terça-feira, 30 de junho de 2015

AME QUEM TE AME

Dizem que as brigas temperam o relacionamento. Mas qual tempero? Ainda que o cara tenha chegado tarde e com todos os clichês contra, o tempero deveria ser dado naquele jantar, numa tentativa de reverter os sabores. Ele combinou o local chique. 

Reservou mesa. Separou uma data especial, porque segundas à noite não costumam servir de pano para romantismo algum. Foi original. Mandou flores. Tudo bem que as rosas colombianas eram tão vermelhas quanto as marcas do pescoço dele, mesmo assim, uma retaliação ao horror.

O presente chegou no trabalho para se fazer inveja a todas. Tudo bem que a selfie dele no shopping falando disso tenha sido postada antes de o entregador aparecer. Ainda assim era uma retaliação ao horror.

Poderia ser uma premonição à felicidade ou apenas o acaso, mas a música que ela escutou assim que entrou no carro de volta pra casa apareceu por ali, embora tenha sido apenas os acordes finais. Sim. Ele estava disposto a tudo.

Quando passou pela portaria do prédio, o sr. Aníbal a chamou e lhe estendeu uma caixinha: brincos de ouro. Alguém escutou violinos? Sim. Talvez Strauss estivesse por ali, valsando com ela até o décimo primeiro andar. Pode ter sorrido o primeiro sorriso sincero e despretensioso. 

Entrou. Tomou banho ao som de Air Suplly, no volume máximo. Coube no vestido como deveria ser. Não se maquiou tanto, porém destacou os olhos e os lábios. Vestiu-se dos brincos e seguiu para o local. Deu quatro voltas no quarteirão para chegar 10 minutos depois. Foi até a hostess e disse que o namorado a esperava numa mesa.

Acertou, porém ele ainda não estava lá. Raridade aquilo. Pediu um drink e mandou um "Já peço o mesmo de sempre a você?". Em 5 minutos, houve nada. Mandou um "Chegando?" e nada. 20 minutos depois, o "Cadê você?" já trazia uma certa dose de fel. Quase 40 minutos de atraso, e um "Amor, a reunião vai longe, desculpe...".

Pensou em tudo aquilo. Nos brincos, no jantar, nos presentes, na música e tentou entender o que havia de errado. Pagou o drink envergonhada, porque teve a certeza de que a hostess tinha pena dela. Saiu pra casa com ódio e pena de si mesma. 

Parou numa esquina e viu que um mendigo servia uma salsicha suja ao leal vira-lata, que retribuía a ele entre mordidas e lambidas. E viu que tinha de fazer. Ficou claro. Se quisesse algo de verdade, teria de reverter o jogo. Traria para si a própria felicidade.

Chegou em casa, abriu a dispensa e a geladeira e resolveu fazer um jantar. Colocaria todo talento na cozinha. Pegaria a situação pelo estômago, porque a mãe dizia que um tempero bom segura até estação. E sabia que aquela torta de queijo canastra e alho-poró confundiria até os deuses.

Ela mandaria o aviso, mas decidiu chegar de surpresa, porque surpresas sempre temperam o sonso e o inodoro. Estava impecável e, duas horas depois, saía linda, decidida e com a certeza de conquista. E foi o que aconteceu. O sorriso foi acolhedor. Chorou de alegria por ter se amado e por dar amor. O olhar que recebeu dele foi o mais lindo de sua vida. 

A surpresa e o presente também. Não se falaram, ele apenas deu um "obrigado", mas um "obrigado" tão sincero, tão feliz, que até o cachorro, se soubesse falar, falaria. Deu uma lambida na mão dela e se deliciou com a torta, comeu mais que o dono.

Na volta, ela ligou o rádio, radiante, e, se mais cedo a música de ambos tocara, mesmo que os acordes finais, desta vez nem isso aconteceu...

terça-feira, 23 de junho de 2015

A PROCISSÃO DO INFERNO

Péssimo começar usar o clichê para algo, mas inevitável aqui e mais elucidativo: ninguém consegue agradar a todos, nem Cristo conseguiu. E falando Nele, todos temos uma via crucis e uma cruz a carregar. O pior é quando nos dispomos a carregar a cruz alheia e percebemos que interromper a dor dos terceiros é triplicar a própria.

