quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O DIA EM QUE UMA CRIANÇA ENFRENTOU A GRAMÁTICA

Como professor, sempre encorajo as pessoas que têm filhos a falarem corretamente com elas. Crianças aprendem rápido e se evitam mais dúvidas em sala de aula, além de propagar a boa e clara comunicação.

No meu segundo casamento, tive três enteados. Além da criação, tinha em mão um desafio: fazê-los falar de modo correto. E constatei que decididamente, eles aprendiam de modo natural.

Era comum irmos a livrarias a sebos. Incentivava a leitura neles e os 3 adoravam isso. Numa dessas idas, um dos gêmeos, o João, escolheu CAÇADAS DE PEDRINHO, de Monteiro Lobato. Durante a volta, ele me pergunta:

- Pedrinho não é homem?

- Sim, por quê?

- Porque aqui está escrito A Pedro, deveria ser O Pedro, não é?

Naquela hora tive a certeza de que havia criado um monstro. Os irmãos, orgulhosos que só, diziam que ele seria professor, tal como eu. Que todos os amigos iriam ver um erro que nem o autor de Taubaté tinha visto, nem ele nem o revisor.

Chegando em casa, pedi para ver o trecho, e o moleque, de 7 anos, apenas 7 anos, já havia marcado com o indicador, e podia-se ler o seguinte: “Narizinho disse a Pedro (...)”. Um exemplo de regência que deveria ser explicado o quanto antes. Tentei a primeira.

- João, você não canta assim: “Parabéns PRA você”? – ele concordou – Pois bem, você também pode cantar assim: “Parabéns a você”, não pode?

- Sim.

- Então, concorda que posso falar assim: “Narizinho disse PARA Pedro”? – ele concordou já sem sorriso – Pois bem, então concorda que também se pode falar assim: “Narizinho disse A Pedro”?

Os irmãos saíram já conformados que ele não podia ter acertado, era apenas uma criança. Mas João veio ao mundo para ter razão:

- Mas Pedro não é homem?

Ele já tinha entendido, porém tinha que vencer. Tentei mais uma vez. Tentei mais outra vez. Tentei a quarta vez. Ele não cedia. Minha paciência de professor a quem quer aprender é infinita, entretanto a quem quer ter razão... E categoricamente, completei:

- João, preste atenção, DIZER é verbo transitivo indireto, portanto pede um OBJETO INDIRETO como complemento, ou seja, uma preposição tem de aparecer, e essa preposição é esse A aqui, ok???!!!

Tenho certeza de que hoje ele deve ter entendido que não se luta contra a gramática, aceitamo-la. E não me perguntem se foi essa a razão principal do fim do relacionamento.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

TUDO COMEÇA HOJE

A exatidão. Momento perfeito de um registro. O menino aparece, sorri para tudo, experimenta sabores, escolhe um descarta outros. Pelo caminho, existem fagulhas do que virá, e ele as vai tomando para si sem seleção alguma, voraz e deliberadamente, engole muitas e cospe outras.

Há alguns números em seus pés, por algum tempo ele os carrega, mas estes se vão sumindo das mãos, escapando-lhe como um bicho arisco, como algo nada compatível. Sobram-lhe somente as letras, que sobem em seu cangote e o agarram como um perfume.

Caminha só, porque só se caminha nessa vida. O trajeto é escuro, mas as luzes existem, mesmo que se possa andar por elas, curiosa e atrevidamente, prefere fugir pela sombra só para provar que é capaz de trazer luz a todos. Não conseguiu sempre, nem sempre deu certo.

Vira à esquerda, por indicação sensata e encontra música, sorri, e as letras abrem espaço a todas as notas, que sobem pelos seus ombros e se fixam como pele para uma vida inteira.

E é quando se depara com a primeira maçã. Ainda que tivesse ouvido falar dela, não soube precisar se realmente era genuína. Ele a toma para si e a carrega cuidadosamente, porém, ao mordê-la, percebe quão azeda e porosa é, o doce não era doce, o fel se faz presente. Ele a solta.

Seguiu só e sorriu ao reconhecer outra maçã. Sorte demais, pensou. Mas uma fruta muito diferente. Maior, mais suculenta e incrivelmente indigesta. Tentou largá-la pelo caminho, entretanto ela impregna em seu peito e, como uma sanguessuga, alimenta-se de energia.

E aqui se tem o caminho inverso, o menino servindo de prato principal à comida. Ele cai pela primeira vez. Joelhos ralados. Levanta-se firme e segue. A muito custo, consegue se livrar do fruto.

Está no escuro, mais sozinho ainda. Há luz em volta dele, mostrando o caminho. Ele para. Olha. Sorri e segue. Com mais cicatrizes, com mais força e pretensão demais pensar que haveria uma terceira maçã, e há.

Ele a olha, percebe que era diferente das demais. Ele a pega, ele a cheira, ele a prova e aprova. Não houve mágoa, não houve dor. Ele morde, mas a mordida se fecha. A maçã está intacta. Ele tenta mais uma vez, e a maçã se regenera. Pela primeira vez, não entende por que não consegue se fartar já que não houve mal-estar.

Então decide cortá-la ao meio. Põe metade num bolso e a outra ele devora. Passos mais à frente, ele retira uma maçã inteira do bolso. Só que desta vez, metade está enegrecida e a outra, vermelha. Ele parte e devora a rubra. Guarda a outra metade no bolso. Passos mais à frente, ele retira uma maçã inteira, e tem de descartá-la, porque parte da metade ruim está impregnando a boa.

