quarta-feira, 25 de junho de 2014

AS APARÊNCIAS ENGANAM

Misteriosa aquela dentista. Linda, inteligente. Foi a mãe dele que sugeriu um tratamento porque amaria uma nora daquele jeito. Pouco se sabia de sua vida, mas que era solteira e sem compromisso bastou para que o filho entrasse.

Marcou a consulta. Ele simpático e ela, o exato cessar do motorzinho. Quando a razão materna fala mais alto que a emoção, o marketing é perfeito. E foi. Na consulta seguinte e nas demais, já agendavam o último horário, porque o papo fluía de uma maneira bem mais solta.

Ele começou a passar o dia com aquele sorriso. Ela começou a passar o dia com aquela boca. Não perceberam, mas estavam cada qual com seus pensamentos em perfeita sintonia.

Decidiu se arriscar e mandou flores, com um cartão: “Até meu coração aprendeu a sorrir depois que conheci você”. Pronto, era o abre-alas ao furor da vida. Finalmente alguém que valesse a pena, finalmente alguém compatível.

Tentou algo original, uma caminhada no parque do Ibirapuera. O clima primaveril e um jantar depois de tudo a encantou. Vivaldi ao fundo.

A doutora desmarcou todos os clientes daquela manhã. Teve de comprar às pressas roupas de caminhada e um tênis novo, mesmo que lhe custassem algumas bolhas, haveria agora alguém para soprar se caso estourassem.

Antes de sair, ele se olhou no espelho, escolheu pela camiseta e bermuda pretas, porque motivos que todos entendem. Arrancou um filete de borracha do surrado tênis, que até parecia novo, depois do esforço que fez com o pano úmido e o detergente.

Separou algumas músicas no mp3. Olhou para o céu, sem nuvens, 21 graus, clima perfeito para se apaixonar e dar um primeiro beijo. Chegou a sangrar a gengiva com tantas voltas com o fio dental.

Sorriso de modelo, corpo de escritório e barba feita. Sorriso de dentista, corpo de atleta e rabo de cavalo.

Em 20 minutos, ele apontava à rua, tenso e cauteloso, procurando pelo 645. E ela a viu. Não podia ser, estava na porta, com duas crianças no colo.

Não podia ser.

A mãe, mesmo que soubesse nada além que a moça era descompromissada, não detalhou filhos. Claro, estava claro. A dentista nunca revelaria, ninguém é linda, e ela era à toa, sem algo para, digamos, atravancar o processo.

E claro que ela nunca mencionaria as duas. Um beijo, um envolvimento e “seguem anexas duas crianças e uma família toda”. Foi cruel. Um calor do inferno e um medo repentinos  lhe subiram a garganta e lhe invadiram a alma.

Não pensou duas vezes, acelerou e sumiu. A ela coube passar o sábado com a irmã e as sobrinhas.

  



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