra cima e viu que do teto, pelos cálculos dele, de dois em dois minutos, intermitentes pingos brotavam lá de cima.

Tudo bem que o vizinho certa vez avisou que, morando tão perto de árvores e o vento e as folhas secas um dia cobrariam esse preço. Ele imaginou que nunca precisasse limpar as calhas, e – naquele exato momento – soube que tinha aberto uma torneira à preocupação.

A chuva não cedia e não havia como remediar de modo breve. No teto branco, uma pequena veia e uma destemida gota. Claro que o homem ficou horas olhando para o teto e percebeu que o intervalo entre as gotas caía de dois para um minuto e meio.

A veia pareceu dilatar. Pareceu não, dilatou mesmo. O lado bom é que as gotas pararam. Com dor no pescoço, ele preferiu ignorar aquilo, saiu do quarto e imaginou-se em outro lugar. Por um milagre, esqueceu as gotas e se entreteve. Adormeceu.

Era madrugada, quando os trovões, incessantes, o acordaram. Ele tentou virar-se, mas se lembrou das gotas. Foi até o quarto, acendeu a luz e percebeu que a marca deixada pelas gotas estava quase sumindo. E ainda sorria quando olhou para o teto e viu aquilo. Não podia ser. E era.

Uma bolha, sim, uma bolha gigantesca, um alien pronto para ser parido. Algo aterrorizante. Ele ficou paralisado, sem ação, e como aquilo fugira do seu controle, a boca secou e ficou amarga, o coração saltou. E a pergunta que não poderia aparecer: para onde iria toda aquela água?

De imediato, retirou os eletrônicos do quarto. Afastou a mesa, claro de um modo tão ordenado que nem mesmo o caos poderia afetar a logística perfeita do cara.

E a bolha crescendo, cada vez mais, a olhos nus. As mãos suadas, o coração acelerado, mudar o ritmo intenso daquele jeito era desesperador. E a bolha crescendo. E ele esperando pelo pior a qualquer momento. Correu para forrar o carpete. Conseguiu plásticos sabe-se lá de onde e forrou o chão, a mesa, os eletrônicos e tudo o que no quarto pudesse ser forrado.

E a bolha crescendo. Até tentaria procurar uma oração pra bolha ceder, mas a internet estava coberta. Torceu para a bolha sumir, mas, ao invés disso, assumia proporções inimagináveis. Até pensou colocar uma capa de chuva e furar de uma vez, porém aquilo não estava em seus planos.

Foi quando a esposa passou e o viu, às 3h, sob uma chuva forte, sentado, esperando pelo parto. E sabendo que aquilo não mudaria, ela pegou uma escada. Colocou no quarto, subiu até a bolha e, antes que ele dissesse um “não!” que acordaria o mundo, furou uma bolha de ar. E o berro acordou a todos, até mesmo os dois.

Um pesadelo dos infernos aquele. Chovia muito ainda e ele realmente se lembrou do pinga-pinga do quarto ao lado e, num salto, foi até lá. Acendeu a luz. Olhou para cima. Não havia bolha alguma, toda a água que pudesse estar lá já havia se esvaído, junto com o gesso do teto, que cobria, neste exato momento, o quarto inteiro.




terça-feira, 4 de agosto de 2015

SARAMAGO E O IATE QUADRICULADO


Quem diria que aquele site de relacionamentos poderia ser um viés de resgate ao pobre coração sofrido. Anos depois de terminar o último relacionamento, ele se aventurou pelo mundo virtual para tentar tornar real algo que jamais pudesse imaginar.

Não soube precisar quantas foram as conversas, porém estava convicto que depois de tantas afinidades e compatibilidades, que seria o momento crucial para se conhecerem. Tomou coragem naquela noite e fez o convite. A resposta imediata foi o melhor indicador para comprovar que estava no caminho certo e nunca se viu tão apaixonado.

Nunca em tanto tempo sentiu aquilo e sorriu pela primeira vez o sorriso da vida, o sorriso da cumplicidade, o sorriso da alma.

Ela apareceria com um livro do Saramago na mão, ele estaria com um Iate quadriculado. Escolheu esperá-la na Paulista com a Bela Cintra, ao lado da igreja São Luís. Ansioso, chegou uma hora antes, agendar o destino merece um ritual saboroso, uma paciência tibetana. Preferiu degustar o clima, as cores os aromas.