E segue, dessa vez, faminto. Não há mais luz, não há mais caminho. Não há mais fruto.
Cansado, ele senta e dorme um sono profundo e perturbado. Pesadelos, angústias e dor. Dias depois, ele acorda. Olha em volta, e a luz ainda continua ausente, mas consegue divisar uma sombra, bem ao fundo. Sabe que tem de se levantar e seguir.

E assim o faz. Quanto mais anda, mais o vulto se avoluma, mais a forma se apresenta, mais o sentimento se engrandece. E o menino percebe mais cicatrizes.

Sabe que não é mais o mesmo, no entanto tem a certeza de que, se realmente a vida começa aos quarenta, existe uma nova chance de melhorar o seu passado.

Feliz aniversário para mim...

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

ME AND BOBBY MCGEE EM BIRIGUI

Se existem temperos nessa vida, eles sempre aparecem de surpresa, mesmo que todos saibamos que podem e vão dar as caras por aí, sempre serão bem-vindos.

caminhos nesta vida que encurtam sonhos ou materializam o impossível, e um deles, com certeza, é o rock’n’roll. A que conclusão se pode chegar ao se completar o pensamento com Birigui, no interior de São Paulo, e o início dos anos 70: o improvável.

O nefasto entrando em cena. 510 km da capital paulista, a cidade de menos de 60.000 habitantes nunca esperou a noite cair para dormir. Às sextas-feiras sempre havia quem pedisse uma dose extra.

Na única churrascaria do município, uma espécie de bar e o que se pudesse imaginar iluminado, já que apenas o azul dos tv’s iluminavam as ruas vazias, estava o rapaz, com seu cabelo que teimava em escapar das orelhas, um violão Giannini e as várias microfonias da noite.

O musicista, um rapaz de 16 anos, fã de Hendrix, nem cogitou em trazer álcool e fogo para incendiar o instrumento, seu ganha-pão, desde que o pai o abandonou na casa da tia surda. Vierdes, que além de nome de verbo, sabia fazer uma canja maravilhosa, até gostava do pouco que batia em seus ouvidos. Mas não conseguiria entender o que o rock’n’roll era para aquele menino.

Tinha uma bela voz, um talento nato, e enquanto as pessoas devorassem as especiarias e o som fosse tranquilo, o dono do Boi Valente o deixaria ficar duas noites por semana em troca dos 10% que os garçons tiravam por noite.

Virou o xodó do lugar. Bastasse emendar modas de viola, que a plateia voltaria. Noite quente, sexta de carnaval. Os blocos inexistiam, e as pessoas mais excitadas desfrutavam de um sorvete de uva na praça Doutor Gama. Talvez tenha sido o clima. Ou talvez tenha sido o acaso.

A verdade é que estavam mais atirados naquela noite, os aplausos marcaram mais forte uma do tremendão, talvez tenha sido aquela mulher sentada no fundo, fumando feito uma chaminé, com uma bata branca e uma bandana vermelha na cabeça, com 3 garrafas de cerveja e algumas caipirinhas na mesa.

Talvez tenha sido o sorriso que ela deu a ele ou o beijo que fez ponte pelas cabeças de todos e o atingiu em cheio. O fato é que ao término de mais uma música. Ele se ajeitou na cadeira, sol maior: "Busted flat in Baton Rouge, waitin' for a train, when I's feelin' near as faded as my jeans. – alguém o aplaudiu, pois era algo delicioso, novo, e as marcações apareceram antes da próxima frase.

 E antes que completasse o que iria cantar e antes de agradecer a ovação daquela noite. A mulher de aparência exótica e voz de bruxa ergueu-se e completou perfeitamente o que o menino queria dizer: "I pulled my harpoon, out of my dirty red bandana, I was playin' soft while Bobby sang blues…

Os olhos se voltaram arregalados, maravilhados por aquela voz. Sim, como os milagres que existem na vida, como os preconceituosos que a expulsaram do Copacabana Palace por nadar nua na piscina, Janes Joplin estava em Birigui naquela noite e se juntou às palmas e à marcação precisa do violão de aço do rapaz.
 
Era ela! Era ela! Ele soube no momento exato em que se apaixonou, no momento exato em que o beijo o ungiu por completo. E se o garoto tivesse um nome, seria Bobby McGee. Ela estava ao lado dele agora, e todos em pé, dançando um country delicioso, entregues ao que somente a boa música consegue fazer: sonhos existirem. 
 
Ah, os temperos da vida. O palco fora cercado, todos desejavam ser os dois, desejavam bebê-los, vestir-se deles. E nada mais poderia ser explicado ou sentido. Não se sabe o que aconteceu ao menino depois disso tudo.
 
Nem como provar que a mulher de exótica aparência, morta meses depois, bebeu daqueles copos em exposição. Muito menos se faltou picanha no rodízio. Entretanto era certo que o Serguei não desafinou naquela noite, justamente porque não esteve lá.        

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

MISERÁVEIS OS QUE NÃO VIREM

Minha intenção era a de diversão, mas para o bom-senso, quis o destino que DURO DE MATAR 5, em 4D, estivesse lotado e abocanhei OS MISERÁVEIS na sessão das 22h.

Quando soube que 4D é uma mescla de 3D com a interação de uma poltrona giratória, efeitos que passam pelas suas orelhas e águas esguichadas em seu rosto, decidi experimentar a sensação, que ficou postergada para um outro dia.

Confesso que ouvi críticas ruins a respeito do filme, um musical filmado deve ter o charme do teatro e a magia do cinema. E OS MISERÁVEIS começaram a ganhar meu sorriso na primeira cena, colossal. Look down, look down...

Escravos que puxavam um navio gigantesco, entoando uma melodia lamuriosa e sôfrega tornavam-se maiores que qualquer arquitetura já produzida. Escutar um Hugh Jackman sem as garras nem arranhando a canção empolgam a todo instante.

