quinta-feira, 30 de novembro de 2017

TALENTOSA

A filha de um ano e meio estava com os pais na fila do caixa do supermercado, quando uma senhora gentil sorriu a ela, que devolveu o gracejo sem cerimônias. A senhora perguntou aos pais o que a garotinha sabia fazer. Sem entenderem a pergunta, pediram para a senhora repeti-la. E ela foi mais explícita, dizendo que muitas respondem a estímulos, do tipo "como faz o gatinho?" ou "como faz o porquinho?" e assim por diante.

Os pais estranharam e ficaram sem ação, e a senhora continuava a sorrir para a menina, que arregalou aquele olhar negro e profundo e piscou com um deles sorrindo. A senhora se entusiasmou e disse "Ah, você sabe piscar?" e começou a piscar desenfreadamente para a garota. 

A pequena, vendo todo aquele espetáculo, fora categórica, pegou os óculos escuros da mãe e ofereceu à senhora, que achou o máximo aquela iniciativa, pôs os óculos e continuou as micagens. A garota esticou os bracinhos, pegou os óculos de volta e fora ela agora quem os colocou, mostrando todo seu talento. A brincadeira tinha acabado, a senhora ficou sem graça e a promoção da gelatina, leve três e pague duas, ficou mais doce naquela tarde.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

DE PAI PRA FILHO

Roberval tinha um sonho, o de formar o filho médico. Queria-o doutor e faria qualquer coisa a isso. Conheceu o esquema de uma gangue, que, por 90 mil reais, conseguia resolver a prova, dando as alternativas ao candidato via ponto eletrônico. O pagamento foi feito em duas etapas, uma antes e outra depois de confirmada a aprovação.

Roberval Júnior se tornaria o primeiro médico da família. Quase dez anos depois, entre estudo e residência, o rapaz se formava clínico geral. Com a influência da família e do pai, conseguiu assumir uma posição de destaque na diretoria num hospital renomado da cidade. O investimento nos estudos deu certo. 

Aos 35 anos, Roberval Júnior conseguia quadruplicar os bens da família e dedicava ao pai o sucesso de sua carreira. Palmas aos envolvidos. Não se sabe o número de pacientes que o doutor atendeu, muito menos a quantia desviada dos recursos vindos à entidade. Sinal de que educação realmente veio de berço e que suas consequências não poderiam resultar em honrarias diferentes. 


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A SUICIDA

Um suicida não nasce assassino, um suicida apenas revela uma parte de si. Assim como é capaz de odiar, de amar, ele também desenvolve tal habilidade. E a mulher tinha todos os motivos e características para isto. Traição conjugal, demissão e as dívidas com o agiota. Tudo se acumulou. Ora, se alguém tinha o direito de tirar a própria vida, que fosse ele mesmo. Mais digno, mais honrado.

Não tinha dúvidas de como fazê-lo. Subiu até o último andar do prédio e sabia que talvez os 75 metros de queda fossem suficientes para o serviço. Levou consigo sua melhor e última garrafa do uísque escocês 12 anos, o mesmo uísque que não quis vender ao amigo, que apenas lhe estendia a mão. 

Ela preferiu encolhê-la. Sentou na beirada da janela do salão de jogos, e deixou as pernas dançarem, como se pudesse sentir a queda antes, como quem mede a temperatura da água da piscina antes do mergulho. Deu dois longos goles no destilado. Não lacrimejou nem teve a queimação em seu peito. 

Faria uma oração, se soubesse. Dizem que nossa fé toda aparece no momento que antecede nossa morte, mas parece que a dela não vingaria. Teria somente a si na derradeira partida, só estava, porque só era e isso não mudaria. Nunca teve sorte na vida, talvez a morte fosse mais afortunada.

Olhou a garrafa, ainda havia alguns longos goles, e decidiu presentear-se com eles, pois não havia nada mais a dar a si. Minutos depois, a razão sumia dali e tudo girava e girou. Levantou-se, estava a um passo da morte, bastava um simples empurrãozinho, que não veio, a natureza fez seu trabalho, a moça girou duas vezes e foi, caiu no chão, espatifou a garrafa e desmaiou com o tombo e o álcool. E assim, se a vida sempre foi seu azar, não seria a morte seu primeiro sucesso.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

AS SEMENTES

A avó tinha essa mania de plantar sementes. Conversava com elas enquanto preparava a terra e cantava sua canção favorita cobrindo-as com amor e carinho. A neta, enquanto se distraía com qualquer coisa, apareceu, ajoelhou-se e perguntou o porquê daquele ritual todo se as sementes não tinham ouvidos.