E aqueles 17 graus eram convidativos.

Deveria estrar no terceiro chiclete, quando levantou os olhos e viu uma mulher magnífica. De repente, tudo ficou escuro, tudo o que tinha cor, ficara cinza, e somente ela era aquele ponto vermelho entre tudo.

Ele parou. Ela parou.

Nada falaram. Ele ficou estático. Ela também. Ele deu um passo à frente. Ela o imitou. Beijaram-se sem uma palavra sequer trocada. Tudo sumiu da mente dele. Ele só pensava que tinha de ter aquela mulher. Ele a quis como nunca. Ele a beijou como nunca.

A moça do livro?

Poatz... Ele nem pensou nela, mesmo porque ela estava entretida demais, agora, beijando o amor da sua vida, que estava de tênis quadriculado, mas ela nem teve tempo de olhar pra baixo.

terça-feira, 28 de julho de 2015

NÃO POSSO MAIS VIVER SEM MIM

E não é que há pessoas que nasceram para se autossabotarem? Firmina era um exemplo típico, daquelas que se odeiam tanto que o inimigo até tenta ajudar. Talvez fosse o DNA ou alguma praga cósmica ou religiosa, que seja, estava em seus dias e em suas decisões o sacramento da sentença à morte.

Isto não era previsto, não estava escrito nas estrelas. Coisas ruins acontecem a todos. Decisões equivocadas também, mas fazer disso uma rotina era talento de poucos. A primeira chance, e isso é dado a todos, aconteceu quando ela tinha 7 anos. Não se pode medir as decisões de uma criança, as possibilidades de erro são tão intensas que o acerto deve ter como brinde 10 anos de sorte em tudo.

Ela adorava o gatinho da vizinha. A proximidade dele era ainda maior pelo fato de a mãe proibir qualquer coisa de 4 patas pela casa. Gostava tanto dele e de ser amiga da menina que teve a brilhante ideia de trazer outro amigo ao felino. Encontrou um cachorrinho pelo caminho naquela tarde. Ele a acompanhou como sombra. Seguiu-a até a casa da amiga, que ficou curiosa com a surpresa que haviam prometido ao Frajola. Assim que a garota apareceu no portão com o gato, o vira-lata começou a latir. O gatinho se assustou, pulou dos braços da dona e sumiu. A amizade terminou.

Na adolescência, depois do trauma da melhor amiga perdida, finalmente retomava uma segunda chance. Eram inseparáveis. Estudos, deveres, cinema. Foi quando a menina lhe revelou que estava apaixonada por um rapaz do segundo ano. Corriam as más línguas que ele não tirava os olhos de Firmina. Mas ela nem queria saber do assunto. Não deixaria outro gato escapar.

Assim que soube que o rapaz odiava as meninas atiradas e tinha a predileção pelas mais difíceis, teve uma ideia genial. Na volta e no ponto de ônibus, decidiu agir, chegou mascando ensurdecedoramente um chiclete, de batom rubro, e ombros à mostra, chamou-o de gostoso e tascou-lhe um beijo à queima-roupa. Não passariam de 5 segundos e o empurrão viria. Não veio. Ele a agarrou e não queria mais soltá-la. Depois a moça teve de explicar à rancorosa amiga que a intenção era genuína. Acabou o ensino médio sozinha.

Passou os 4 anos de faculdade colada nos estudos. Talvez tenha sido o trauma com o gato ou com o rapaz da adolescência. Seus amores nunca aconteceram. Talvez tenha acontecido na mesma época em que surgia uma amizade madura e indissolúvel. O trabalho serviu para uni-las e unidas ficaram, mesmo que cada uma tenha seguido em frente depois de 3 anos no mesmo setor. As empresas eram distintas, entretanto a relação permaneceu.

Foram madrinhas de casamento uma da outra e todos os erros não se repetiriam. Eram confidentes. Sabiam mais de uma e outra do que de si próprias. Até que a amiga começou a ter problemas para ser mãe. O marido desejava gêmeos e não havia período fértil, reza, benzedeira que solucionasse o problema. Justamente na mesma época em que começaram as desconfianças de Firmina com o marido. 

