terça-feira, 7 de novembro de 2017

AS LIÇÕES DE VÔ INÁCIO

Seria um castigo qualquer. Os negros rodeavam o pelourinho como uma proteção estéril, pois suas mãos estavam atadas à vida como a corrente à sua raça, como a liberdade ao impossível. Vô Inácio estava ali, costas marcadas e um capitão a estreitar-lhe os passos com a chibata em riste. Talvez pela idade, pela quase surdez, ignorou uma ordem tola e acabou pela centésima vez sob os cortes iminentes.

Sinhozinho da fazenda perguntou-lhe se ele sabia contar, vozinho disse que não e o homem riu de sua ignorância e ordenou que decorasse as vinte chibatadas, que as contasse alto e que elas recomeçariam caso ele errasse a numeração. E assim, o capataz deu dois passos à frente e desceu forte o couro gasto naquela pele gasta. O barulho seco fez todos darem um passo atrás, enquanto o barão berrava a vô Inácio que contasse, e o velho fora certeiro: 20.

Sinhozinho, o capitão e os demais capatazes riram alto. O barão chegou perto e disse-lhe que a esperteza de sua idade não o fariam acabar. O olhar doce e misericordioso fê-lo recuar, e vozinho explicou que preferia fazer de trás para frente, porque era melhor saber quantas faltavam e não quantas mais viriam.

Intrigado e desconfiado, pediu que o capitão não aliviasse na força e, uma a uma, até a última, vô Inácio, com a voz firme e doce anunciava o fim. As feridas abertas mais uma vez faziam os seus chorarem. As dezenas de filhos e netos clamavam a um Deus poderoso que aliviasse o caminhar daquele preto velho de olhar profundo e doçura nas palavras.

Já imóvel, ele respirou fundo, enquanto os algozes o desamarravam e o levavam de volta à senzala. Pelo caminho, o barão os interpelou e avisou que aquela lição fosse aprendida, pois da próxima vez provavelmente vô Inácio não sairia vivo do castigo.

Vozinho não sorriu por fora, mas havia um sorriso naquele olhar, quando falou que nunca conseguiriam colocar-lhe o ódio no coração, e que, se preciso fosse, o ódio deles talvez um dia se cansaria de bater e ficaria mais gasto que o coro da chibata.

Vô Inácio não resistiu aos ferimentos e foi brilhar no céu, amparado por Deus e por todos os anjos, que lhe saudaram em reverência.

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