A avó disse que não só os ouvidos escutavam. Que o coração também escutava. E a menina mais do que rapidamente também refutou a ideia de as sementes terem coração. A avó optou em dizer que não só o coração escutava, que a alma também era uma boa ouvinte.

A garota sorriu satisfeita, certa de estar ganhando na discussão, e também falou que as sementes não tinham alma. A avó se calou resignada. Semanas depois, a menina entrou correndo para avisar que das sementes brotou uma linda muda, e a avó - enquanto cortava um pedaço do bolo - perguntou à neta se ela sabia por qual motivo a muda havia aparecido.

A menina fez uma expressão de deboche e disse que não poderia ser por causa dos ouvidos ou do coração ou da alma, pois sementes não os tinham. E a avó sorriu e perguntou: "não mesmo?". A garota reafirmou que não. A senhora sorriu de novo e indagou se a neta tinha ouvidos, a garota disse que sim, num tom enfadonho. 

E a avó emendou: "então por que você não escutou nada do que eu disse naquele dia?". A neta disse que tinha escutado sim. "Se você tivesse escutado, não se surpreenderia com a muda que acabou de nascer ali. E ela vai crescer e vai ficar linda, cheia de vida".

À menina restou apenas a lição de que não adiantavam ouvidos, coração e alma se a música não fosse escutada.  

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O REI

Gualberto tinha um sonho: ser rei. Mas como ser rei aos 7 anos de idade? Ora, seria óbvio, montaria ele mesmo seu reinado. Por dias, elaborou seu castelo e deu início ao seu desejo. Tomou alguns papelões, tesoura, cola, palitos de dente. Foram duas semanas, e enfim o monumento estava em pé. Soberbo, bem no meio de seu quarto. 

Depois percebeu que não poderia ser coroado sem que houvesse um povo, o povo era importante. Pegou todos os seus bonecos e não contava que fossem tão ínfimos para alguém que desejava ampliar suas conquistas e seu poder. Foi pedir à irmã algumas bonecas, mas ela não as cedeu com tanta facilidade, foi preciso abrir mão de algumas balas e guloseimas para negociar.

Dias depois, ainda que sentisse falta do açúcar em seu paladar, seu reinado começou a tomar forma. Precisava de árvores, para derrubar e fazer barcos e ganhar o mundo pelo mar. Pediu ao pai, engenheiro e habilidoso com miniaturas, que as construísse, em troca, o homem pediu ajuda para recolher o lixo. 

Dias depois, fedendo a cascas de banana, ele obteve cerca de duas dezenas delas, que enfeitavam a entrada de seu castelo. E então faltava um detalhe agora: uma coroa. Lembrou das histórias da avó, que fora Miss Itu, e da coroa que ela exibia. Foi até a velha, que pediu uma massagem nos pés. Minutos depois estava coroado. Agora era só começar a mandar.

Conhecia apenas uma pessoa que poderia ensiná-lo, a mãe. Bastaram alguns minutos para observá-la e perceber como dominava a arte, com a irmã, o pai, a empregada e sobrou a ele também. Chegou cheio de si ao quarto e distribuiu tarefas, mandamentos. Nada. Ninguém sequer fez um só movimento. Então percebeu que poder não se conseguia e que, por mais que fosse seu desejo, todas as negociações, barganhas e politicagens de nada adiantaram.

Ser rei carecia mais de talento que de vontade, derrubou seu governo e preferiu o futebol, mas antes, a mando da mãe, claro, teve de arrumar a bagunça do seu quarto. Precisaria de uma independência, no entanto isso ficaria para depois do lanche, porque naquela tarde seu preço eram as bisnaguinhas com geleia de mirtilo. E o reinado se tornou colônia. 

terça-feira, 14 de novembro de 2017

ESPINHOS EM FLOR

Ficou encantada a menina quando viu aquela roseira. Os olhos se encheram de vida ante tantas cores. Soltou-se da mãe e correu até elas, queria abraçá-las, beijá-las, queria vestir-se de rosas, cheirar como elas. E assim se entregou. Estava feliz, beijou, abraçou e vestiu-se de todas as pétalas possíveis, de todos os aromas possíveis, de todas as cores possíveis. 