As queixas de ambas aumentavam. A sessão de terapia acontecia diariamente. Uma menstruação atrasada e uma noite de sexo serviam de alento, porém se dissolviam dias depois. As cólicas menstruais e as reuniões noturnas as traziam para a mais dura realidade. Eram como irmãs e se apoiavam uma à outra. Ela não deixaria um terceiro gato aparecer.

E, naquela noite, a amiga liga desesperada, entretanto Firmina não atende à ligação. Duas horas incessantes depois, já de madrugada, a campainha toca. A moça, com os olhos inchados, recebe a irmã também em frangalhos. "Ele foi embora, querida" e se abraça à Firmina de modo desolador, que retribui também o afago soluçando sem parar, dizendo à leal e à infértil escudeira. "Era a secretária dele, sempre foi".

E ambas chegam ao limbo, beijando os pés do capeta sem dó nem vergonha. Horas depois, já amparadas, fazem um voto de amor eterno. Cansadas, decidem fazer um chá. Talvez tenha sido o cheiro da erva-cidreira e Firmina levantou de súbito, levando ao chão tudo que havia na mesa, xícaras, colheres, a bolsa, e foi vomitar em jatos no lavabo da sala.

Não havia amanhecido quando a amiga, depois de se certificar que a moça estava bem, começou a recolher tudo o que havia no chão. Ah, sim, o teste de gravidez ao lado da escova tinha dado positivo...

terça-feira, 21 de julho de 2015

AMOR...

Todo ser humano nasce com a capacidade de amar. Seja o amor por alguém, por algo, por um animal, independe, todos sabem amar.

Não existe um jeito de amar, existe o amor em si.

E eles se encontraram, numa mesma frequência, numa mesma química. Ele adorando falar, ela adorando fazer.

Pode-se dizer que amor é atitude, porém há quem discorde, ou melhor, complemente, dizendo que amor também é palavra. Porque a palavra alimenta.

Tinham tudo, o tempo certo, o tom exato e a cor equilibrada. Mas quando e se a dúvida aparecia, um reparava que ela falava de menos e a outra reparava que ele falava de mais.

E, às vezes, um reparava que ela agia de mais e a outra reparava que ele agia de menos. Um estudando o outro.

Quando se ama, não há que se entender, há que se sentir, porque a razão aparece em livros, não no beijo.

E o ser humano muitas vezes se dá o direito à dúvida e, dependendo de quão coeso seja o sentimento, o genuíno sobrevive sempre.

Mas não há aqui um tratado de relacionamentos, há um dia de chuva, numa tarde fria.

Não se sabe precisar quem sentiu primeiro, fato é que naquele momento, ela apareceu na porta do quarto, enquanto ele lia. Ela chegou bem perto e disse:

- Eu amo você.

Ele sorriu, olhou-a de uma forma tão terna e plena que o sorriso disse mais que todas as vezes que a boca o fez. Depois, ele beijou-lhe os olhos, abraçou-a e massageou-lhe os pés.

Não se sabe se ela voltou a falar aquilo de novo ou se a massagem se repetiu, ambos, depois daquela tarde, ratificaram que aquilo tudo seria para sempre.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

LONG LIVE ROCK'N'ROLL

Não soube quando ou qual foi o exato momento, mas, antes mesmo de falar “mamãe”, a menina já cantava o que David Coverdale cantasse. Havia até um vídeo caseiro, em VHS, dela, vibrando ao som de HERE I GO AGAIN, e isso ela deveria ter uns 2 aninhos.

Existem paixões, existem obsessões e existem coisas que Brígida sabia. Ela não o queria para marido, ela não o queria para amigo, ela o queria para se vestir dele, como um casaco de couro, como uma calça jeans, como uma pele que a esquentasse no inverno e a resfriasse no verão.

Paredes do quarto, capas de caderno, proteções de tela, para onde se olhasse a vida dela enxergava-se o inglês de cabelos longos e voz de trovão. Sua fase no Deep Purple e toda a trajetória no Whitesnake eram a trilha sonora da moça.

