sexta-feira, 7 de novembro de 2014

OS CARENTES

O cara adorava aquele carro. Era sua paixão. Mais que gente, mais que a si mesmo, aquele Fusca azul, 1977, com tudo original, representava todos os fetiches, desejos e sonhos do homem.

Não saía com ele, mas todo sábado tinha o ritual da manhã. Ele o lavava e o polia, religiosamente, as 3 horas do dia eram de deleito e de entrega. O amor incondicional. Colocava as fitas K7 de cromo para tocar. Lavava tapetes, aspirava o pó que nunca existia, passava álcool nos vidros, nos bancos, borrifava Gleyde por dentro.

Só depois saía pelo bairro, como recompensa a si mesmo, como troféu a si mesmo. Colocava uns cinco litros de gasolina e o guardava para o ritual da semana que vem.

Nem mesmo o importado japonês tirava o brilho daquela relíquia.

Fato é que um primo do outro lado da cidade, amigão de infância e carente desde então, pedia há meses pela presença do rapaz. Um abraço, um papo etc. Comissário de bordo, eram raras as chances de se verem.

E foi num sábado que a tia ligou chorando, dizendo que o filho estava muito mal e que só a família, o primo, poderia dar um apoio a ele. O problema é que isso o atrasou no trato do Fusca, mas maior ainda foi a mãe endossando o protocolo familiar.

Justamente no dia seguinte à ida do japonês à revisão. O azulzinho restava para que o remorso não falasse alto. A muito custo, decidiu adiar o ritual e seguir com o carro os 20 km que separavam os dois.

Mas, antes, teve de parar para se garantir. Como o carro não tinha seguro e tudo que se ama é natural que se proteja, o primo sorriu a cântaros quando o viu chegando e teve de esperar uns 15 minutos, enquanto ele embalava o carro com plástico bolha, uma dezena de voltas e passava correntes nas portas fechando-as com cadeados de Alcatraz.

Daí sim seria todo ouvidos e abraços. E foi o que aconteceu, ouviu medos, problemas, deu conselhos, adorou o café com o bolo de fubá, riram da infância, foram 4 horas muito agradáveis.

Horas essas que seriam lindas, se não tivesse visto o que viu assim que deixou a porta de entrada. No lugar das rodas, havia pilhas de listas telefônicas velhas. Sim, todas as 4 rodas haviam sido levadas.

Talvez uma retaliação às correntes nas portas.

O sorriso sumiu. A alegria decolou. Melhor não detalhar tudo, problemas em família todos têm. E, com aquele acontecimento, o dono do Fusca soube duas coisas nessa vida: a primeira, que havia uma loja especializada em rodas de Fusca dos anos 70, idênticas; e a segunda, quem precisa de abraço não espera, vai até ele!


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