O honesto Russel Crowe, quase afinado, mas sincero como Javert conseguem prendê-lo durante as quase 3 horas de projeção.

Não bastam os figurinos serem estupendos, não basta a direção ser envolvente, não bastam as tomadas de câmeras empolgarem, a tudo isso se mescla o talento do musical e as letras, cujas rimas desenrolam mais do que esperanças, mostram que o alívio, ainda que tardio, é uma consequência.

Confesso que tive vontade de aplaudir em vários momentos, principalmente quando Anne Hathaway entoa I DREAMED A DREAM de modo tão dolorido, tão sentido, que a vontade de abraçá-la é quase que insuportável.

E por que não também não aplaudir Sacha Baron Cohen num Borat sem bigode e ainda assim talentoso.

Mas as crianças, dourados na aura, no talento e nos cabelos, adoçam um longa espetacular.

Há tempos um filme não me emocionava tanto, não sei se são os dias que tenho vivido ou as esperanças que tenho nutrido, escrevi uma vez e ratifico, miseráveis são que não virem o filme.

Esse texto foi escrito antes da premiação de hoje à noite, com certeza, você, que me lê, deve saber quantas estatuetas OS MISERÁVEIS levaram, porém é fato que foram menos do que mereciam.

Quanto ao 4D, por que não aparecer no filme do iluminado Tom Hooper? Levaria os cabelos de Fantine comigo, velaria o sono de Cosette e, claro, passearia feliz pelas ruas de Paris.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

"TUDO BEM, ARY?"

Saber lidar com a morte é um talento de poucos. Endossaria aqui com várias histórias mórbidas a respeito, reforçaria o clichê do “nunca estamos preparados”. Fato é que engrosso o time dos que odeiam velório, dos que não têm o que falar e dos que preferem apenas um abraço.

Minha primeira experiência com a morte foi em 1980, minha avó materna se foi e ouvi minha mãe chorar pela primeira vez. Talvez aquela cena del ela berrando ao telefone, dos vizinhos invadindo a casa, me foi tão traumática que todas as vezes que me deparo com isso são os berros da minha mãe ecoando em meus ouvidos.

Depois disso, vieram muitas mortes, muitos choros, alguns velórios, coisas que nos acostumamos a respirar e dores que aprendemos a entender.

Assim como com minha mãe, a primeira vez que vi meu pai chorar foi com a morte do meu avô. Devo confessar que se não fosse pelo episódio de 3 anos antes, saber que homem realmente chora é como descobrir que o super-herói também tem lá seus medos.

Foi um choro contido dele, mas ainda assim um choro.

E endossando meu pai, há 13 anos, ele foi diagnosticado com câncer. E, aos 27 anos, comecei a flertar com a ideia de sua morte. Flertar sim, porque o tumor era agressivo e me lembro que estava ao seu lado quando – num tom frio – ouvi o médico fizer que as sessões de químio deveriam começar o quanto antes.

Enquanto dirigia de volta pra casa, com meu pai mudo ao meu lado e minha mãe embalando o choro de 1980, consegui me conter, e, mesmo tentando, não consegui imaginá-lo num fim iminente.

Não quero marcar sua caminhada ao fim, porém quero mostrar todas as lições que acompanhei de perto. Na época, meus dois irmãos já estavam casados, morávamos eu, meu pai e minha mãe.

Num 12 de junho de 2000, nós três estávamos na primeira sessão do tratamento. Os possíveis enjoos, que não vieram, foram o indicador que meu pai poderia derrotar a doença.

Semanas mais tarde, durante o banho, olhei ao ralo do banheiro e vi chumaços de cabelos brancos, agachei-me e chorei em silêncio, enquanto meu pai entrava e dizia: “Filho, seu pai perderá os cabelos, mas não a fé, está tudo bem”.

E não perdeu, raspou todo o cabelo no dia seguinte, e, depois de todas sessões de químio, com sua boina, ela saía para trabalhar, sorrindo, sempre com aquele ar de “tudo bem”, mesmo estando tudo mal.

E assim ele seguiu por 6 anos, entre idas e vindas do tumor, nunca escutei uma reclamação de sua voz. Em dezembro de 2006, acometido por uma meningite, meu pai seguiu para a UTI e de lá nunca mais sairia. Foram 23 dias de esperança, 23 dias sem falar, mas seus olhos me diziam “tudo bem”.

No dia 5 de janeiro de 2007, ele viria a óbito. Lembro que meu chão se abriu. Lembro que tudo o que eles nos ensinou foi assimilado. Lembro que no velório, éramos eu, meus irmãos e minha mãe que consolávamos os amigos e parentes.

Lembro que naquele sábado cinza, enquanto seu caixão descia, uma única fresta de sol apareceu. E tenho certeza de que não foi coincidência, foi apenas a última lição que todos aprendiam com ele naquele instante, “de que tudo sempre fica bem”.

 

 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O CASAMENTO DO TIL COM A CEDILHA

Desde que o mundo é mundo, as coisas se unem. O que seria das árvores sem as folhas?
E do gramado sem a beleza das flores? Imaginaram a brisa de primavera não roçar nossa face numa tarde quente?

É o toque. E podemos dizer inúmeros deles, vejam bem: nossa língua num sorvete de creme... A ponta do nosso dedo no bolo de chocolate, e depois em nossa boca...

É o toque.

Mas longe disso tudo, no mundo das letras, o toque também existia. As letras viviam bem juntinhas para formar palavras. Cansaram de ficar lado a lado e resolveram dar as mãos. Feito crianças quando atravessam as ruas.
 
Assim, uma à outra, eram mais fortes e trabalhavam juntas para informar as pessoas, fazer outras chorarem e outras mais cair de tanto rir.