Shows em VHS, shows em DVD, em blu-ray, tudo o que já existia passara pelos olhos dela. Só faltava o ao vivo, que aconteceria em duas semanas.  Ela conseguiu. Anos rezando e ela conseguiu. Sim! Brígida não dava chiliques, Brígida não berrava, no entanto explicar por que chorava tanto sem emitir som algum por dois dias seguidos não foi tarefa fácil.

- Ela vai ao show do Whitesnake... - e quem a conhecia bastava a justificativa. Jantou aos prantos, estudou aos prantos e trabalhou aos prantos.

1 dia antes do show, talvez fosse pela proximidade do evento, ou talvez fosse pela proximidade do evento, ou talvez fosse pela proximidade do evento, ela caiu em febre, de 40 graus. Desmaiou no trabalho e acordou em casa. Não comia direito há 3 dias, só bebia Coverdale e mais nada. 

Eram 10 horas da manhã, quando se viu no quarto com os pais, a irmã e duas amigas. E bastou olhar a camiseta preta de uma delas, apenas se ergueu da cama e começou a tirar o pijama.

- Ficou louca, o que está fazendo?! – disse a mãe mais estarrecida ainda quando teve a certeza de que ninguém a prenderia por lá.

- Vou ver o Coverdale... – calma e firmemente.

O pai tentou impedi-la, porém o olhar que dera a ele foi o suficiente para que lhe desse a extrema-unção. Vestiu-se, a mãe chorando, a irmã indiferente, as amigas sorrindo, ampararam-na pelos braços. Driblaram a sorte e seguiram.

Às 19h, os portões foram abertos, as últimas forças que teve, ela usou para correr e correu mais que todos, que, minutos depois, a alcançariam no parapeito, colada ao palco.

E Brígida desandou a chorar. Teve a certeza de que não estava anêmica, desidratou de tanto chorar e desidratar-se-ia, caso seguisse com aquilo tudo. Chorou com todas as forças, porque sabia que o veria, sabia que merecia tudo aquilo, sabia que em algum momento, ele a olharia e isso, dentro de todas as utopias que sonhou, seria o laço mais estreito com o ídolo.

21h30. As luzes se apagaram, ela ainda chorava e rezava para ter forças e conseguir vê-lo claramente. A música veio junto com o clarão. Levantou a cabeça e não sabe qual momento aconteceu, parece que viu um loiro chegando ao microfone e tudo ficou escuro. Desmaiou. Sim, no momento crucial entre herói e fã, ela foi fã e ele herói, e a vida teve de tirá-la de lá.

As amigas berraram e os seguranças foram mais rápidos, debruçaram-se sobre ela e a puxaram para dentro do setor entre o palco e o público.

E, como num estalo, ela acordou. Talvez não tenha premeditado, num salto, livrou-se de um deles, chutou as partes baixas de outro, escalou a estrutura de ferro e, em segundos, estava cara a cara com David Coverdale, que sorriu. Não o mesmo sorriso dela, mas sorriu.

Atirou-se no pescoço dele, por segundos, porque os trogloditas a tiraram de lá numa velocidade muito maior, sob a ovação do público e os berros de outras.

Brígida não pôde ver o show, escutou-o de fora até o fim, porém aqueles segundos intermináveis que passou valeram cada lágrima. No dia seguinte, ela chegou no trabalho no mesmo horário e seguiu até lá cantando: “here I go again on my own”.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

O BOMBRIL DA VIDA

Sempre acreditei que a fé é um excelente remédio a tudo. Serve como um utilitário a qualquer um, a qualquer situação. Serve como apazíguo ao depressivo, como biotônico ao otimista, como milagre ao descrente. É o Bombril da vida.

Serve como antagonismo e compartilhamento. A primeira vez que entendi o primeiro foi no filme ENSINA-ME A VIVER, em que se vê um jovem que simula a própria morte aprendendo a alegria e o sorriso de uma jovem senhora de 79 anos. 

Quando assisti ao filme, na década de 1980, não havia compreendido muito bem a temática, mesmo porque não havia o Rambo para matar os vietcongues maldosos. Revi o longa há uns 5 anos e pude entender que todos, até mesmo Rambo, deveriam passar alguns dias com a insuportável felicidade de senhora Maude.