Querer ser o bom- rapaz, o anjinho a todos, é não ter o bom-senso de saber que ninguém salva o super-herói, nem Cristo se salvou, talvez essa seja uma das inúmeras lições que nem todos entenderam na passagem do Nazareno entre nós. Tudo o que é novo representa uma possibilidade.

Diria minha avó que as meninas de ouro estão na igreja, nas missas. Semana Santa em Ouro Preto. Sabe-se lá o que um cara nada devoto vai fazer num feriado santo em uma cidade cujas características pedem qualquer celebração mais efusiva. Aliás, Ouro Preto é uma das cidades mais bipolares do Brasil. Se pegarmos o carnaval e a Semana Santa, não podemos dizer que são a mesma cidade. Uma espécie de pecado e arrependimento.

Enfim, ele foi com um amigo, cuja família de ascendência portuguesa mantinha uma casa na região. Talvez a conveniência do barato o levasse até lá. Chegaram na quinta, e foram à missa do Lava-pés. E debruçados estavam no jogral católico, quando ele percebeu um perfume de rosas. Estava ao lado da avó, mas quem pensaria que sempre numa flor existem espinhos. Troca de olhares, e depois da missa, a aproximação.

Santa semana e santo convite. Bem que queriam, mas a carne proibida. Valeria a pena esperar até domingo. Procissão na sexta, outra missa no sábado e antes do almoço de páscoa, a carne estaria consumida. E lá estavam na ladeira. A bigoduda sorrindo, o andor na frente, a neta com um véu no rosto e ele com o terço nas mãos, pedindo para sábado chegar.

Caminhada longa, começariam na rua Dos Inconfidentes e iriam até a capela De São Sebastião, uma longa e doce jornada, tudo por uma carne desejada. Cânticos, tapetes com serragens, torça de olhares, línguas obscenas a procura da outra e uma torção.Sim, a portuguesa torceu o pé numa das pedras mal-formadas das ruas centenárias da cidade. E cabe a pergunta: quantas torções acontecem no carnaval? Nenhuma. E quem torce o pé numa procissão? E quem pediria para carregar a velha? Sim, a neta, desejosa do prazer, e ele, inebriado pela dor da senhora, se predispôs ao ato.

Magrinha, mas não há 50 quilos que não pesem durante a subida. Dizem que a cruz de Cristo pesava mais de 70, entretanto com certeza, ela não reclamava do calor, não fedia a naftalina, não pedia água. Poxa, nem Cristo pediu água, porque ela, que estava sendo carregada pedia? O rapaz, num calor dos infernos em pleno abril, não blasfemou, mas amava a cada estação em que Cristo caía, porque a procissão parava e ele despejava a senhora no chão. Sabe-se lá quais forças tiravam o Nazareno do chão, mas as forças que faziam o rapaz levantar aquele saco de buço ficava a metros de lá.

E os cânticos, como lamúrios sôfregos, num tom que nem os cães suportariam, ali, no ouvido dele, sem falar nos perdigotos diretos ao ouvido do rapaz. Quantas estações mais? Todos conhecem o efeito da cerveja num homem, aqui ocorria o oposto, a cada parada e todos os impropérios e escárnios a que estava exposto, a língua da menina foi se putrefazendo, os olhos não eram mais os mesmos e a carne já parecia como a de um leproso. Mais uma e outra agora.

A visão turva, o cheiro inebriante, o anjo virando o capeta, e capeta virou quando entre uma entoação e outra a velha arrotou aquele bafo de feijão no pescoço do rapaz. E antes que chegasse a próxima estação, ele a largou ali mesmo. Sob os olhares incrédulos de todos, assim como os da neta. Ele se colocou à vontade de Jesus, largou sua cruz pelo caminho e deixou sua sina para trás, à própria sorte, soltando mais do que imprecações, soltou aquela bigoduda nas pedras.

E se haviam de crucificar Cristo naquele dia, que colocassem mais uma cruz e que não houvesse ressurreição à velha no terceiro dia. A carne no domingo? Naquela sexta mesmo virou um belo sanduíche de calabresa.

terça-feira, 16 de junho de 2015

ESCOTOMA

Infância complicada a daquele rapaz. Tímido, sem graça, sonso, de cabelo estilo Beatles anos 60. Brincava com as outras crianças porque a mãe convidava e oferecia biscoitos, uma espécie de suborno. Era o único na rua que tinha tele-jogo. Acabava assistindo aos demais brincando e subia para o quarto. Até tentou ser diferente, mas a natureza não o deixava.