E numa dessas uniões, várias letras já mais separaram as mãos. É o caso do ch, que se conheceram na palavra charme e nunca mais se desgrudaram. Há também as almas gêmeas, o ss, que se conheceram no berçário, na palavra sossego, e até hoje vivem em perfeita harmonia.
 
Temos também os casais, lh, nh, rr e qu, que se apaixonaram em maravilha, carinho, sorriso e querida para nunca mais se desgrudar.

Há, porém, um casal que ainda não está unido, embora deseje muito isso. Fora na palavra fascinação que se conheceram e, desde então, cada vez que se encontram, cada qual passa a fixar o olhar um no outro, perdidamente apaixonados.

Foram o A e o C que perceberam o flerte e acompanham cada passa dos dois. A notícia foi se espalhando até que um dia todas as letras, casadas ou não, resolveram desmascará-los.

Num dos vários encontros de folga, no período que pessoa alguma estava lendo, as letras fizeram a pergunta crucial: “O que vocês estão pretendendo com este namoro?”.

Pego de surpresa, o casal resolveu abrir o jogo e não esconder o que já estava descoberto.

O alvoroço foi geral, afinal, como podiam traços tão distintos contrair matrimônio assim?
Ora, nem letras eram, e, só para começar, a Cedilha vivia grudada no C!

Um abuso aqueles dois! No entanto mal podiam reparar que o coração ficaria mais romântico com o casamento. E o que falar da emoção! E a música seria mais melodiosa, se a canção pudesse abençoar a união! E que dor não seria suportável com a nossa união em injeção!

E só haveria sim na negação!

Com a magia do amor no ar, as letras, casadas ou não, não poderiam deixar de se contagiar. Porém, eram realistas e, ainda que, agora, torcessem pelo casamento do par, não poderiam ser elas quem os uniria.

Sabiam que o amor dos dois era maior que o impossível, mas o toque dos dois talvez não. O que realmente importava era que não precisavam de pessoa alguma, pois, apesar de separados, quem garante que não estavam juntos?
 
Juntos nos momentos mais difíceis e nas horas mais maravilhosas. Não cabe a nós decidirmos pela felicidade dos dois.

Escritos juntos ou não, o que vale é a proximidade dos próprios sentimentos.

Por que iríamos nos preocupar com eles? Eles nem se importam com a nossa preocupação. A Cedilha e o Til unem-se cada vez que fechamos um livro ou um caderno. Não precisam de ninguém para juntá-los. Apenas um do outro.

Como posso garantir isso? Ora, só quem ama sabe dessas coisas.

 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O ALÍVIO

Poderia fazer um tratado sobre todos os sentimentos desse mundo, mas cairia num clichê pesado se abordasse o amor, o ódio, o ciúme, a saudade e afins.

Não. Hoje gostaria de falar de um sentimento pouco valorizado, efêmero, o alívio. O alívio é como a luz, a internet, o carro, só quando falta, você acaba valorizando.

Todos neste mundo têm alguma história que envolva o tão pouco citado sentimento. Costumo dizer que a paz é o alívio perpetuado e acho que um séquito acaba de se formar sobre meus passos.

O alívio é como aquele jato de água gelada numa tarde de verão, é o ar que aparece para o claustrofóbico e o exato momento em que a dor feche a porta.

O alívio é quando você tira aquele sapato novo, que você estreia na festa de casamento e, depois de dançar por horas, remove as meias e expande os dedos do pé.

O alívio é aquela ligação aos 44 do segundo tempo dizendo que está tudo bem, e o apito do juiz numa final de campeonato.

O alívio é o banho depois do exercício, é a endorfina dos sentimentos, é a cólica menstrual.

O alívio é apenas o vento a bater janelas ou os galhos nelas, é quando alguém desvia da gente numa rua deserta de madrugada, é o quinto dia útil.

O alívio é o estepe estar perfeito e ter por perto um limpo banheiro. É ter certeza de que era apenas uma salsinha na esfiha e que você consegue remover aquela mancha de tinta.

O alívio é uma nuvem a tampar o sol escaldante e por que não também uma escada rolante. É o elevador quebrar sem ter fechado a porta, é chegar em casa faminto e já ver a mesa posta.

O alívio é o seu cartão de crédito passar para aquilo que se sonhou comprar, é encontrar no vagão do metrô um lugar para sentar.

O alívio é a chuva que caiu um segundo antes de você se abrigar, é o torpedo que você conseguiu cancelar, é a criança que parou de chorar.

O alívio é a visita chata não te encontrar.

Não ter assunto e conseguir encaixar outro texto aqui, também é um exemplo de alívio, mas quero mesmo endossar Clarice Lispector: "Felicidade, meu bem, é alívio!".

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

ELISABETE E AS VÍRGULAS AMESTRADAS


Elisabete era um menina traquinas, amante de bichos e de letras, sempre soube como cuidar de cada 4 patas, mas tinha um terrível problema ao escrever, não sabia como colocar vírgulas.

Escrevia redações e mais redações e as notas só não eram melhores porque as vírgulas da professora apreciam em destaque. Cansou-se de não ter as próprias vírgulas, desejava noite e dia, dia e noite, uma solução.

Procurou o santo protetor da gramática, e nada. Rezou para todos os santos possíveis, nada. Quanto mais escrevia, mais frustrada ficava. Sabia que era impossível, porém uma caixinha de vírgulas amestradas seria perfeito para que deixasse suas linhas e histórias intocadas.

Numa manhã cinza, não esperou nada além das nuvens e das chuvas, entretanto escutou um burburinho que saía do baú de brinquedos. Quando abriu, quase berrou de susto e de alegria, as tão desejadas vírgulas amestradas, de todas as cores, estavam por lá.

