quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

O DESCUMPRIDOR DE PROMESSAS

Nascido de uma promessa, Antenor tinha em seus genes a coerência de um espólio peculiar. Nasceu católico, cresceu católico e viu um mar de promessas diante de seus olhos como nenhum outro ser humano deste mundo. Tias, avós, primos, todos envoltos em um compromisso com santos de toda cúria, de todo o firmamento.

As preferidas eram por curas e por empregos. Tinha promessa pra engravidar, pra campeonato, pra venda de terreno, até pra sobriedade. Batata! A família tinha assumido um carnê com os santos, pagos mensal e religiosamente. Tinham acordado entre si que os elos da corrente jamais se quebrariam. O menino se acostumou aos milagres. Até mesmo São Longuinho, o estagiário dos santos, dava as caras por lá, sempre eficiente, mas sem efetivação aparente.

Antenor não tinha tanta pretensão assim, mas foi na 7ª série, quando uma nota vermelha em matemática apareceu, que a mãe sugeriu que ele enfiasse a cara nos livros e uma promessa a São Judas Tadeu. Foi o que ele fez. Em troca de uma boa nota, um ano sem comer chocolate. Qual não foi a alegria de uma nota 8 e qual não foi o desespero da mãe: "Não existe São Judas Iscariotes!!!". 

E o garoto plantou uma crise entre todos. Seria o tesoureiro um santo? Teria o traidor agido de modo escuso? Fato é que o acordo se cumpriu, mas - pelo bem comum e pela sábia avó maternas, com seus 88 anos - julgaram melhor que a promessa não fosse cumprida, e Antenor ficou entre a tensão de sua indigna palavra e a tentação dos bombons. Preferiu a conveniência e se entupiu deles sem remorso.

O acordo não foi cumprido e a vida seguiu. Todos esqueceram a heresia e ninguém morreu. Quando completou 18 anos e o vestibular se sentou ao seu lado, a mãe não teve dúvidas, incutiu São Judas Tadeu - 'TADEU!!!"- repetiu em letras garrafais para que o despacho católico não ganhasse mais uma vez uma via errada. 

Um rosário foi formado na família. Vieram as tias e quem mais estivesse disponível, e o menino saiu pro exame com duas certezas: o chocolate e Iscariotes, era supersticioso demais - graças à devoção dos seus - para quebrar suas promessas. Fez suas orações, seus acordos e bingo: na primeira lista! Festa e chocolates escondidos com louvor.

Agora era a vez do emprego. A multinacional requeria algo bem mais ousado, e Santa Rita de Cássia era apresentada ao rapaz, que a olhou de cima a baixo e não teve uma empatia intensa, principalmente pela promessa sugerida: sua castidade. Ora, diria o pai, um adolescente se vira muito bem em um ano. E mais vale um bom salário do que um belo par de coxas.

Não, decididamente não. Ficou Antenor com suas crenças e Iscariotes não o trairia, diferentemente do requerente. O RH apareceu junto a uma caixa de chocolates importados. E a doçura se fez presente, fosse com cacau, fosse sem lingeries. O cargo o fez livre. Aos 24 anos, tinha mais do que imaginou. 

E foi nessa soberba que se perdeu e, numa manhã de sábado, a campainha tocou e Maria, uma moça de cabelos curtos e olhos profundos, sorria à porta, perguntando sobre Antenor, que não lhe atendia as ligações e que seria pai em 8 meses, caindo na desgraça familiar.

Julgou que Iscariotes tinha escolhido o melhor momento para cobrar o que lhe era devido e lhe desmascarar a canalhice e a falta de dignidade usando uma genialidade inoportuna: sua excomungação e sua queda. 

Antenor, então, se lembrou de Santa Rita e, dessa vez, afogou seu parceiro no inferno e, com todas as suas forças, pediu que um milagre acontecesse, em troca, esqueceria - e por 2 anos - dos chocolates, das coxas e de qualquer momento de prazer. Seria um celibatário por natureza, um ermitão.

E pôde se redimir com honestidade, humilhando-se em sua soberba e principalmente em sua desobediência. A gravidez não seguiu adiante e o rapaz tinha seus quase 800 dias de uma nova vida, sem graça, sem emoção e com testes diários à sua dignidade.

6 meses depois, percebeu que fora a melhor promessa de sua vida. Encontrou-se. Sua serenidade o pôs feliz, porque percebeu que muitas futilidades mundanas eram efêmeras. Nunca dormiu tão bem. Nunca teve tanta paz e apaixonou-se pelo isolamento. Realmente era o momento mais feliz de sua vida e encontrou prazer em tudo que rechaçou por anos. 

Foi então que percebeu que sua promessa estava, mais uma vez sendo quebrada, porque havia decidido se afastar de tudo que lhe desse prazer. De certa forma, fez jus a um legado que jurou defender até o fim de seus dias. Travou numa manhã a caminho do trabalho. De repente, ele parou no meio da calçada, entre o vaivém frenético das pessoas que não tinham tempo nem o privilégio de travar.

Estava ainda parado, sendo desviado, sendo xingado. Quando se deu conta, percebeu que, do outro lado da rua, havia uma brigadeiria insinuante e lasciva. Era a resposta que precisava, porque precisava de um enorme e suculento brigadeiro. Sorriu e atravessou a rua confiante. Seria seu melhor deleite em meses, não fosse uma kombi desavisada colocá-lo violentamente no chão. 

A manhã estava interrompida, não apenas por uma freira estar no volante, mas principalmente pela consequência do atropelamento. Qualquer um teria morrido, no entanto quem presenciou o evento diria ser impossível alguém se levantar depois daquele acidente. 

Disseram também que certamente foi um milagre justificável, por a motorista ser uma carmelita. O rapaz se levantou com a ajuda de sua algoz e seguiu sua vida sem traumas nem cortes, porém com uma certeza que guardaria no fundo de sua alma: Santa Rita de Cássia era sim tão rancorosa quanto Judas Iscariotes. 

    

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