terça-feira, 30 de setembro de 2014

O PÃO DE QUEIJO

Decididamente aquele não seria um bom dia, porque o sobressalto não pode ser o primeiro a nos saudar.  Teria de acordar às 6h e já eram 7h. Teria de estar a caminho do trabalho, mas era o do banheiro o seu itinerário. “Pros diabos”, pensou. Ao menos uma vez na vida decidiu seguir o seu ritmo. Não atenderia às ligações que viriam em 45 minutos. Deixaria que a natureza a guiasse, pelo menos naquela manhã. Silêncio. Não ligou o rádio nem o TV, quis escutar com calma o barulho do mundo.

Ouviu um pássaro ao fundo e cortou seu canto com a ducha quente. Deliciou-se ao perceber que o impacto da água era mais agudo do lado direito, brincou gingando os ombros num iê-iê-iê inusitado. Desligou a ducha e só se enxugaria quando a última gota pelo ralo fosse. Celular tocou. 45 minutos passaram e ela não havia percebido. 7h45. Deveria estar no café em frente ao trabalho, levando um e dois pães de queijo ao chefe. Sorriu quando se lembrou que eram três, mas que um sempre acabava no caminho.

Parou de sorrir porque percebeu que sua ousadia se limitava a isso, a 5 pães de queijo na semana. Pela conta rápida, viu que seu atrevimento ficava a 20 pães de queijo no mês. Deveria ter ganhado medidas, mas nem isso conseguiu para si. Celular tocando. Não haveria mais pães de queijo, decidiu. Abriu sua conta poupança e viu que os 5 mil reais que conseguira juntar em um ano eram quase um grito de liberdade.

Percebeu que os poucos mais dos 1.500 mensais não valeriam a pena, ainda que só tivesse o ensino médio. Duas férias vencidas, se saísse hoje teria uns 3 mil reais, mas os 5 mil e os 300, conseguiria se manter por 6 meses. Ah, seriam dias ótimos. Não haveria mais pães de queijo pela manhã. O celular tocou pela segunda vez. Dessa vez a mãe o trouxe na porta com “está tudo bem, filha?”. Deve ter respondido que sim. Não se atentou a isso, porque agora isso não era importante.

Pegou o celular, deu um beijo na mãe e um abraço. Ignorou a terceira ligação, 8h05, e entrou num site de viagens. 3 mil reais por uma semana na Europa. Voltou a sorrir. Colocou a roupa mais confortável que tinha. Ignorou a quarta ligação e foi para o café. A atendente estranhou as quase duas horas de atraso, mesmo assim, separou os 3 pães de queijo e o café.

Entrou com bons-dias a todos. Bateu à porta da sala do chefe. Respondeu com um sorriso ao sincero “tudo bem com você?”. Colocou a encomenda sobre a mesa e sua carta de demissão.


Percebeu que valia mais que um pão de queijo por dia. Decidiu viver uma semana como nunca havia vivido. Não quis saber o que seria dela nos outros dias nem as explicações que teria de dar à mãe. Precisava se abastecer de si mesma, de outros lugares, de outros cafés, da vida. Não ficou por lá. Saiu feliz para fechar a viagem e a autossabotagem, só que dessa vez eram 3 pães de queijo que estavam em suas mãos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário