terça-feira, 26 de agosto de 2014

ADOÇANDO A VIDA

Lembrou no meio do congestionamento que havia uma bala para enganar a fome. Aproveitou que não andava há um minuto e decidiu buscá-la no porta-luvas. Retirou o que nem imaginava que fosse encontrar e avistou o celofane colorido à esquerda. Assim que o pegou, a buzina soou. Sim, quem fica preso no tráfego lento, bastam uns metros para um convite a acelerar.

Foi o que fez, decidiu fazer tudo ao mesmo tempo. Percebeu que a tarefa de pegar a última bala – já que as outras 14 já tinham passado por outras avenidas – não seria lá fácil, porque teria de desdobrar o papel torcido e aproveitar os metros que ganhava de presente naquele início de noite.

Usou a boca para desdobrar o papel, e o cheiro doce já acalmava os nervos, tapear a fome com saliva não seria algo bom, ao menos a sensação crocante entre os dentes valeria por uns 20 minutos. Não estava tendo o êxito esperado, decidiu então partir o papel com os dentes.

Conseguiu, levou a mão com a bala até a marcha e, num gesto involuntário, apertou a base do papel, que cuspiu a última bala para baixo de algum dos bancos. Impropérios ao ar reverberam por ali aumentando ainda mais o desespero. E daí começou a busca pela sobrevivência.

Começou a tatear desesperado ao redor dos bancos. Primeiro o do carona depois o próprio. Nada. E o trânsito miraculosa ou irritantemente não cedeu. Não parou. Impossível aquilo. Uma sexta-feira véspera de feriado e nada de o congestionamento reaparecer.

Um sinal vermelho que fosse ao menos daria tempo de ele se soltar do cinto e achar a guloseima de iogurte de frutas vermelhas. Nada. Quando engatou a quinta, já babava pela bala. Estava ainda com o pedaço de papel na boca, que servia de couver à saciedade iminente e momentânea.

Pista liberada, não percebeu que estava andando há quase dez minutos. E somente a bala lhe bloqueava o caminho. Trouxe o papel para mais junto do nariz, pra ver se ao menos a fome passava ou a vontade do doce cedia. Cheirou o aroma cítrico, mas nada da bala, apenas a pista livre, a fome e a vontade da bala.

Quando percebeu, em mais dez minutos, estava no seu bairro e sentiu que a fome cederia, porque, em pouco tempo, estacionaria em casa. Talvez tenha sido pelo instinto, talvez tenha somente sido pelo instinto, saiu do carro e correu pra cozinha, uma bolacha de água e sal que fosse bastaria para sufocar a sofreguidão e sufocou.

Foi ao banho e parece que teve um jantar maravilhoso, ainda que fosse nada especial, mas, como o melhor tempero é a fome, viu estrelas e gargalhou com a esposa, contando que subiu as escadas com duas bolachas na mão e as mastigava ainda enquanto tomava banho.

No dia seguinte, quando decidiram sair para o cinema, abriu a porta do carona para a esposa entrar e viu o que era para ser sua há 24 horas. Estava lá, intacta, reluzente, rosa e ainda cheirosa. Não se foge do destino quando o destino diz amém. Num gesto instintivo, se pôs à frente da mulher e não pôde repartir com a esposa o que deveria ser seu por direito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário