sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A SÁBIA E SORTUDA ARTE DE SER JUSTO

O atraso para a consulta poderia ser a única preocupação da menina naquela manhã, que pegou escondido o carro do pai e tinha a pressa de seguir com a agenda cheia daquele dia.

Duas voltas no quarteirão e nada de vaga, e o nervosismo falando alto. Até que um espaço apareceu e, na ânsia de pegá-lo, o que acabou pegando foi o retrovisor dela no de outro carro.

Pronto, o espelho dela espatifou-se, já o do cara, além do espelho, todo o retrovisor veio ao chão. O nervosismo deu lugar ao pânico e ao desespero. Como explicar ao pai intransigente que a falta de atenção, porque só ela é a causadora de tudo, disse presente e espalhou cacos de vidro por todo o banco do carona.

A sorte, o pai voltaria de viagem apenas na manhã seguinte. O azar, o que sobrou disso. Mal discutiu com o dono do carro. Abriu a carteira, deu cem reais a ele e o número do celular:

- Se ficar mais caro, me avise, tenho consulta e estou atrasada!

Entrou tremendo no consultório, saiu tremendo dele e cancelou todas as coisas para arrumar o espelho. Na primeira loja especializada, não encontrou o que desejava. Na segunda, havia apenas um modelo similar.

Na terceira, encontrou tudo, mas os 500 reais que ofereceram serviu apenas para comprovar que o preconceito a ele era imenso. A tarde avançava e nada acontecia. Ligou para a fábrica e conseguiria um idêntico, mas para três dias.

Implorou à atendente, que nada pôde fazer, apenas prometeu tentar algo e, se conseguisse, entraria em contato. O modelo 2000 era o xodó do pai, que tinha no carro mais do que carinho, tinha sua própria vida.

Conseguiu com um amigo, um endereço no extremo leste da capital, duas horas até chegar. Chegou e viu que era nada parecido, mas muito igual, as coisas não se parecem quando sabemos a verdade e as coisas são iguais quando não notamos.

E assim, com uma diferença absurda, ainda assim, com um espelho nada similar, ainda assim, ela voltou exausta e resignada. Esperaria pelo pai e contaria tudo pela manhã, assim que ele chegasse. Não jantou, dormiu e não percebeu quando a porta se abriu. Só percebeu quando a porta se fechou, deu um salto da cama e quase se apavorou quando viu que as chaves do carro não estavam lá.

Não era justo. A intenção foi a de falar antes. Não poderia explicar que falaria antes. Seria um sermão e seria naquele momento, quando percebeu, meia hora depois, que o elevador estava de volta e o apito avisava que algo passara pela porta. Era o pai, desolado. Cabisbaixo, ele se sentou no sofá...

- Pai, precisamos conversar, eu...

- Filha... Cheguei antes e iria ao trabalho, mas pela maldita desatenção, eu não me perdoo por isso, estourei o retrovisor do carona na pilastra do estacionamento. Tudo foi pro chão, tudo, não sobrou nada... Ai, que mau agouro. Ficamos eu e o seu Genézio recolhendo do chão os destroços, tudo pro lixo. O mais engraçado foi não termos achado o espelho... Mas diga, filhota, o que você tem pra me dizer...

- Nada não, pai, nada não...

 

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