sexta-feira, 3 de maio de 2013

DOSTOIEVSKI E A SOPA

Adorava sair às ruas e ver a expressão das pessoas apenas para testar seu poder de observação. Era comum encará-las e tentar desvendar qual dor e qual alegria seria a causa daquele semblante. Nos carros, no metrô ou ônibus, um prato cheio.

E melhor quando conseguia comprovar que estava certo. Como da senhora que regava as plantas todo fim de tarde porque era sozinha e percebeu, semanas depois que a filha estava de volta, várias delas secaram.

Ou quando costumava ver o mesmo rapaz comprando balas porque encontraria a namorada logo depois. Torceu para não ser mau hálito, apenas um capricho.

Tanto tempo observando pessoas porque sempre teve medo de observar a si mesmo. A idade permitia isso, a solidão permitia isso. Aposentou-se há quase 10 anos. Sem filhos nem esposa ou irmãos nem amigos. Decidiu fazer da observação sua melhor companhia.

Desenvolveu um ritual por anos a fio. Levantava-se, fazia o café, lia todo o jornal. Tomava um banho, punha um tênis bem confortável e saía. Muitas vezes um cinema, outras um museu, um parque, um mercado.

Ah, os mercados eram sua atração favorita. Percebia os compulsivos, percebia os solitários. Muitas vezes preferia o mesmo horário e escolhia as personagens e enquanto não comprovasse sua tese, 100% de acertos.

Voltava pra casa sempre às 18h. Tomava outro banho, fazia a sua sopa, devorava-a com torradas ouvindo as notícias do rádio. Assistia a um filme e depois, cama. De domingo a domingo.

Nunca levava o celular, porque queria chegar em casa e ver quantas mensagens não haveria por lá. Mesmo sabendo que alguém não ligaria, fazia parte do seu ritual.

Na agenda do aparelho, o dentista, o cardiologista e os números úteis. Não sofria porque não estava em sua rotina, não se divertia porque não estava em sua rotina. As pessoas, de longe, sim, todas poderiam se encaixar em sua observação.

Talvez tenha sido o livro. A menina não tinha idade para Dostoievski. Aquilo o intrigou. Foram duas voltas e ela continuava por lá. No dia seguinte, ele voltou e a viu novamente. Com o mesmo livro. Conseguiu um recorde de 7 voltas. A menina continuava por lá.

Solidão na adolescência é comum. Mas ela era linda. Um caso de rebeldia foi descartado. Não havia celular a sua volta nem fones de ouvido. Apenas o livro. Sentou-se de longe e a observava. Tentou tudo que pudesse reunir. Nada. Saiu.

Tomou a sopa com a menina, ouviu o rádio com a menina e mal leu as legendas do filme, porque a menina não deixava.

Voltou no dia seguinte. O russo e ela por lá. Outras sete voltas. Talvez daria a oitava, mas foi no início dessa que a menina parou e olhou para ele, que paralisou. Ela sorriu e ele não sabia o que fazer. Ela o convidou para sentar. Ele não saiu do lugar.

Ela se levantou, deixou o livro no banco, pegou-o pela mão e disse:

- Talvez sua sopa hoje saia mais tarde.

Preferiu o silêncio e sorriu de volta. E teve a certeza de que nunca esteve sozinho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário