terça-feira, 20 de maio de 2014

TROCANDO A PILHA

Deveria ter levantado e rezado naquele dia, mas algo disse que não era um bom dia para isso, preferiu o silêncio, preferiu pensar em nada enquanto olhava pela janela a manhã agitada. Viu um carro parar, outro sair, pessoas que iam e vinham e apenas o cheiro do café do vizinho.

Não colocou a comida para o gato, porque não tinha um, não desligou o TV porque não estava ligado, não fechou a cortina porque não estava aberta. Apenas andou pelo apartamento. Pegou o telefone, ligou para o diretor, que não estava e falou com a secretária. Não explicou por que não iria naquele dia, apenas não iria.

Entrou no chuveiro e deixou que a ducha fria acordasse mais do que as ideias, tentou esfriar a vontade que o puxava naquele instante. Essas ideias loucas que nos ocorrem vez ou outra, essa vontade absurda de, em plena terça-feira de manhã, colocar a roupa mais confortável e sentir-se vivo.

E foi o que fez. Apareceu na padaria como quem aparece num parque. Pediu um cheeseburguer com cerveja às 9h, na verdade foram dois. Colocou os fones nos ouvidos e seguiu o caminho contrário das pessoas. Sim. Viu-se nelas, em cada uma delas, cada qual em seu smartphone, redes sociais e pensamentos.

Quando aquela música começou, imaginou-se num próprio vídeo-clipe, teve vontade de correr. Sempre se imaginou correndo com aquela música, desde a volta do colégio, quando tirava uma boa nota e queria dar a boa-nova à mãe. Hoje tinha mais uma oportunidade, mesmo que não houvesse prova, mesmo que não houvesse mãe. Ele quis correr, arriscou até a esquina e cansou.

A música acabou bem depois do seu fôlego. Enquanto recuperava o ar, percebeu que a loja de brinquedos estava abrindo, sempre quis um autorama, mas o pai nunca deu, porque nunca deu. Talvez o não sempre fosse o terceiro elemento, andasse entre os adultos mais vezes que os sins.

E, se naquele dia poderia haver um sim, ele estaria lá. Entrou decidido a fazer uma criança feliz, comprou e mandou embrulhar para presente. Entrou no correio e despachou-o lá mesmo, via sedex. Dia quente pede um sorvete. Sempre quis um sorvete antes do almoço, mas a mãe nunca deixou, porque nunca deixou. Fartou-se de um de duas bolas às 12h.

Alugou uma bicicleta e conseguiu espantar um bando de pombos que comiam na praça, sempre quis ver a revoada de perto. Devolveu a bicicleta antes de 1h de uso. Sentou debaixo de uma árvore por 10 minutos. Entrou na livraria e leu 5 livros infantis sem comprá-los. Achou o máximo da contravenção. Tomou um café com bolo de fubá às 15h depois de ter, enquanto chovia, pisado em cada poça de água, sem medo de pegar uma doença.

Tentou assistir a um filme da sala de projeção, mas foi embora sem sucesso, roubou algumas moedas da igreja e deu a um mendigo, bem como os dois sanduíches, o outro era para o cachorro. Cansou-se, mas sorriu. Poderia ter feito muitas outras coisas, preferiu ir pra casa.

Chegou, ouviu todos os recados, respondeu a todos os emails, curtiu mais coisas nas redes sociais do que o normal, porque teve um dia diferente. Comeu, viu o programa preferido e dormiu. No dia seguinte, levantou, rezou, porque aquele dia seria um bom dia para isso. Foi para o trabalho, porque, se o sedex seguisse sua rotina, na volta teria um autorama para se divertir.    

quarta-feira, 14 de maio de 2014

SEMPRE HÁ UMA SAÍDA

Durante o banho, ele sorriu, sorriu porque se lembrou que podia tudo, que poderia se regenerar de qualquer situação. Talvez tenha sido enquanto massageava os cabelos com o xampu importado, e sua mente voou para quando tinha 5 anos, época em que conseguiu convencer 5 garotos com quase o dobro da idade dele a não atacarem ovos em seu aniversário. A gripe e a clara do ovo poderiam ser uma combinação química terrível, além da alergia que matara a avó.

