quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A MOÇA DE CABELO AZUL

Foram 5 anos economizando. 5 anos se privando de passeios, bares e outros vícios para que Fernando conseguisse realizar o sonho de conhecer Jerusalém, especialmente a via dolosa, numa promessa que fez à avó, em seu leito de morte. O homem não era lá religioso, mas beatificou a velha, que o criou com amor e afinco durante 21 anos árduos entre o nada e o pouco. Ela fez dele um ser digno e pronto para honrar seus compromissos. Fugia de relacionamentos para evitar conflitos, porque as cinzas de dona Eustáquia deveriam ser jogadas sob os cantos da Cidade Santa. 

Com o dólar em alta, ele suou horrores, mas conseguiu a grana que viabilizaria o sonho da avó. Roteiro preparado, valores em dia, sobrariam até uns mil reais para alguma coisa no Duty Free. fez questão de um hotel bom. Seriam 5 dias por lá e suficientes para que enfim ele pudesse viver a sua vida e realizar os seus sonhos. Naquela manhã de sábado, ele foi à agência de viagens que se tornara da família, desde quando as cotações começaram.

Entrou confiante e aliviado e sentou na recepção, revirando as revistas e esperando sair de lá com passagens e estadas fechadas. Fernando se deu conta daquele perfume cítrico que o arrebatou por inteiro. Não sabia de onde vinha, mas tinha certeza para onde o levaria. E ele a viu ali, serena, com uma paz inebriante: um convite a estragos previsíveis. O cabelo azul não lhe incomodou, pelo contrário, era do tom da poesia e da cor da harmonia.

Foi então que ela sorriu, mas ele não notou se sorriu de volta. "Sabrina". "Pra Jerusalém, e você?". Percebe-se pelo começo como tudo pode terminar. Ambos sorriram. "Pra Toscana". "Fernando. Se incomoda?". "Não, faço questão". E ela abriu espaço ao seu lado e a sua vida. Quando se deram conta, estavam num café, conversando como nunca o fizeram antes. Era aquela confiança cega que só acontece uma vez na vida, e o destino escolheu que fosse naquela manhã.

Descobriram muito um do outro. Ela amava Beatles, ele também. Ele preferia os filmes melancólicos, ela também. Viam-se um ao outro em outro corpo, em outra vida e tudo numa química só. "Vem comigo pra Roma, de lá você  segue pra Jerusalém e me encontra na Toscana". 

Era uma proposta tentadora e irrecusável. Uma paixão clichê das boas no melhor roteiro clichê aos apaixonados. Ele sorriu, mas nem os mil reais restantes o ajudariam. "Então eu vou com você pra Jerusalém, e você volta comigo pra Roma. Lá, a gente se vira pra chegar à Toscana". Fernando fraquejou e tentava calcular uma possibilidade, no entanto tomou um beijo inesperadamente esperado e aquilo revirou seu olhar. 

Uma viagem dos sonhos, com a garota dos sonhos e uma loucura daquelas era para fazer valer os 5 anos de nada. Voltaram à agência, fecharam juntos dia e horário. Viajariam dali uma semana e Sabrina teve de voltar para o interior naquele mesmo dia. Fernando a levou à rodoviária  e se beijaram sem modos até o último instante.

O ônibus saiu, ela espalmou a mão no vidro e disse que o encontraria em 7 dias. Ele não sabia como, mas tinha certeza que a loucura compensaria. Jerusalém, Roma, Toscana... E seu trabalho? Seus compromissos? "Pros diabos", foi a sua maior rebeldia, em 26 anos de vida. E ele tinha Sabrina e ela tinha cabelos azuis, um sorriso lindo e uma inteligência contagiante. Fernando tinha tudo.

Não soube como conseguiu encurtar a semana arrastada, nem se perdoava por ter trocado tudo, ideias, sonhos e até seu itinerário e não ter trocado os contatos. Sabrina, de Ribeirão Preto, cabelos azuis. Era somente nisso que ele pensava, era somente isso o que ele queria ver naquele saguão. 

Ele chegou cedo, antes do esperado, antes do combinado. E não demorou para ver a garota vindo com sua mochila imensa e seu azul na franja. Ela sorriu o mesmo sorriso de uma semana atrás e o mesmo sorriso que Fernando sorria. Beijaram-se longamente e logo estava lado a lado na fileira C. Fernando foi na janela, porque era seu batismo. Não dormiram as 12h de voo até Istambul nem dormiriam até Jerusalém. 

Passaram o tempo falando de si e ouvindo-se, soltaram-se as mãos apenas para comer. Estavam felizes e  inconformados de como chegaram até aquele dia sem um ao outro. Pisaram em Jerusalém numa tarde quente. Foram para o hotel e dormiram agarrados. Na manhã seguinte, ele acordou e não encontrou no quarto. Foi ao banheiro, nada. Abriu a porta, espiou pelo corredor. Nada. 

Pensou que seria fácil encontrar  alguém de cabelo azul em Jerusalém. Ao menos bastaria afiar o olhar. E ela tinha um sorriso lindo, olhos vivos e uma inteligência doce, pelo menos parecia, mesmo que  moça não tenha demonstrado nenhum interesse nele na recepção da agência. A Fernando coube jogar as cinzas da avó numa esquina da via dolorosa, sem que nenhum segurança percebesse. 


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