De repente, sentiu uma pontada no braço. Num ímpeto, com a fisgada e o susto, virou-se bruscamente e desta vez foi o rosto e a palma da mão, eram alguns espinhos a rasgar-lhe a carne. Ela se afastou contrariada e voltou até a mãe, emburrada. Perguntou-lhe por que ela não a avisara sobre aquilo. A mãe respondeu que avisou, mas que o encanto da filha era tanto que talvez não tenha escutado ou simplesmente não quisesse escutar.

A menina disse que prestaria mais atenção nas palavras da mãe, que disse que ainda assim seria escolha da filha qualquer decisão que tomasse. Então perguntou à garota se tudo aquilo tinha valido a pena. A menina, lambendo o arranhão, disse que sim. Foi a primeira lição que aprendera. Haveria outras roseiras e para algumas delas valeria a pena se entregar. Haveria outros espinhos e para alguns deles também valeria a pena se entregar.

Se nossas cicatrizes contam as histórias que passamos, os aromas que sentimos, as cores que vemos e as sensações que guardamos também. Não somos só que o se vê, porque nem tudo o que somos fica exposto.  

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A TINTA DO SOL

Valentina conhecera o mar aos 4 anos. Escutou atentamente as recomendações da mãe e aprendeu a respeitá-lo de longe como quem analisa uma nova amizade, uma nova situação.  Trouxe consigo sua caixa de brinquedos e bugigangas e preferiu se entreter na areia, em que construiria reinos e os destruiria minutos depois.

Estava ao lado do pai, que não se acanhou em deitar, ficou exposto ao sol e acabou dormindo. Num ímpeto de calor, o homem despertou e se virou de bruços. A parte da frente, entre o rosado e o vermelho, contrastava com a brancura traseira. Minutos depois, o sol acabou se escondendo e Valentina percebeu, pela lógica, que os mesmos tons adquiridos em sua metade não atingiriam o mesmo resultado.

Teve uma ideia, virou e revirou suas quinquilharias e encontrou seu guache rosado. Não teve qualquer acanhamento e passou a pincelar o pai, a fim de fazer o serviço incompleto do sol. As demãos duraram uns vinte minutos, o que, do seu jeito, conseguiu amenizar aquela arte. Logo após, o pai acordou e decidiu dar um mergulho.

Foi confiante até as ondas e se entregou às braçadas, à refrescante sensação. No entanto viu a garota que o itinerário que o pai fazia deixava atrás de si um legado vermelho. Sim. Sua obra, seu guache fora se agarrando ao mar, despregando-se do homem sem qualquer discrição.

Aquilo a intrigou e teve a certeza de que, se usasse a tinta que o sol usava, seus desenhos seriam mais vibrantes, mais eternos, à prova de água, à prova de tudo.  

terça-feira, 7 de novembro de 2017

AS LIÇÕES DE VÔ INÁCIO

Seria um castigo qualquer. Os negros rodeavam o pelourinho como uma proteção estéril, pois suas mãos estavam atadas à vida como a corrente à sua raça, como a liberdade ao impossível. Vô Inácio estava ali, costas marcadas e um capitão a estreitar-lhe os passos com a chibata em riste. Talvez pela idade, pela quase surdez, ignorou uma ordem tola e acabou pela centésima vez sob os cortes iminentes.

Sinhozinho da fazenda perguntou-lhe se ele sabia contar, vozinho disse que não e o homem riu de sua ignorância e ordenou que decorasse as vinte chibatadas, que as contasse alto e que elas recomeçariam caso ele errasse a numeração. E assim, o capataz deu dois passos à frente e desceu forte o couro gasto naquela pele gasta. O barulho seco fez todos darem um passo atrás, enquanto o barão berrava a vô Inácio que contasse, e o velho fora certeiro: 20.