Quando li DOM QUIXOTE, em 1999, deparei-me com a inusitada e manjada análise de que o cavaleiro e seu Rocinante eram inseparáveis na loucura. Mas, ao fechar a última página, tive a certeza de que o homem nunca fora maluco, fora sempre um incansável otimista, que encontrou na morte e em seus devaneios a ratificação de tudo que cria.

Minha apreensão se tornou doce, quando vi O EXPRESSO DA MEIA-NOITE, em que o estudante Billy Hayes é preso no aeroporto turco e jogado numa prisão degradante, sofrendo torturas físicas e psicológicas. A fé bate à sua porta e ele a recebe sem querer. Ali, eu aprendi que tudo pode acontecer.

Minha intenção não é convencê-los de algo. Minha intenção é apenas saber que, como uma sombra, uma surpresa, uma recompensa ou por erro, a fé tem lá suas facetas. Sonhar com ela, desejá-la ou idealizá-la não é escolha, mas talento de muitos.




terça-feira, 30 de junho de 2015

AME QUEM TE AME

Dizem que as brigas temperam o relacionamento. Mas qual tempero? Ainda que o cara tenha chegado tarde e com todos os clichês contra, o tempero deveria ser dado naquele jantar, numa tentativa de reverter os sabores. Ele combinou o local chique. 

Reservou mesa. Separou uma data especial, porque segundas à noite não costumam servir de pano para romantismo algum. Foi original. Mandou flores. Tudo bem que as rosas colombianas eram tão vermelhas quanto as marcas do pescoço dele, mesmo assim, uma retaliação ao horror.

O presente chegou no trabalho para se fazer inveja a todas. Tudo bem que a selfie dele no shopping falando disso tenha sido postada antes de o entregador aparecer. Ainda assim era uma retaliação ao horror.

Poderia ser uma premonição à felicidade ou apenas o acaso, mas a música que ela escutou assim que entrou no carro de volta pra casa apareceu por ali, embora tenha sido apenas os acordes finais. Sim. Ele estava disposto a tudo.

Quando passou pela portaria do prédio, o sr. Aníbal a chamou e lhe estendeu uma caixinha: brincos de ouro. Alguém escutou violinos? Sim. Talvez Strauss estivesse por ali, valsando com ela até o décimo primeiro andar. Pode ter sorrido o primeiro sorriso sincero e despretensioso. 

Entrou. Tomou banho ao som de Air Suplly, no volume máximo. Coube no vestido como deveria ser. Não se maquiou tanto, porém destacou os olhos e os lábios. Vestiu-se dos brincos e seguiu para o local. Deu quatro voltas no quarteirão para chegar 10 minutos depois. Foi até a hostess e disse que o namorado a esperava numa mesa.

Acertou, porém ele ainda não estava lá. Raridade aquilo. Pediu um drink e mandou um "Já peço o mesmo de sempre a você?". Em 5 minutos, houve nada. Mandou um "Chegando?" e nada. 20 minutos depois, o "Cadê você?" já trazia uma certa dose de fel. Quase 40 minutos de atraso, e um "Amor, a reunião vai longe, desculpe...".

Pensou em tudo aquilo. Nos brincos, no jantar, nos presentes, na música e tentou entender o que havia de errado. Pagou o drink envergonhada, porque teve a certeza de que a hostess tinha pena dela. Saiu pra casa com ódio e pena de si mesma. 

Parou numa esquina e viu que um mendigo servia uma salsicha suja ao leal vira-lata, que retribuía a ele entre mordidas e lambidas. E viu que tinha de fazer. Ficou claro. Se quisesse algo de verdade, teria de reverter o jogo. Traria para si a própria felicidade.

Chegou em casa, abriu a dispensa e a geladeira e resolveu fazer um jantar. Colocaria todo talento na cozinha. Pegaria a situação pelo estômago, porque a mãe dizia que um tempero bom segura até estação. E sabia que aquela torta de queijo canastra e alho-poró confundiria até os deuses.

Ela mandaria o aviso, mas decidiu chegar de surpresa, porque surpresas sempre temperam o sonso e o inodoro. Estava impecável e, duas horas depois, saía linda, decidida e com a certeza de conquista. E foi o que aconteceu. O sorriso foi acolhedor. Chorou de alegria por ter se amado e por dar amor. O olhar que recebeu dele foi o mais lindo de sua vida. 