Talvez tenha sido aqui que percebeu o poder da regeneração ou de evitar o pior. Chegou aos 10, quando não havia estudado para a prova de Matemática e, numa ousada operação, conseguiu trocar a prova com a Fernandinha, que caiu de amores pela coragem do menino, dando 10 a ela também. Foi o primeiro beijo dele.

Enquanto tirava a espuma dos cabelos, chegou na adolescência, quando conseguiu escapar do pai da moça, que havia voltado de surpresa de viagem, ficar dependurado na sacada dela, num frio absurdo, sair ileso e ainda passar a noite com a moça, que berrava alto enquanto os pais roncavam no quarto ao lado era digno de aplausos, o café na cama com ele, trazido pela própria mãe merecia uma placa a si.

Passou pelo primeiro estágio, quando percebeu que entregaria um relatório desastroso ao chefe e subornou o porteiro da noite e passou a madrugada toda corrigindo os dados de modo correto. As olheiras não foram nada perto do sufoco que seria perder a renda que pagava sua faculdade.

Estava se enxugando, quando se lembrou que certa vez se envolvera com a esposa de um comandante da Polícia Militar, que invadiu, quando suspeitou, naquela tarde,  cada quarto do motel, com uma arma, foram mil reais ao casal da faxina para tirarem a roupa, colocar a mulher no porta-malas e ele se fingir de eletricista. Aqui valeram dois sorrisos.

Ou o último, quando se livrou do sequestro-relâmpago, conseguindo abrir a porta de trás em frente a um posto policial, avisar os guardas dali e testemunhar a morte dos dois. Os arranhões com a queda ainda estavam lá, como todas as demais lembranças desde há muito.

Sentiu-se um deus, invencível, bento pela vitória, ungido do impossível. Soube que podia tudo. E sabia que toda a aplicação que perdera - naquele investimento certo e impossível de naufragar - de uma forma ou outra teria um reverso. Sim, ainda que as prestações do apartamento estivessem comprometidas, ainda que o convênio dos pais estivesse comprometido, mesmo que o carro também entrasse nisso, e que o casamento, previsto para dali dois meses tivesse de ser adiado.

Os cheques voltariam, a cerimônia seria cancelada, os convites perderiam o valor e os pais dela entrariam em ação. Mas pensando em tudo que conseguiu reverter, aquilo viraria estatística. Sorriu quando o telefone tocou, o amigo rico, a quem pediu ajuda, apenas 50 mil reais, estava do outro lado da linha, agora, dizendo não.
Pareceu não entender bem o “não”. Pareceu enxergar que sempre existe uma primeira vez a tudo, e era nisso que pensava enquanto seu corpo caía do décimo terceiro andar, e foi nisso que pensava quando caiu em cima daquele capô, enfiando a cabeça no para-brisa. Foi então que o deus da regeneração provou que encontrara uma saída, pois sempre havia uma, não é mesmo?

domingo, 11 de maio de 2014

NADA TERMINA

Estava a menina a brincar com seus lápis coloridos e seus desenhos. Pintava qualquer coisa que estivesse ao redor do contorno. Quando a avó chegou e se ajoelhou na frente da neta.

Perguntou se tudo estava bem e se aquele desenho era algo importante. A menina sorriu e disse que era uma árvore, que era importante a todos, porque dava sombra, vida e beleza ao mundo.

A avó sorriu e disse que a menina também poderia ser árvore, que a sombra seria a ajuda a todos, que a beleza faria todos sorrirem e que a vida estaria com a garota para sempre.

E a neta disse que seria impossível ser árvore, não cresceria tanto nem teria galhos ou flores. Que nenhum passarinho pousaria nela. A não ser que as pétalas florescessem em seus cabelos.

E a avó sorriu e disse que as flores sempre podem aparecer dentro da cabeça, como ideias maravilhosas, e que os passarinhos poderiam ser pessoas, mesmo que não pousassem em seus galhos, estariam ao redor dela, e que, apesar de não ser tão alta como uma árvore, ela também cresceria linda.

A menina sorriu de novo e disse que aquele desenho era um presente à avó, que preferiu deixá-lo à neta para que terminasse.

A avó se levantou, beijou a testa da menina e saiu.

Logo após, a mãe apareceu e disse que aquele desenho era lindo. E a filha tratou logo de dizer tudo o que acabara de ouvir da avó, deixando a mãe boquiaberta. A pergunta veio em seguida, assim como a resposta.

