quinta-feira, 2 de maio de 2013

O DIA QUE FUI PAULO FREIRE

Endossando o clichê do dia de ontem, lembrei-me de uma situação árdua quando era estagiário. Mas, antes que isso ocorra, tenho de situá-lo para que o relato ganhe muito mais vida e realce.

Aos 23 anos, fui contratado pelo KUMON Instituto de Educação para elaborar materiais didáticos de Língua Portuguesa. Tinha de criar histórias infantis e exercícios, o que depois virariam 3 materiais destinados a crianças a partir de 4 anos de idade.

Abro um à parte aqui para relatar que eu vi um menininho de 3 anos, carioca, que se alfabetizou pelo meu material, coisas que reforçam a ideologia de educador e nos fazem esquecer de qualquer adversidade vivida na época.

Enfim, havia um grande desafio, elaborar um material de alfabetização inovador. Confesso que foi uma insanidade os orientais jogarem em mim, um estudante de Letras, ainda na F naquela época, criar algo tão inédito. Ou era confiança demais ou era muita loucura.

Eu e minha parceira estagiária apresentamos um projeto de silabeto, a criança aprenderia por sílabas, justificando que eram os primeiros sons que ela emitia viriam dessa forma. Tenho certeza de que escolher a ordem das sílabas foi menos tensa que apresentar aos tacanhos japoneses daquela diretoria.

Apresentada a proposta, eles começaram a falar em japonês. O projeto mostrava duas sílabas e dois desenhos contextualizados. A figura que ilustra o texto é mais didática. Seriam 70 histórias de não-verbal. Ao término da reunião, o aval foi dado, mas o modo como foi concedido me soou como um desafio, quase uma afronta.

Minha colega falava e entendia bem japonês, ela disse que um dos diretores relatou: “Deixe que tentem, não vão conseguir tantas histórias assim, daí voltamos ao original”. Virou questão de competência.

Lembro que debrucei nas 70 sílabas. Depois, vieram as 70 palavras e o mais trabalhoso: criar 70 histórias contextualizadas, só em figuras. Ok, PAto e saPAto não tornou árdua a tarefa. Mas quando me vieram SUco e SUbida, quase enlouqueci.

Era uma quinta-feira de setembro de 1996. Saí no dia anterior com esse pepino, fui à faculdade e não quis ruídos em minha aula de Literatura. Cheguei no dia seguinte. Peguei lápis e borracha e me debrucei na folha de papel em branco. Fazia um esboço e a Cristina, parceira, desenhava brilhantemente as ideias.

Foram exatas duas horas, duas horas árduas para criar dois quadrinhos. Como mostrar uma subida e um suco numa história em dois quadrinhos? Como diria Chaplin: “Fácil quando se sabe como”. E o como veio: SUBIDA, uma formiga empurrando um cubo de gelo numa subida (em um canudo) – SUCO, a mesma formiguinha empurrando o cubo de gelo – subindo pelo canudo - para dentro do suco.

Lembro que saí cantando We are the champion, my friend, o que chamou a atenção de todos do setor, que correu para ver o trabalho. Em menos de um mês, o projeto estava pronto e aprovado. 70 histórias contextualizadas e um cala-boca imenso do diretor japonês, que, se mal falava o português, perdeu todos os sons possíveis e, qualquer idioma.

E mesmo que quisesse falar algo, nada se escutaria, porque fui aplaudido em pé, por mais de 300 orientadores do Kumon, quando o material foi lançado, em 1997, e permanece até hoje nos escaninhos das unidades da franquia japonesa em todo o Brasil.

Não tenho ideia de quantas crianças foram alfabetizadas por ele, isso não importa. O que importa é que faço parte de educação desse país, mesmo que meu nome não esteja nos 4 materiais que criei, nos 4 materias que fui obrigado a ceder os direitos autorais. 

Não, isso não é uma ode aos meus livros, é apenas um reconhecimento que todos os que colocam alma no que fazem deveriam receber.

Por instantes, sim, eu fui Paulo Freire.

2 comentários:

  1. (eu aqui lendo suas histórias...estou uns dias atrasada, mas vamos lá...rs)
    Parabéns, Dri!!! Se já te admirava antes, agora então...que orgulho de vc!!!
    Confesso que fiquei curiosa para ver esse trabalho...hehe
    Beijos

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    1. Oi, Dri, muito obrigado pelas palavras! Devo confessar que ficou bem interessante! Mas, se vc quiser realmente conhecer, entre em qualquer unidade do Kumon e pegue os materiais de Língua Pátria, 4A, 3A e 2A! Bjos!

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