Sinhozinho, o capitão e os demais capatazes riram alto. O barão chegou perto e disse-lhe que a esperteza de sua idade não o fariam acabar. O olhar doce e misericordioso fê-lo recuar, e vozinho explicou que preferia fazer de trás para frente, porque era melhor saber quantas faltavam e não quantas mais viriam.

Intrigado e desconfiado, pediu que o capitão não aliviasse na força e, uma a uma, até a última, vô Inácio, com a voz firme e doce anunciava o fim. As feridas abertas mais uma vez faziam os seus chorarem. As dezenas de filhos e netos clamavam a um Deus poderoso que aliviasse o caminhar daquele preto velho de olhar profundo e doçura nas palavras.

Já imóvel, ele respirou fundo, enquanto os algozes o desamarravam e o levavam de volta à senzala. Pelo caminho, o barão os interpelou e avisou que aquela lição fosse aprendida, pois da próxima vez provavelmente vô Inácio não sairia vivo do castigo.

Vozinho não sorriu por fora, mas havia um sorriso naquele olhar, quando falou que nunca conseguiriam colocar-lhe o ódio no coração, e que, se preciso fosse, o ódio deles talvez um dia se cansaria de bater e ficaria mais gasto que o coro da chibata.

Vô Inácio não resistiu aos ferimentos e foi brilhar no céu, amparado por Deus e por todos os anjos, que lhe saudaram em reverência.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

A PRIMEIRA CEIA

Antonio Alves era um trabalhador clichê. Pai de 4, aos 53 anos, ainda sustentava os meninos, porque estava longe de ser menino quando se tornou pai. Levantava às 4h30, trabalhava das 8h às 17h e chegava em casa às 19h, cinco vezes na semana. Aos domingos, ia aos cultos e dedicava sua devoção a Deus, era honesto e seguia sua vida em retidão.

Numa manhã de inverno, enquanto o sol se atrasava, estava no ponto e viu o ônibus apontando, mas não viu os dois assaltantes se aproximarem. Tiraram tudo o que tinha, na mochila estava sua bíblia, ele implorou para não levarem e, num ímpeto de desespero, agarrou um dos bandidos, que o esfaqueou na barriga.

O ônibus parou e de lá desceram quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, que não tardaram em chamar uma ambulância. Provavelmente perderiam o dia, mas optaram em ajudar Antonio. Quase uma hora depois, o Samu chegou e levou a vítima, seguida pelos três, num Uber. 

O hospital mais perto era um público, no entanto o atendimento foi rápido. Por sorte, que seja, o furo não foi tão profundo, rendendo-lhe uma semana de internação. Os filhos e a esposa correram para lá e o seguiram por toda sua recuperação. Assim como os quatro que o salvaram.

No dia de sua alta, a família estava ali, bem como o quarteto, que, numa vaquinha, comprou uma mochila nova, um celular novo e uma bíblia. Ele recebeu os presentes e beijou o livro sagrado. 

A vida seguiu e, dias depois, descobriu Antonio que uma das mulheres era católica, enquanto a outra era espírita. Um homem era umbandista e o outro, ateu. Um ano depois do acidente, resolveram celebrar o evento com um almoço, e quem pagou a conta foi Deus.  

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O PRIMEIRO DESAFIO

14 anos tinha o menino e já encarava seu primeiro desafio: ligar para a garota mais linda da sala, porque ele estava apaixonado, pois todos os meninos morreriam por ela e morreram, já que não passavam da apresentação. Mas ele conseguiu o número do telefone da casa dela, original, old shcool. Decidiu que o faria às 16h daquela sexta-feira. Acordou confiante, observou-a o tempo inteiro durante a aula.

Juntou as forças que podia. Voltou triunfante, seguro. Nada podia derrotá-lo. Ensaiou bem o discurso, não usaria clichês, ele a surpreenderia e ela ficaria sem palavras, quando ele se apresentasse cantando. Então ele desligaria com glamour e sorveria aquela tarde de primavera.

Tomou um banho, passou a colônia do pai, esperou e esperou. Pontualmente às 16h, pegou o telefone, digitou e esperou. Ela atendeu e assim a magia se fez, cantou afinado e realmente ela ficou sem palavras, porque desligara na sua cara e a profecia se fez. Ele olhou aos lados, garantindo que não havia plateia  e sorveu aquela tarde de primavera.