E o sorriso poderia ter sido o fim de tudo, mas não. A filha saiu chorosa, com a mão na testa, e teve certeza de que a mãe e a neta teriam sido grandes amigas.

terça-feira, 6 de maio de 2014

SEMPRE ESQUEÇA O GUARDA-CHUVA

E lá se vai mais um dia. O rapaz se levantou como se levantaria num dia de sol ou num dia de chuva. Depois do banho, ligou o TV e acompanhou os noticiários como no dia anterior. O café ficou pronto no mesmo tempo e na mesma medida que de anos atrás. Chovia forte naquela manhã.

Enquanto ouvia algo no TV, tomava seu café e olhava as redes sociais. Deveria ter sorrido com todas as saudações do sucesso na empresa. Invejado, inspirador, exemplo de dedicação e talento. Mas não sorriu, preferiu o sanduíche. Chovia forte naquela manhã.

Em 15 minutos, deveria ter respondido educadamente aos dois emails recebidos da diretoria e da presidência, incluindo o da matriz em Chicago, porém preferiu se despedir do cão, dando um beijo no seu focinho. Pegou as 10 pastas que levaria aos 10 da reunião naquele encontro das 9h30, conferiu o conteúdo, ratificando que a campanha tinha rendido 4 vezes mais a expectativa da agência, e saiu. Chovia forte naquela manhã.

Pegou o carro na garagem e cumprimentou como sempre o porteiro, saudando-o com um bom-dia tímido, mas determinado. Gostava do olhar do senhor, sofrido e profundo, forte e único. Não quis ouvir a sua entrevista que iria ao ar em poucos minutos, preferiu Glenn Müller, pois se lembrava do pai, que teria orgulho do filho agora por ter atingido um topo inimaginável na família, mesmo que ninguém entendesse direito o que realmente o rapaz fazia. Chovia forte naquela manhã.

Parou na sua vaga de sempre e os sorrisos dos guardas eram mais largos, mesmo que o time de um deles estivesse mal no campeonato, pensou que aquela alegria não deveria ser tão sincera assim. E, ignorando tamanha filosofia, compartilhou do momento devolvendo algo não tão expansivo, porém simpático e sereno. Chovia forte naquela manhã.

Ao entrar, foi aplaudido de pé por todos que o conheciam e por nem todos que conhecia. Assustou-se, do fundo do coração, preferiria como em dias anteriores, preferiria seguir até sua sala, cumprimentar como de costume quem sempre olhou para ele, não quem o olhava por uma ação. Soube que sempre teve seu valor, o resultado não mudava em nada o que sempre foi. Chovia forte naquela manhã.

Entrou na sala de reunião antes do previsto, porque havia uma comissão de senhores engravatados e sorridentes que pediram para chamá-lo antes mesmo de a reunião começar. Foi abraçado por quem nunca o viu, foi cumprimentado por nomes que jamais passaram por seus olhos, foi louvado por pessoas que jamais dividiriam o amendoim do happy-hour. Chovia forte naquela manhã.

Depois de os ânimos se acalmarem. O presidente pediu a palavra e impediu que o rapaz se sentasse, manteve-o colado junto a si, sombra a sombra aos lucros, passo a passo ao dinheiro, face a face com uma pessoa que precisou que alguém explicasse o que o rapaz fez. Um discurso empolgado, quase convincente. Sentou-se, depois de pedir aplausos mais uma vez, e deixou que o talento se explicasse. Chovia forte naquela manhã.

Antes de falar, aproximou-se até a larga janela do 3º andar. Não era tão alto, entretanto podia ver os pingos descerem rente ao vidro e sumirem antes que tocassem o chão. E foi nesse itinerário que avistou os carros lá embaixo. Avistou os pedestres, muitos deles com seus guarda-chuvas. Na calçada do outro lado da rua, viu uma moça, a única sem guarda-chuva, a única que teimou, sabe-se lá por quê, em olhar para cima. Os olhares se cruzaram. Parece que ela sorriu a ele. E então fez a única coisa que deveria fazer naquele instante, saiu da sala, pegou seu guarda-chuva e foi ao encontro dela.

Não saberemos jamais se era o amor da vida dele, não saberemos jamais se conversaram. Não saberemos jamais o que os senhores engravatados pensaram, porque ele não voltou à reunião.  O que se podia ter certeza é que ele teve de sair e que chovia forte naquela manhã.