segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O DIA QUE PASSEI DE LADRÃO A ANJO

Quem já teve, ou tem, um cão sabe muito bem o amor que existe nessa relação. Muitas vezes, o sentimento está enraizado em sua alma, outras vezes ele cresce sem explicação, simplesmente porque não existe uma teoria que explique o amor. Não importa, é fato que, onde houver pelos e móveis roídos, haverá uma sensação de alegria e ternura.

Na minha terceira e última separação, por motivos que agora não vêm ao caso, não deixei apenas minhas responsabilidades e um passado frustrado, deixei minha cachorra. Mafalda era tão minha que tinha Paciello em seu pedigree. Enfim, depois da morte do meu pai, foi a minha maior e mais duradoura perda que tive em meus dias. 

Passei meses numa tristeza amarga e em lembranças duras. Era comum abrir meu notebook e rolar as fotos dela tela abaixo junto com minhas lágrimas. e meu amor pelo cães virou uma obsessão escancarada. 

Parava donos e seus cães na rua para mexer com eles, tentava me aproximar dos cães de rua para amenizar minha saudade. Muitos até se deixavam acariciar.  Um raciocínio mais lógico pedia pra pegar outro cão, no entanto eu precisava resolver a Mafalda em minha vida, viver aquele luto com dignidade e estar preparado pra me dar outro pet.

Evitava passar por feiras de adoção, não suportava olhar aqueles cães sem uma forte pontada em minha alma. Tinha de resolver aquele luto. E resolveria no tempo certo.

Sempre tive o hábito de caminhar. Punha uns bons quilômetros para pensar na vida e em outras coisas. E foi em uma delas que me deparei com uma cena inusitada. Na mesma calçada, na próxima esquina, eu vi um peludo sozinho e perfumado.

Era fato que ele havia acabado de sair de um banho, a gravatinha vermelha o denunciava sem mistérios. Olhei-o sem grandes ambições e esperei que alguém se aproximasse. Ninguém se aproximou. O bicho estava sentado, com a língua de fora, olhando a vida. Parecia assustado.

Parei minha caminhada e olhei ao redor. Nada. Tive medo de me aproximar de modo mais brusco e assustá-lo e o danado correr ao encontro dos carros. Tentei mostrar naturalidade, mudei minha rota e comecei lentamente a me aproximar. Na metade do caminho, ele se virou para mim. Eu mantive os passos moderados e parei. Se alguém estivesse atrás dele, logo o chamaria, então não fiz qualquer movimento.

Esperei alguns segundos e nada. Agachei-me, assobiei a ele, que logo devolveu um abanar de rabo promissor. Aquilo me encorajou e fui ousado, dizendo um sincero "Vem cá, danado, vem".  Pois não é que funcionou, o cãozinho correu em minha direção, feliz e me deixando numa alegria nada contida.

Ele pulou nos meus braços, eu o agarrei e não tentei me safar das lambidas que ele me dava. Levantei-me e olhei aos lados. Nada. Alguém aparecia em breve. Nada. entre outras tantas lambidas, convenientemente juguei que minha cura havia acabado acontecer. Deus o havia colocado na minha vida, assim, de presente e de gravata vermelha.

Meu luto havia sumido, naquele momento, Mafaldinha deixaria de ser uma tristeza amarga e passaria a ser uma saudade doce. Respirei fundo e o levaria para casa. Era uma sábado quente e o meu trajeto pedia sombras e o do pequeno também. 

Então decidi voltar pela rua onde o encontrei. Desci com ele no colo e, ao virar, duas crianças berraram felizes e correram ao meu encontro, chamando-o pelo nome. O pequeno ficou arisco e logo quis descer. Os pais vinham atrás e o pet correu ao encontro dos quatro, que me agradeceram emocionados. 

Eu deveria ter ficado egoisticamente decepcionado, mas ver o alívio das crianças ratificou o que meu coração sentiu naqueles poucos minutos. Passei de ladrão a anjo e meu luto havia sumido, o pequeno havia me curado e, dias depois, Brigitte, minha pug, de 7 anos hoje, entrava para a minha vida.    


2 comentários:

  1. Ahhh não conhecia essa história! Que legal! Eu lembro da sua angústia com a Mafaldinha, que bom que no final deu tudo certo!

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