Certa vez fora convidado, claro, por educação, a um bailinho da vizinha. Bee Gees, uma Caracu escondida. Meninos num canto, meninas em outro. O primeiro par se fez, o segundo e os demais. Apenas dois ficaram lá. Ele e mais outro. Para não ficar chato, uma das meninas decidiu largar um deles e foi até o rapaz, que, pasmo, não conseguia sair do lugar.

A muito custo chegaram ao centro. O menino ficou tão tenso, aterrorizado que urinou nas calças e ninguém perceberia, porém quando saiu correndo, tropeçou no próprio mijo. E sempre existe uma gargalhada, que puxou outras. Conseguiu se levantar e correr, mas só depois de ouvir “esponjinha”. A vizinhança toda estava lá.

Daquele dia em diante, ninguém o via quase. Mudou o turno do colégio. Depois foi para um interno, só voltava nos fins de semana e, por fim, mudou-se para o interior, foi para casa de uma tia e de lá nunca mais voltou.

Anos se passaram. Ele se formou em Engenharia. Mudou, saiu do casulo, tornou-se o oposto. Contava quantas meninas passaram pela suas mãos. Era referência para tudo. Foi ao Rock in Rio de 1985, esteve em Berlim, na queda do muro, em Londres, no tributo a Freddie Mercury. Namorou francesas, fez amigos nos quatro cantos do mundo.

Até que sua mãe adoeceu e não teve outra escolha em voltar àquele lugar, àquela rua. Entretanto adorou a ideia. Os nomes de todos não saíam da cabeça dele. Pelas redes sociais, viu a desgraça em que se transformaram, nunca mais seriam páreo a ele.

E 30 anos depois, ele estava de volta. Estacionou a Mercedes branca em frente à casa da mãe. Minutos depois bastaram para servir de curiosidade aos demais. Todos ainda moravam lá, uns tinham se casado e voltado, outros não casaram e por lá ficaram, fato que todos queriam vê-lo de perto, porque havia mais de 6 páginas no Google com o nome dele na pesquisa.

E com o mesmo pensamento tacanho de bairro suburbano, todos tocaram, numa espécie de homenagem. Quando viu aqueles seis ou sete barrigudos e pelancudas, sorriu um sorriso delicioso. Até esqueceu que a mãe adoecera, ela mesma, porque sonhou com aquilo a vida inteira: uma campainha ao filho.

Ele abriu a porta, e os olhos se iluminaram. Eles ficaram boquiabertos. E um deles, ingênua e instintivamente, soltou:

- Nem parece o esponjinha...

Mas se enganaram, e as risadas daquela noite voltaram e ele não conseguiu sair do lugar, parou no meio da garagem. Congelado.

Os anos de sucesso se foram, e aqueles asquerosos representavam todo ódio que ele tentou esconder por anos, mas que nunca saiu de si. Aliás, naquele momento, a única coisa que lhe escapou foi o mijo a escorrer-lhe pela perna.  

quinta-feira, 11 de junho de 2015

QUEM VOCÊ SATISFAZ?

Talvez nunca se saiba qual o exato momento que passamos a nos satisfazer e deixamos de satisfazer o outro. Encontrar a medida exata entre a cobrança salutar e a autopunição nem sempre traz o X marcando o local. Fato é que desde sempre, nossas satisfações esbarram em nossos pais e mães. Tirar um sorriso deles, daqueles que nos enchem um dia todo, uma vida, é algo muitas vezes inatingível.

E o menino estava no quintal, aos 6 anos, treinando chutes enquanto o pai defendia. "Mais forte! Com efeito! Menos força! Esta mal! Concentração! Concentração". E foram horas e tardes não conseguindo um sim ideal.

De tanto não ouvir o que queria, decidiu pendurar as chuteiras e partiu para a música. Quando escutou Beatles pela primeira vez, viu-se em Paul, George, Ringo e John. Quis aprender a trocar notas e trazer a música para mais perto dele e da família. O pai amava os 4, uma fácil ponte para aquele sim ideal.

