terça-feira, 6 de maio de 2014

SEMPRE ESQUEÇA O GUARDA-CHUVA

E lá se vai mais um dia. O rapaz se levantou como se levantaria num dia de sol ou num dia de chuva. Depois do banho, ligou o TV e acompanhou os noticiários como no dia anterior. O café ficou pronto no mesmo tempo e na mesma medida que de anos atrás. Chovia forte naquela manhã.

Enquanto ouvia algo no TV, tomava seu café e olhava as redes sociais. Deveria ter sorrido com todas as saudações do sucesso na empresa. Invejado, inspirador, exemplo de dedicação e talento. Mas não sorriu, preferiu o sanduíche. Chovia forte naquela manhã.

Em 15 minutos, deveria ter respondido educadamente aos dois emails recebidos da diretoria e da presidência, incluindo o da matriz em Chicago, porém preferiu se despedir do cão, dando um beijo no seu focinho. Pegou as 10 pastas que levaria aos 10 da reunião naquele encontro das 9h30, conferiu o conteúdo, ratificando que a campanha tinha rendido 4 vezes mais a expectativa da agência, e saiu. Chovia forte naquela manhã.

Pegou o carro na garagem e cumprimentou como sempre o porteiro, saudando-o com um bom-dia tímido, mas determinado. Gostava do olhar do senhor, sofrido e profundo, forte e único. Não quis ouvir a sua entrevista que iria ao ar em poucos minutos, preferiu Glenn Müller, pois se lembrava do pai, que teria orgulho do filho agora por ter atingido um topo inimaginável na família, mesmo que ninguém entendesse direito o que realmente o rapaz fazia. Chovia forte naquela manhã.

Parou na sua vaga de sempre e os sorrisos dos guardas eram mais largos, mesmo que o time de um deles estivesse mal no campeonato, pensou que aquela alegria não deveria ser tão sincera assim. E, ignorando tamanha filosofia, compartilhou do momento devolvendo algo não tão expansivo, porém simpático e sereno. Chovia forte naquela manhã.

Ao entrar, foi aplaudido de pé por todos que o conheciam e por nem todos que conhecia. Assustou-se, do fundo do coração, preferiria como em dias anteriores, preferiria seguir até sua sala, cumprimentar como de costume quem sempre olhou para ele, não quem o olhava por uma ação. Soube que sempre teve seu valor, o resultado não mudava em nada o que sempre foi. Chovia forte naquela manhã.

Entrou na sala de reunião antes do previsto, porque havia uma comissão de senhores engravatados e sorridentes que pediram para chamá-lo antes mesmo de a reunião começar. Foi abraçado por quem nunca o viu, foi cumprimentado por nomes que jamais passaram por seus olhos, foi louvado por pessoas que jamais dividiriam o amendoim do happy-hour. Chovia forte naquela manhã.

Depois de os ânimos se acalmarem. O presidente pediu a palavra e impediu que o rapaz se sentasse, manteve-o colado junto a si, sombra a sombra aos lucros, passo a passo ao dinheiro, face a face com uma pessoa que precisou que alguém explicasse o que o rapaz fez. Um discurso empolgado, quase convincente. Sentou-se, depois de pedir aplausos mais uma vez, e deixou que o talento se explicasse. Chovia forte naquela manhã.

Antes de falar, aproximou-se até a larga janela do 3º andar. Não era tão alto, entretanto podia ver os pingos descerem rente ao vidro e sumirem antes que tocassem o chão. E foi nesse itinerário que avistou os carros lá embaixo. Avistou os pedestres, muitos deles com seus guarda-chuvas. Na calçada do outro lado da rua, viu uma moça, a única sem guarda-chuva, a única que teimou, sabe-se lá por quê, em olhar para cima. Os olhares se cruzaram. Parece que ela sorriu a ele. E então fez a única coisa que deveria fazer naquele instante, saiu da sala, pegou seu guarda-chuva e foi ao encontro dela.

Não saberemos jamais se era o amor da vida dele, não saberemos jamais se conversaram. Não saberemos jamais o que os senhores engravatados pensaram, porque ele não voltou à reunião.  O que se podia ter certeza é que ele teve de sair e que chovia forte naquela manhã.

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