A surpresa e o presente também. Não se falaram, ele apenas deu um "obrigado", mas um "obrigado" tão sincero, tão feliz, que até o cachorro, se soubesse falar, falaria. Deu uma lambida na mão dela e se deliciou com a torta, comeu mais que o dono.

Na volta, ela ligou o rádio, radiante, e, se mais cedo a música de ambos tocara, mesmo que os acordes finais, desta vez nem isso aconteceu...

terça-feira, 23 de junho de 2015

A PROCISSÃO DO INFERNO

Péssimo começar usar o clichê para algo, mas inevitável aqui e mais elucidativo: ninguém consegue agradar a todos, nem Cristo conseguiu. E falando Nele, todos temos uma via crucis e uma cruz a carregar. O pior é quando nos dispomos a carregar a cruz alheia e percebemos que interromper a dor dos terceiros é triplicar a própria.

Querer ser o bom- rapaz, o anjinho a todos, é não ter o bom-senso de saber que ninguém salva o super-herói, nem Cristo se salvou, talvez essa seja uma das inúmeras lições que nem todos entenderam na passagem do Nazareno entre nós. Tudo o que é novo representa uma possibilidade.

Diria minha avó que as meninas de ouro estão na igreja, nas missas. Semana Santa em Ouro Preto. Sabe-se lá o que um cara nada devoto vai fazer num feriado santo em uma cidade cujas características pedem qualquer celebração mais efusiva. Aliás, Ouro Preto é uma das cidades mais bipolares do Brasil. Se pegarmos o carnaval e a Semana Santa, não podemos dizer que são a mesma cidade. Uma espécie de pecado e arrependimento.

Enfim, ele foi com um amigo, cuja família de ascendência portuguesa mantinha uma casa na região. Talvez a conveniência do barato o levasse até lá. Chegaram na quinta, e foram à missa do Lava-pés. E debruçados estavam no jogral católico, quando ele percebeu um perfume de rosas. Estava ao lado da avó, mas quem pensaria que sempre numa flor existem espinhos. Troca de olhares, e depois da missa, a aproximação.

Santa semana e santo convite. Bem que queriam, mas a carne proibida. Valeria a pena esperar até domingo. Procissão na sexta, outra missa no sábado e antes do almoço de páscoa, a carne estaria consumida. E lá estavam na ladeira. A bigoduda sorrindo, o andor na frente, a neta com um véu no rosto e ele com o terço nas mãos, pedindo para sábado chegar.

Caminhada longa, começariam na rua Dos Inconfidentes e iriam até a capela De São Sebastião, uma longa e doce jornada, tudo por uma carne desejada. Cânticos, tapetes com serragens, torça de olhares, línguas obscenas a procura da outra e uma torção.Sim, a portuguesa torceu o pé numa das pedras mal-formadas das ruas centenárias da cidade. E cabe a pergunta: quantas torções acontecem no carnaval? Nenhuma. E quem torce o pé numa procissão? E quem pediria para carregar a velha? Sim, a neta, desejosa do prazer, e ele, inebriado pela dor da senhora, se predispôs ao ato.

Magrinha, mas não há 50 quilos que não pesem durante a subida. Dizem que a cruz de Cristo pesava mais de 70, entretanto com certeza, ela não reclamava do calor, não fedia a naftalina, não pedia água. Poxa, nem Cristo pediu água, porque ela, que estava sendo carregada pedia? O rapaz, num calor dos infernos em pleno abril, não blasfemou, mas amava a cada estação em que Cristo caía, porque a procissão parava e ele despejava a senhora no chão. Sabe-se lá quais forças tiravam o Nazareno do chão, mas as forças que faziam o rapaz levantar aquele saco de buço ficava a metros de lá.

E os cânticos, como lamúrios sôfregos, num tom que nem os cães suportariam, ali, no ouvido dele, sem falar nos perdigotos diretos ao ouvido do rapaz. Quantas estações mais? Todos conhecem o efeito da cerveja num homem, aqui ocorria o oposto, a cada parada e todos os impropérios e escárnios a que estava exposto, a língua da menina foi se putrefazendo, os olhos não eram mais os mesmos e a carne já parecia como a de um leproso. Mais uma e outra agora.