Aos 9, quando conseguiu mudar de um ré para um sol sem arranhar a marcha, viu-se pronto. Ensaiou por dias I WANNA HOLD YOUR HAND. Fez dos ouvidos dos irmãos e da mãe uma porta à maldição, à repetição exaustiva, porém sabia que teria aplausos.

Naquele sábado à tarde, a família se reuniu. A mãe preparou a sala, pôs o banquinho e o violão, anunciou o pop star sob aplausos. O menino agradeceu e, pela enésima vez naquele mês, embalou uma melodia redonda, bruta, mas redonda. Ao término, suando, com a letra decorada e agudos ousados, o acorde final foi embalado pelas palmas. Foi a melhor apresentação entre todas as mil. 

Seus olhos buscaram os do pai, que não expressava o mesmo entusiasmo. Suspirou e soltou um "Quando você quiser se arriscar nos agudos, precisa respirar melhor". O garoto mal olhou para os demais. Mesmo odiando escutar a melodia, todos prefeririam escutá-la mais uma vez a terem de presenciar aquilo.

Não precisamos adivinhar que o menino largou a música e partiu para uma promissora carreira na mecatrônica. Aos 15 anos, numa feira de ciências, levou seu robô para final. Os olhares aguçados já consagravam, porém a bateria da invenção acabou bem na apresentação final e todos acompanharam o foguete da menina subir alto.

O pai não teve dúvidas: "Quando eu disse para você sempre ter uma bateria extra, deveria ter me dado mais crédito". O futuro gênio preferiu largar seu robô no fundo da baú. 

Talvez tenha sido no primeiro ano de Direito, quando se deparou com a pintura, e decidiu registrar o sonho do pai, a Monalisa. Cresceu ouvindo que ele os levaria ao Louvre e todos veriam que a moça os acompanharia com os olhos onde quer que eles estivessem. O filho a tinha na mente e fez um trabalho espetacular.

Nos 60 anos do pai, ante todos, apareceu com aquele quadro para ilustrar o escritório. Quando o pacote foi aberto, um sonoro e uníssono "ó" ecoou pelos 50 metros da cozinha. "Você não percebeu que o polegar direito aparece sutilmente no original, né? Aqui você amputou o dedo dela".

Talvez tenha sido a gota final num copo cheio de amargura e cansado. Mas para algo a pintura serviu, o rapaz largou as leis e assumiu de vez os desenhos e as agulhas e começou a fazer fama tatuando realismos e perfeições nos corpos de todo o país. Sua reputação impecável ganhou nome e foi convidado a seguir para NY, onde, depois de 3 anos, abriu o próprio estúdio.

E foi durante uma entrevista à CNN que a irmã aparecia em seu celular. Ele teve de interromper e ouvir que o pai sofrera um infarto e seu quadro era muito ruim. Ela estava ao lado do velho, que pediu, implorou pra falar com o caçula. Burlaram os médicos e conseguiram a ligação internacional.

Teve a certeza de que a voz embargaria logo após desligar e não soube se conseguiria se recompor para a entrevista. Quieto, esperou e ouviu de uma voz cansada: "Você sempre foi bom em tudo. Tenho orgulho de você, meu filho". Talvez o médico tenha chegado após isso, talvez a ligação tenha realmente caído. O silêncio se fez.

O artista voltou para a entrevista. A repórter retomou assim que ele deu o aval e, depois de uma breve teoria, endossando o êxito do brasileiro, ela emendou um clichê perguntando sobre qual era o seu segredo de sucesso. Ele sorriu, dizendo: "Meus próprios sins". Não, ele não chorou nem voltou ao Brasil para o enterro do pai, estava devorando um juicy lucy em East Village naquela noite de verão.

terça-feira, 9 de junho de 2015

O CORPO CONSAGRADO

Samara tem apenas 10 anos e está na casa de uma amiguinha da vizinhança. Parece que a mãe da menina trabalha às tardes, tal qual à da vizinha. Estão sozinhas. Um CD de algum MC aparece por ali. A batida começa e as garotas começam a dançar, mexendo de um lado a outro, indo até o chão. E dançavam despretensiosamente, como despretensioso é pular amarelinha e dar uma sopa imaginária à boneca.

