quarta-feira, 3 de setembro de 2014

AMÉM

Marina nasceu menina e pobre numa cidade escondida na curva. Caçula entre os 3, talvez nada lhe sobrara além de fome e o vazio de tudo. Amor era como arroz, vez ou outra, porque de barriga cheia se ama até o que não existe. Cresceu entre migalhas e o talento dos olhos verdes.

A família católica seguia pra igreja quase todos os dias mais para esmolar do que para as preces. Ainda que soubessem que era pedindo a Deus que os trocados viriam, os pais viram nos olhos da menina a chance de conseguir até carne. E foi a aposta certeira.

A criança parece ter entendido desde sempre que não precisaria abrir a boca para pedir, só para comer, porque os olhos iluminados chamavam a atenção de todos, saberia então, anos depois, que as palavras apenas entrariam por seus ouvidos e morreriam em seu estômago. E foi assim que ganhavam fama e comida. Raro o tempo que faltava algo, mais raro ainda os momentos de geladeira vazia.

Nos olhos da menina estava o emprego do pai, que vivia auxiliando um escritório contábil. Assim como a mãe, que fazia entregas da farmácia pela região. O mais velho, já com 14, carregava saco de arroz num armazém qualquer, e o do meio ficava apenas com a pequena na porta da igreja como complemento de renda.

Assim como o vento, os anos voam, e agora, Marina, com 9, estava mais luminosa ainda. Raras as vezes de aparecer na igreja, porque o pai já ganhava o suficiente para o mais velho, já no segundo ano de faculdade na capital, dividir as despesas de lá. O do meio acabava o ensino médio, quando a porta bateu.

Era o padre, amigo e homem do bem. Fora quem viabilizara as esmolas, eram eternamente grato a ele. Talvez tenha sido durante o café, depois do primeiro pedaço do bolo, que ele fez a proposta de iniciar Marina. Os chamados de Deus viriam, e a pureza daqueles olhos vívidos estariam seguros no colégio interno e, posteriormente, uma vida pura como freira.

A menina ficaria sob a tutela do velho, que prometeu costurar a virgindade dela, fosse com terço, fosse com hábito. Os pais gostaram, Marina não tinha o que desgostar. Acostumou-se a não falar, porque jamais falaria na vida e porque já tinha seus olhos que poderia berrar por si.

Foi numa manhã de julho que o padre bateu de novo, dessa vez sem café nem bolo, e levou a menina com sua mala, batendo mais do que nos batentes, batia e acenava aos pais, orgulhosos de uma filha santa. Ventava muito, quando sentou no colo do padre. Mas o carro partiu rápido, deixando o frio pra trás.

Semanas depois, a porta bateu. Mais uma vez, não haveria café nem bolo, era uma freira que trazia a menina pelas mãos. Os olhos não eram mais verdes como antes, a mala parecia intacta. Os pais se assustaram e choraram pela morte do padre, há 4 dias. Sentiram que a tristeza da filha era evidente. A freira preferiu imitar Marina, não fosse pela notícia do enterro.

Recusou o café, a água e recusaria o que viesse. Apenas queria se livrar de tudo, inclusive da menina, que parecia dopada. Se houvesse palavras na boca de Marina, elas provavelmente seriam de gratidão. Pena o velho ter tido um enfarto na terceira sessão, ele realmente lhe havia costurado a virgindade, ainda que não fosse com o terço, porém, ao menos, foi com o hábito.



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