A visão turva, o cheiro inebriante, o anjo virando o capeta, e capeta virou quando entre uma entoação e outra a velha arrotou aquele bafo de feijão no pescoço do rapaz. E antes que chegasse a próxima estação, ele a largou ali mesmo. Sob os olhares incrédulos de todos, assim como os da neta. Ele se colocou à vontade de Jesus, largou sua cruz pelo caminho e deixou sua sina para trás, à própria sorte, soltando mais do que imprecações, soltou aquela bigoduda nas pedras.

E se haviam de crucificar Cristo naquele dia, que colocassem mais uma cruz e que não houvesse ressurreição à velha no terceiro dia. A carne no domingo? Naquela sexta mesmo virou um belo sanduíche de calabresa.

terça-feira, 16 de junho de 2015

ESCOTOMA

Infância complicada a daquele rapaz. Tímido, sem graça, sonso, de cabelo estilo Beatles anos 60. Brincava com as outras crianças porque a mãe convidava e oferecia biscoitos, uma espécie de suborno. Era o único na rua que tinha tele-jogo. Acabava assistindo aos demais brincando e subia para o quarto. Até tentou ser diferente, mas a natureza não o deixava.

Certa vez fora convidado, claro, por educação, a um bailinho da vizinha. Bee Gees, uma Caracu escondida. Meninos num canto, meninas em outro. O primeiro par se fez, o segundo e os demais. Apenas dois ficaram lá. Ele e mais outro. Para não ficar chato, uma das meninas decidiu largar um deles e foi até o rapaz, que, pasmo, não conseguia sair do lugar.

A muito custo chegaram ao centro. O menino ficou tão tenso, aterrorizado que urinou nas calças e ninguém perceberia, porém quando saiu correndo, tropeçou no próprio mijo. E sempre existe uma gargalhada, que puxou outras. Conseguiu se levantar e correr, mas só depois de ouvir “esponjinha”. A vizinhança toda estava lá.

Daquele dia em diante, ninguém o via quase. Mudou o turno do colégio. Depois foi para um interno, só voltava nos fins de semana e, por fim, mudou-se para o interior, foi para casa de uma tia e de lá nunca mais voltou.

Anos se passaram. Ele se formou em Engenharia. Mudou, saiu do casulo, tornou-se o oposto. Contava quantas meninas passaram pela suas mãos. Era referência para tudo. Foi ao Rock in Rio de 1985, esteve em Berlim, na queda do muro, em Londres, no tributo a Freddie Mercury. Namorou francesas, fez amigos nos quatro cantos do mundo.

Até que sua mãe adoeceu e não teve outra escolha em voltar àquele lugar, àquela rua. Entretanto adorou a ideia. Os nomes de todos não saíam da cabeça dele. Pelas redes sociais, viu a desgraça em que se transformaram, nunca mais seriam páreo a ele.

E 30 anos depois, ele estava de volta. Estacionou a Mercedes branca em frente à casa da mãe. Minutos depois bastaram para servir de curiosidade aos demais. Todos ainda moravam lá, uns tinham se casado e voltado, outros não casaram e por lá ficaram, fato que todos queriam vê-lo de perto, porque havia mais de 6 páginas no Google com o nome dele na pesquisa.

E com o mesmo pensamento tacanho de bairro suburbano, todos tocaram, numa espécie de homenagem. Quando viu aqueles seis ou sete barrigudos e pelancudas, sorriu um sorriso delicioso. Até esqueceu que a mãe adoecera, ela mesma, porque sonhou com aquilo a vida inteira: uma campainha ao filho.

Ele abriu a porta, e os olhos se iluminaram. Eles ficaram boquiabertos. E um deles, ingênua e instintivamente, soltou:

- Nem parece o esponjinha...

Mas se enganaram, e as risadas daquela noite voltaram e ele não conseguiu sair do lugar, parou no meio da garagem. Congelado.

Os anos de sucesso se foram, e aqueles asquerosos representavam todo ódio que ele tentou esconder por anos, mas que nunca saiu de si. Aliás, naquele momento, a única coisa que lhe escapou foi o mijo a escorrer-lhe pela perna.