Quitéria é dedicada às causas paroquiais. Diziam que vivia pra Igreja, porque o marido vivia pra bocha. Aposentado por invalidez, casou-se com o descompromisso e às vezes se lembrava da esposa, que pregava sempre a moral e os bons costumes. Estava vindo da paróquia, quando passou em frente da casa e viu as meninas dançando. Ficou chocada, escandalizada. Deveria ter dado uma bronca naquelas devassas, mas preferiu o silêncio.

Maria, a mãe da pecadora, limpava a casa de uma conhecida do bairro, a 4 quarteirões dali. Quitéria não titubeou. Foi tocar lá e levar o sermão pronto à mulher, que mal pôde entender toda a verborragia e fúria da carola. A patroa já olhava feio pelos berros e pela interrupção, quando Maria teve de sair e deixar a lamuriosa ainda mais espumada.

Quitéria saiu de lá enfurecida e chamou a atenção de duas vizinhas que cruzaram com ela pelo caminho. Questionada, ela não titubeou, desandou a gesticular e acusar as meninas. Concluiu que a influência da mãe, que casara de novo e que batera o portão na cara dela, era o motivo de tamanha ação lasciva e suja.

As vizinhas se enraivaram e engrossaram o coro. Seguiram Quitéria pelas ruas do bairro pisando firme. Ao chegarem na rua, ainda escutavam o batidão vindo do número 443. Bem que poderiam chegar até as duas e darem uma lição de purificação. Tudo pela moral e pelos bons costumes. Não. A líder encontrou um grupo de senhoras falando qualquer coisa sem importância, em vista do que acontecia a menos de 50 metros dali. Os olhares se arregalaram quando souberam o que as devassas faziam. 

Uma mãe ausente diz "presente" à perdição. Decepcionante. Uma limpeza deveria ser feita. Não precisava de ajuda, Quitéria seguiu até a igreja e chamou o próprio padre, para salvar as duas e ter um pouco de paz. Relatou a ele quão perdidas e sujas estavam as almas das crianças. Exigiu uma reação imediata, tudo pela moral e pelos bons costumes.

Padre Nogueira saiu de lá e foi até a casa da menina, flagrou-as gingando de um lado a outro, sem ritmo algum.  Ele ficou parado, observando o balançar das duas. Nada disse. Parecia muito mais apreciar do que repudiar a dança descompassada, como é descompassado o exato limite entre a infância e a adolescência.

Fato é que, ao vê-lo, o som se calou, elas pararam. Ele estendeu a mão a elas, ofereceu uma palavra e foi o que tiveram naquela tarde. 

Maria voltou com a cabeça cheia, ainda com a zarzuela da vizinha. Chegou em casa e encontrou a filha no canto, quieta. Soluçava baixinho entrecortando um suspiro e outro. E percebeu que estava em pé, no canto. Perguntou, insistiu, mas não teve resposta.

Provavelmente, o espírito santo tocou as duas e a hóstia que Quitéria tomaria no domingo sairia das mãos de um pedófilo. Que importa. Isso daria paz a ela. Quitéria dormiria feliz naquela noite, sozinha e com a sensação de dever cumprido, claro, tudo em nome da moral e dos bons costumes.

terça-feira, 2 de junho de 2015

DE VOLTA A AVALON


Valentina não tem hábitos a não ser o de devorar livros.

Sim, rasgar as páginas, lamber as letras, saborear histórias. Diriam cientistas que é impossível, confirmariam os cristãos mais um milagre.

E devora laudas quase como uma alcachofra literária, temperada com as melhores especiarias, desgalha do tombo e as toma para si.

Escondida, reclusa, incompreendida e muitas vezes interditada, não tem amigos, não precisa deles, faz dos livros sua sombra, sua cama, sua horas.

Devora pensadores, saboreia poetas, mastiga revolucionários, beija romancistas.

Um dia, sai do seu mundo e percebe que todo alimento ganha vida, cada palavra tem forma, cheiro, sentimento e sabor.

Vê que nas esquinas também há versos, que as linhas também têm curvas e que os parágrafos também respiram.

Experimenta tudo e prefere voltar, porque Valentina soube que à luz sempre se perde algo, e com os livros sempre se ganha outro.