Trancou a porta do quarto, pegou caneta e papel e fez um texto como faria normalmente. Decidiu não pontuar e a magia tomar conta. Depois, abriu o baú, pegou um punhado de vírgulas e as despejou sobre o papel. Inacreditavelmente, cada qual se posicionou no lugar certo, fato constatado no dia seguinte, quando a professora entregou o texto a Elisabete, elogiando seus acertos.

Fenomenal.

E assim acabaram os problemas da menina. Como cabelos e unhas, as vírgulas se reproduziam aos montes e de modo ilimitado. A menina as teria para sempre. Do ensino fundamental à graduação em Direito, elas a acompanharam de modo leal, cirúrgico.

Mas numa mesma manhã, elas se calaram. Elisabete as procurou e elas não mais estavam por lá. Revirou o guarda-roupas, papéis e tudo mais onde poderiam estar. Assim como a infância, soube que as vírgulas mágicas também passam e deixam o caminho, o livre-arbítrio aceso.

O mais interessante é que, a partir daquele momento, a formada, que se transformou em doutora, sempre pensa que sua pontuação fica manca nas petições e afins. Mas sabe ela que, muito tempo antes de perceber, as vírgulas mágicas não mais estavam lá.

Talvez nunca existiram. Sabem como é, leitura e estudo demais tendem a deixar certas sequelas...

 

 

 


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A DEUS...

Os anos que passaram juntos voaram como a vida que se escapa. Lá estava ele, sem a tão elétrica disposição ou sua pré-disposição em agradar. Foi uma sortuda por ter convivido com alguém iluminado, que sorria e dizia sim a tudo, quase que como uma reza, um mantra sistemático e prazeroso.

Mesmo tentando os piores momentos, ainda que nesse adeus, não consiga precisar um dia só que se arrependeu de cruzar seu caminho nem com as loucuras que fez. Cada dia algo novo. Mas se pudesse nomear suas atitudes, diria que o imprevisível sempre foi sua marca registrada. A monotonia em sua vida disse tchau quando ele entrou nela.

- Ainda respirando com dificuldades?

- Sim, doutora...

- Volto já com o medicamento.

- Linda essa médica, se você estivesse bem, repararia no perfume dela, seu safado, ficaria assanhado como sempre ficou com perfumes, principalmente os cítricos. Daí sairia por aí, faria amigos como sempre fez. Tem um bando deles rezando por você, meu lindo. – beijando sua cabeça e enxugando uma lágrima.

- Filha, quer que eu fique um pouco, você está exausta...

- Não, mãe, fique com as crianças, por favor...

- Elas querem você, estão chorando muito, talvez sua presença seja melhor...

- Mãe, quero ficar aqui, eles vão entender, console-os, saio assim que terminar... – beijou a moça e saiu.

- As crianças não vão aguentar, querido... – desabou em cima dele – Eu não vou aguentar...

- Senhora...

E a agulha entrou no soro, que levou o que tinha de levar até onde tinha de ser levado. A respiração parou, ela o abraçou com uma dor aguda, funda, foi amparada pela médica, que viu o que sempre via e ainda teve tempo de achar linda a coleira que saía por aquela porta, mas preferiu não perguntar onde a comprara, seria insensibilidade demais naquele momento.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

SILVIO SANTOS E A MUÇARELA

Prometi a mim mesmo que, meu blog se fixaria somente em histórias e outras ficções. Que não envolveria meu trabalho nas linhas que passariam pelos olhos dos leitores. Juro que me esforcei, mas às vezes, o amor pelo meu trabalho acaba falando mais alto.

Tenho dois projetos na internet a respeito, escrevo dicas de língua portuguesa no site Aspirante Profissional, e junto a Lucas amura, estamos no ar há quase dois meses com podcasts no Português com Humor.

Dois canais que me poderiam ser suficientes, mas não. Tenho ainda de falar a respeito. O brasileiro não valoriza a língua portuguesa e não é de hoje, é de sempre. Li várias crônica de Nelson Rodrigues, e o gênio abordou muitas vezes o assunto. Crônicas de 1960, 1970.

O que diria o notório cronista em tempos de internet, em tempos de abreviações e da rapidez na comunicação. Diria a vizinha gorda que o idioma é difícil e o que mais importa é a comunicação.

Não quero trazer aqui regras e acertos, quero apenas endossar que a leitura acaba sendo a muleta para que a língua pátria não sucumba à modernidade. Porque tudo tem uma evolução, as palavras e o modo de se comunicar também trazem esse progresso. Porém muito diferente de o errado acabar prevalecendo.

Óbvio que minhas pretensões chegam apenas àqueles que têm acesso à educação, à sala de aula. Utopia demais pedir que se dê palavras antes de comida. Mas meu sonho é que os de barriga cheia tenham a fome de saber, de ler, da importância do falar certo.

Português é lindo demais para morrer à míngua. Poesias são o resultado do talento de quem somente domina o idioma, assunto que nem sempre é bem aceito entre os daqui.

Exemplifico com duas histórias. Certa vez um aluno – quero pensar que de forma mais pura do que obtusa – perguntou-me onde o usaria o português, já que o inglês é a língua do universo.

Fui irônico em dizer que, no Brasil, eu nem poderia imaginar onde ele pudesse usar a língua portuguesa. Ele rebateu com um sorriso, dizendo: “Se você que é professor não sabe, eu saberia?”.

E a última. Num dia de aula sobre ortografia, disse que a grafia correta de muçarela era com cedilha. Metade da sala só faltou me condenar, dizendo que aquilo seria um absurdo. Na época, havia um programa na tão culta emissora de Sílvio Santos chamado “Você é mais esperto que um garoto da quinta série?”.

