sexta-feira, 31 de outubro de 2014

(IN)COMPATÍVEL

Não era comum o menino se isolar. Desde pequeno, a mãe sempre o encontrava entre livros e desenhos no quarto, só. Quieto, não brincava porque não gostava de brincar. Era julgado porque apenas não fazia o que todos normalmente fariam.

Não teve amigos na infância, porque não acreditava nas crianças. Principalmente depois que o avô morreu, o pai prometera ninguém deixava esse mundo. E as histórias antes de dormir ficaram apenas nos olhos dele. Não teve mais a mão enrugada para segurar o livro ou a voz rouca pra embalar seu sono.

Cresceu isolado. Boas notas. Sem trabalho nem ruídos. A família mal percebeu a adolescência e não reparou na gravata do primeiro estágio. O silêncio e suas esquisitices de solidão sempre incomodaram pais e irmãos. E como toda família tem lá seu doente, a barata de Kafka, decidiram fingir que ele não existia.

E foi a melhor saída para ambos. “Não se perca nessa vida”, foi o único conselho que a mãe lhe deu. Mal parava em casa. Trabalhava o dia todo e sentava no fundo da sala à noite.

Brilhante funcionário. Estupendo amigo. Irmão bizarro, filho esquisito, sobrinho perdido. Cansou de tentar entender por que nunca se encaixaria com aquelas pessoas.

Aos 23, saiu de casa, alugou uma quitinete perto do trabalho. Comprou um pró-seco, mesmo que não bebesse. E teve a noite mais linda que pôde imaginar. Apagou as luzes, colocou Sinatra no ipod e bebeu vendo as luzes da cidade.

Sentiu-se acompanhado. Amparado por si mesmo, sem fantasmas nem olhos curiosos. Sabia que precisava disso, sempre soube.

Bebeu apenas um copo. Foi até a sacada e teve a certeza de que se morresse naquele instante seria a pessoa mais feliz do mundo.

Abriu OS MENINOS DA RUA PAULO e leu para si, imitando a voz do avô, chorou como nunca, como deveria ter chorado quando ele se foi. Fechou o livro. Enterrou o avô de vez em sua vida.

Seis meses depois, durante o almoço, justamente no dia do seu aniversário, viu o pai e a mãe andando em direção a ele. Não titubeou, ergueu a cabeça e atravessou a calçada. Soube então que realmente o passado ia deixando coisas pelo caminho.

Entrou no restaurante e saboreou o melhor contrafilé com fritas da sua vida. Sorriu. Choraria como criança mais tarde, pela festa surpresa que os amigos fizeram a ele.

E, pela primeira vez, perdeu a hora no dia seguinte.

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário