quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

UMA VIDA BOA


Dizem que existe um determinado momento da vida que nada mais pode acontecer, mas nunca legitimam o momento exato para que o fim seja decretado. Como se existisse um dono de tempo, com seu relógio a marcar os derradeiros segundos e decretar o inevitável fim de tudo ainda em vida. E o velho creu nisso. Seus 82 anos realmente não poderiam inspirar longevos projetos, no entanto limitar seus passos e sonhos a idas ao mercado ou à farmácia e vibrar com cada noite bem dormida era sim um espólio do nada.


Já havia perdido a conta de quando começou com sua rotina diária, manjada e sem gosto. Também não poderia negar quando entrou nesse modo morno e morto de se limitar a a respirar, piscar e outras conquistas impostas aos senis. Não fossem os lindos arcos-íris, que vinham a cada 6 meses, suas horas seriam do passado, que também não traziam tanta recordação. Sua vida morna e cotidiana não lhe deu aventuras amorosas, filhos ou amigos. Chegou a alimentar um gato, que logo sumiu porque percebeu que a morte estava por lá como uma doença incurável. E o velho não sentiu sua falta, pois não sabia o que era saudade, não teve o talento para desenvolver tal habilidade.

Mas - depois que um novo bistrô apareceu nas redondezas, com a magia que só a Belle Époque poderia ter - algo mudou. E mudaria qualquer pessoa. As cortinas brancas, as janelas pequenas de madeira, as rendas surpreendentes, a bicicleta estilosa, o cestinho com flores, os postes, as luzes amarelas, o perfume. O velho teve um baque como nunca. Desistiu de se intrigar como aquilo tudo surgiu do nada, pois aquilo só endossaria sua indiferença à vida. Sensatez que aparece mesmo aos mornos, porque não se pode fugir a ela quando se vive muito.

Nada sabia de Paris, nada sabia de quase nada, além do domínio público. Mas era o aroma, era o acordeão, as cores. Por dias, arranjava motivos para colocar o pé na rua e passar por lá, Não tentou juntar as letras, pois não era dado a frustrações. Nem precisava, o que seu peito mandava era um alfabeto de alegria. Ficava na esquina à espreita. Via casais, solteiros, pessoas ali sentadas com seus cafés, suas eclaires. Sorriam como se ali fosse uma anestesia à realidade. 

Era comum ele ficar horas por ali. Aquele ambiente inteiro era seu mundo. Pela primeira vez em sua vida, tinha algum incentivo para sair de casa sem um protocolo à sobrevivência. Mentira. Aquilo era mais do que ar, mais do que água ou comida, era a razão para celebrar uma vida toda. Adorava ver tudo iluminado e esperava a noite chegar e tudo ficava ainda mais vivo, mais necessário.

Quando voltava pra casa, ensaiava como fazer para sorver tudo aquilo. Tomaria o espresso grande e comeria todos os macaroons, mas não tinha certeza se era essa a palavra, porque não conseguia ler direito os lábios. Ficava observando a vida ali por horas e ensaiava em casa como tudo seria. Do mesmo jeito que se perdeu no nada, meses se passaram nesse desejo, nessa obsessão. Até que um arco-íris cruzou o céu de um modo diferente naquele fim de tarde de verão e ele entendeu que estava pronto.

Na manhã seguinte, o velho não saiu pra rua. Banhou-se como nunca se banhou. Barbeou-se como se fosse roçar a pele de um amor impossível. Pôs seu melhor suéter, desenterrou uma boina mofada e sorriu no espelho, provavelmente pela primeira vez. Estava feliz. Os passos que os levariam até lá nunca foram tão desafiadores. As mãos suavam. As pernas tremiam e o coração rebatia com força. O bistrô estava ali, mas lindo do que nunca. Parecia cintilar a mesma felicidade do velho. 

Ele escolheu a mesa da janela, sua preferida e saberia como seria a visão de lá. A menina sorriu, ele devolveu o gracejo e seguiu poderoso até o canto, que ficava perto da parede de tijolos e um quadro indecifrável ainda. O velho sentou orgulhoso, olhou ao redor e quis que todos o vissem e se cumprimentou e se gabou. Vibrou com a certeza de ter acertado o nome do seu petit four favorito. Pediu meia dúzia e um espresso grande. 

A música estava mais colorida, a vida estava melhor e o velho esticou o olhar para a esquina onde tanto ficou e acenou para um passado de medo. Não se reconheceu mais, principalmente quando a moça deixou o pedido à sua frente. Uma explosão de sabor e de euforia eclodiu em sua boca. de repente, tudo fazia sentido, mesmo sem entender quais seriam as melhores palavras para explanar tal significado. Mordeu delicadamente cada macaroon, como se não quisesse machucá-los e os engoliu como quem abraça a si mesmo. Decididamente foi o momento mais feliz de sua vida, o único.

Saiu de lá pisando um sonho. Euforia. Precisava ver sua expressão antes de dormir e se viu menino, com um brilho intenso. Estava pronto, revigorado. Sabia que aquela noite era um marco. A partir de então, escolheu que todos os dias seriam aquele momento. Pausaria a vida nas horas que o receberam com alegria. Deitou sorrindo e dormiu a melhor noite de sua vida. Estava tão radiante que, na manhã seguinte, o gatinho havia voltado e ficou miando em sua janela, pedindo um afago ou provavelmente apenas para saudar-lhe a ousadia. A janela não se abriu nem se abriria, porque os dias por ali haviam terminado e o fizeram com sabedoria e no
auge. 

 


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