O programa era aos domingos. Numa segunda-feira, logo nos primeiros 5 minutos de aula, uma aluna pede a palavra entre os quase cem alunos e me elogia: “Professor, o senhor estava certo, assisti ao programa do Sílvio e ele disse que muçarela realmente é com cedilha”.

Aplausos.

E é assim, no Brasil, ensina não quem tem conhecimento, ensina quem tem poder. E sabe o que é pior, eu deveria ficar triste, mas fico feliz em saber que qualquer mídia possa ser útil e endossar o que professores dizem em sala de aula, ainda que alguns não sejam tão críveis assim... Como eu.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A LIGAÇÃO

Não pretendia sair de sua mesa o dia todo. Esperou que a ligação viesse o quanto antes. Tentava se concentrar no trabalho, mas a planilha parecia bailar em seus olhos como um barco à deriva.

Olhava o relógio, olhava o telefone. Avisou o colega ao lado veementemente que anotasse o recado as duas vezes que precisou deixar a sala. Ninguém ligou. 

Almoçou em sua mesa. Nada.

E então o telefone tocou, e o fornecedor percebeu e não pontuou o desinteresse e a indiferença dos prazos, não entendeu por que, mesmo que pontual, o elogio não foi ouvido.

14h.

Alguém perguntou algo, porém foi o colega quem respondeu. Tensão. Perdeu as contas das vezes que checou para ver se havia linha no telefone. Tudo perfeito.

O desconforto se espalhou pela sessão. Nem mesmo o chefe tentaria algo.
Mesmo assim ele tentou, um “tudo bem” tão sinistro que nem o café com a bolacha recheada que apareceu em sua frente sanara o drama.

15h.

Outro toque. Engano. Aquela angústia que queimava seu peito conseguia ganhar expressões bem convincentes em seu rosto. Em três anos de empresa, o comportamento calmo sumira naquele dia. E de tal forma que ninguém tentou desvendar.

16h.

O suor já começava a cortar frio o desfigurar do homem. Nem a véspera de feriado servia-lhe como consolo, tudo o que esperava era o toque certo do telefone. Mas nada.

17h.

A planilha continuava aberta no mesmo ponto da manhã. O tempo era seu principal companheiro. Apenas mais uma hora e ele teria de atender àquele chamado. Teria de acontecer. Iria tocar.

18h.

Seção vazia. Não respondeu a ninguém nem mesmo ao chefe. Começou a arrumar as coisas pausadamente, sem tirar os olhos do aparelho. Só restou sair e caminhar pela chuva, e os trovões jamais o deixariam escutar as 4 vezes que o telefone tocou.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

AS 1500 PALAVRAS DE BEATRIZ

Beatriz era prodígio. Havia ganhado todos os campeonatos de soletrar palavras, e só tinha 5 anos. Competia com crianças com o dobro de sua idade. Estava na final do estadual e, se ganhasse, disputaria a final nacional. Ela e o Antenor – isso lá é nome de criança – de 8 anos dividiam os holofotes daquela tarde.

O pai da menina era algo repugnante, tutor dela e professor, fora ele quem a educara sob critérios rígidos. Mas, educação nem sempre se liga a comportamento. E quando pediram ao menino para falar 5 palavras com o dígrafo dos dois “s” e escutou:

- Obsessão, concussão, remissão, ato de remeter, admissão e muçarela...

O pai não se conteve e convidou o asco de todos, dizendo:

- FORA!!! FORA!!! FORA!!! Errou, vovozinho, errou, muçarela é com cedilha! FORA!!!

Nem é preciso comentar o constrangimento que tomou conta do local. O garoto escondeu as mãos entre os olhos e as lentes. Os pais do menino subiram os degraus para jantar o nojento e foram contidos por muitos, que também amariam dilacerar o demônio.

Um tumulto generalizado. A pedidos de calma e de agarrões e empurras-empurras, quinze minutos se passaram até os ânimos esfriarem. E ninguém notara a menina abraçando o choroso Antenor, que odiava mais a situação que o próprio nome.

Clima mais ameno. E recomeçaram a disputa, após e com pesar concordarem que o menino havia cometido um engano, deixando com uma pontuação menor que o esperado. E Beatriz foi chamada em cena. Alguns ameaçaram vaiá-la, porém o bom senso aplaudiu o anjinho, que também se mostrava assustada.

- Beatriz, diga-nos 5 palavras que comecem com X.

Cruel, bem cruel. Se contarmos que a complexidade vale pontos, xícara, xale e afins não seriam de se impressionar. Mas xilografia, xá, xereta, xeque poderiam muito bem aparecer, porque ela sabia soletrar 1500 palavras.

O pai sorriu, ainda contido olhando para os demais. A menina pensou bem, olhou para o choroso Antenor, sorriu, chegou próximo do microfone e ensinou:

- Xalxixa, xapato, xargento, xaída e xuxu.

Ovação. Ela conseguia o ápice da conquista e conquistou todos naquela manhã. Na foto com Antenor, ela sorria justamente para onde o pai estava, se que é que ainda estava. E foi assim, mais uma lição foi dada: nunca se sabe até quando a turma da Xuxa continuará dando o seu alô.           

sábado, 16 de fevereiro de 2013

ADRIANO MERCURY

Existem dois tipos de astros, os que são astros e os que acham que são. Eu, claro, estou no degrau abaixo. Porém creio que os aspirantes a astros são os que mais se divertem. Talvez o pouco compromisso com o holofote deixe mais em evidência a ânsia de um dia ter pensado em subir no próximo degrau.

Ao longo desses meus quase 40 anos de estrada (risos), colecionei momentos magistrais, fui Freddie Mercury por várias noites, justamente por não ter a ousadia de escolher a mesma profissão que o líder do Queen.

Ouso muito agora, imagino Farrokh Bulsara tentando me imitar dando aula... Ok, fui exageradamente pretensioso. Fato é que nem eu nem ele poderíamos imitar nossas escolhas. Porém como ele é o ídolo, cabe a mim tentar imitá-lo.

Mas bem antes de cantar na Long Play Rock, aos 10 anos, fiz minha primeira apresentação no aniversário de um vizinho. Em 1983, o álbum CREATURES OF THE NIGHT, do Kiss, alçava voos gigantescos, tanto que os trouxeram para um show fantástico no Morumbi.

Naquela noite, fui Paul Stanley, e, com a minha guitarra de brinquedo, embalei a noite de tios, tias e amigos, fizemos uma dublagem perfeita e aqui eu sabia quais seriam meus sonhos.

Anos depois, após embalar as tardes de faxina que minha mãe fazia em casa, com músicas ao vivo, fazendo duo com a dona Ignes, tive a ideia fixa de cantar as músicas do Queen. Por que não? Mesmo tom, tentaria alcançar as notas que somente mister Mercury conseguia.

Foram horas de sofrimento, horas de apoio vocal, horas de chuveiro. E quando consegui a primeira, tentei a segunda, a terceira e tive minhas recompensas garantidas. Ok, ok, era minha mãe que elogiava, mas se o santo de casa fazia milagres, por que não, né?

Tarde quente de sábado, 1992, estava eu na sala, janela escancarada. Sol maior e embalei SOMEBODY TO LOVE. Fechei os olhos e, se George Michael conseguiu uma apresentação única no show do tributo ao vocalista , eu também poderia fazer esse tributo da zona leste de São Paulo.

Cantava para milhares de pessoas, eu, meu violão e um único canhão de luz. Dei minha alma e todos os tons que pude. Cantava como se fosse a última vez na vida, como se fosse a única voz do mundo.

Quando terminei, ouvi aplausos do lado de fora. Tive a certeza de que meus vizinhos foram lá para apoiar. Não. Eu tinha me enganado. Eram duas mulheres, que se disseram emocionadas e que foram atraídas pela emoção da minha interpretação.

Eu agradeci e soube que, por uma única tarde, aqui do Tatuapé, fui promovido a Freddie Mercury. E até hoje eu nunca consegui achar um vídeo que seja do líder do Queen dando uma aula de português...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

BABUÍNO DA VINCI

Era uma tribo de macacos, os simpáticos babuínos. Lindos, de narizes compridos e dentes afiados, uns tinham uns coloridos. Viviam numa ilha, de longe, apesar das diferenças, eram todos iguais. E por lá fixaram leis, comidas, hábitos e similares a qualquer país deste universo. E os babuínos, apesar de estranhos, tinham lá seu charme, diria Ray Charles, no fundo eram elegantes.

E como elegância puxa arte, e como arte era para quem sabe, e como lá, de longe, eram elegantes, de longe eram artistas. Adoravam arte. Arte contemporânea, antiga, barroca, escrita, melódica, pintada, coreografada. Arte escrita, cantada, encenada e demais adjetivos.

Como toda comunidade, havia um grupo de líderes, escolhidos a dedo. O dedo de um babuíno sabe muito. Escolhiam os mais fortes, que sobreviviam a competições esdrúxulas, que não cabe aqui, não é hora nem lugar.

Pois bem. O que importa é que havia o líder dos líderes, que por sinal, também tinham lá outros seguidores, que eram líderes de mais alguns outros líderes e que, por extrema sorte, ainda tinham lá seus seguidores, porque ninguém é de ferro.

Mas havia o líder de todos, o bauíno-mor. O pior de ser babuíno não é a aparência elegante, de longe, de longe, é o fato de não ser líder. Já não bastasse a realidade, nascer babuíno e seguidor é pior que o Brasil em agosto.

Mas, falou-se tanto em artes e onde elas estão? Pois é, estão chegando por aí, pois nenhuma vem de dentro, todos vêm de fora, e aqui são analisadas. Há que se ter cuidado com a navegação das obras, o joguete do mar e os ruídos podem complicar o estado delas. Vêm numa jangada só, carregada, cheia de informações, assuntos, cores e conceitos.

E parece-nos que a remessa de hoje está farta. Imediatamente, os seguidores tomam as obras e, por lá mesmo, abrem-nas e as dispõem sobre a areia mesmo, pecado mortal aquilo. Mas ordens dos líderes, que seguiam os líderes, que seguiam o líder das artes, que seguia, como todo mundo, o líder-mor, e que tinham juízo e obedeciam às ordens. Escolhiam as melhores, dentre todas maravilhosas. Palmas às escolhidas, escuro às renegadas.

Minutos depois, sete obras destacavam-se. Agora, o trabalho menor cabia ao líder das artes. Imponente, sabendo menos que todos os estúpidos do mundo, carrega a imponência no nariz sujo. Ele para, olha, olha e olha. Olha para os babuínos seguidores, que indicam duas em destaque.

Todos os seguidores aplaudem fervorosamente a primeira. Em seguida, o que já era comum, o líder da arte escolhe a segunda.

Assim, está eleita a obra mais bela da semana. Cabe ao babuíno-mor fazer a parte que lhe serve: como não cria e não sabe a ciência de arte alguma, resta-lhe o óbvio, senta o traseiro em cima do nome do autor da obra escolhida.

Assim, o líder das artes aplaude o feito, como se o líder dos lideres acabasse de criar algo, e exibe aos demais. Todos, sem exceção louvam a obra do babuíno, que se tornou autor sentando na obra alheia. Os babuínos não aceitam essa tese, muito menos eu.

Calemo-nos, então com a mediocridade do babuíno-mor e aplaudamos a sábia atitude dos seguidores. Um viva à sobrevivência. O nome do verdadeiro autor? Escondeu- se na marca imunda do macaco.

 

 

 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O MENDIGO E O PAVÃO

É fato que, em determinadas fases da vida, você tenha as suas preferências. Comidas, filmes, músicas e, por que não, roupas. Camisetas pretas, por exemplo, aos 12 anos, eu vesti a primeira, e nunca mais as larguei, tenho uma dezena delas na gaveta e as usarei para o resto da vida.

Mas em uma determinada época da minha vida, apaixonei-me por uma camisa horrível, presente da minha madrinha. Mangas e golas pretas e um pavão laranja lindo, mesclado em toda a sua dimensão, frente e costas.

Única.

Aquela camisa que vira ponto de referência em qualquer lugar. No começo dos anos 90, eu virei isso. Nas danceterias, nos bares, numa pizzaria, ninguém se perdia, eu nunca me perdia, porque ela estava lá acesa e presente.

Até teria como mostrar a você a indumentária, mas prefiro a sua imaginação à realidade. De 1992 a 1995, em festas, formaturas, natais, fins de ano, shows, lá estava eu com ela. Lembro que eu a usava no sábado e cercava minha mãe a semana inteira para que estivesse passada para a semana seguinte.

As piadas eram inevitáveis, mas eu não ligava, ficava feliz com ela, me sentia diferente – e era mesmo, dependendo de que lado você veja – eu me sentia com uma identidade, uma espécie de símbolo... Do ridículo.

Ignorava várias vezes minha mãe aconselhando a aposentá-la. O uniforme de eventos sociais já não mais incomodava só quem ao meu lado estava. Começara a ser um insulto ao convívio dos seres. Exagerados...

E aquele dia me veio como uma sofreguidão imensa, uma traição.

Estagiava durante o dia e cursava a faculdade à noite. Não. Eu nunca teria ido com a camisa ao trabalho ou às aulas. Na volta, pegava dois ônibus para chegar em casa.

Lembro que cheguei à praça Silvio Romero, no Tatuapé, com o saudoso elétrico. E me encaminhei ao ponto para a segunda condução.

Havia um mendigo famoso naquele tempo. Perambulava há anos pelo bairro. Até aqui tudo bem, mas naquela noite, não. Ele apareceu bem perto de mim e não pude crer que a minha camisa, a minha indumentária, minha extensão de pele estava com ele.

Não poderia me enganar por dois motivos: 1. Não há como não saber o que é seu; 2. Ninguém usaria aquela camisa, senão eu. Traído pela própria mãe. Bem que ela me avisara que daria um “jeito” nela e deu.

Nunca mais me esquecerei daquela noite. Nem do sorriso sarcástico da dona Ignes. Nem da minha camisa na pele de outro nem da recusa do mendigo em me devolvê-la em troca de um jantar.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

REFLORESCER

E ao virar a esquina, viu-se apaixonado. Não precisava saber se ela era linda, porque linda seria com qualquer parte que enxergasse. Mas era linda. Sabia que era paixão porque essas coisas não se explicam.

Tal qual os dedos estão para as mãos, todos os sentimentos pertencem ao ser humano. E aqui não precisou menos que dois olhares. O calor lhe subiu do estômago e parou no peito. Como uma angústia doce a palpitar sonhos.

E quando o coração grita, a coragem responde. Tomou-se dos dois e seguiu em frente. Nem percebera que o sorriso era fácil, encantou-se pelo olhar e decidiu dar-lhe uma flor, aceita de modo tímido.

No dia seguinte, viu que a flor ainda estava com ela, não titubeou e deu-lhe mais uma, outro olhar encantador e um beijo pelo ar.

E foi assim que a alimentou, todos os dias, todas as flores possíveis, de todas as cores, todos os aromas e todas as formas.

Semanas depois, ela estava cercada. Uma floreira de matizes rodeava-a por todos os lados. Todos os caminhos cobriam-lhe de pétalas e adornos. E por lá ficou.

Passou a regar todas elas, todos os dias, a cada momento, por meses. Incríveis dias aqueles, incríveis flores aquelas, nenhuma morrera, cada vez mais abertas, cada vez mais vivas.

No entanto de tantas flores em sua volta, ela não se mexia. Tomou-se das cores e dos aromas e por lá ficou. As idas e vindas diariamente  dele começaram a lhe cansar os braços, as pernas e a ocupar um tempo que o deixava escondido a qualquer outra ação.

Não sabia se as regava por paixão ou por hábito. Dores e mais dores. Levava água, e não encontrava de novo onde a buscar. Não conseguia ajuda daquele olhar, ela estava cercada de muitas flores e preferiu lá se acomodar.

A água no fim, e o cansaço rasgava-lhe o peito. Ele pediu, mas ela não saiu. E numa manhã, parou em frente e precisava de água, ela não tinha. Sentou-se na metade do caminho, sob olhares indecisos. Agachou-se e por lá morreria de sede.

Sentiu um toque em sua nuca, outro em seus lábios. Sentiu a água a lhe correr pela boca e depois de alguns goles, abriu os olhos. E antes que pudesse ver o que viu, desejou ver o caminho de flores aberto a passos, mas não.

Ela continuava parada olhando-o indecisa, cercada de flores. Não pôde entender, porém não era mais paixão a trazer-lhe a vida, era amor. Então levantou-se e seguiu.

Não olhou para trás, deixou a paixão ali mesmo, estática, a ver as primeiras pétalas secarem...