quinta-feira, 5 de junho de 2014

AS PORTAS

Acordou num sobressalto, de repente não era mais o lugar onde acordava, estava no chão, num corredor longo com várias portas abertas, das quais ventos e palavras sopravam. Reconheceu-se em todas elas, jurava ser sonho, mas não despertou. Não havia outra coisa a ser feita, senão andar e espiar.

Parou em frente à primeira porta e viu que a única surra que tomou do pai estava prestes a acontecer. Não queria ter quebrado o vaso com a bola, confiava na própria habilidade, mesmo ouvindo os conselhos do velho. Quando se viu aparecendo na sala, não titubeou, entrou nela e falou ao garoto pra sair. Atônito, o menino correu, e o vaso, minutos depois, continuaria intacto.

Saiu atordoado com a situação e percebeu que havia acontecido, sim, conseguiu evitar uma angústia que trazia no peito desde os 9 anos. Não apanhou do pai e o perdão surgiu imediatamente. Saiu e fechou aquela porta.

Caminhou até a segunda porta, reconheceu imediatamente aquela situação. Viu que os assaltantes estavam atrás dele, o tênis novo era o chamariz principal a isso. Se tivesse entrado no ônibus lotado e não resolvido testar a maciez do calçado, talvez eles não o teriam roubado. E foi o que fez, apareceu e avisou a si mesmo pra invadir o coletivo mesmo assim. E os dois ficaram observando o ônibus sumir. Saiu e fechou aquela porta.

Sorriu, adorou o jogo e percebeu que poderia fechar todas as restantes. Na próxima, viu-se no acidente que mataria o amigo de infância, a bebedeira e a adrenalina da noite não o fizeram parar no farol vermelho. Entrou rapidamente na sala e se pôs na frente do carro, que quase o atropelou, mas, ainda que bêbado, ele se viu e ficou incrédulo, a jamanta passou a toda e o carro seguiu manso quando o verde surgiu. Ambos sorriram. Ele saiu e fechou aquela porta.

Mais à frente, percebeu que brigaria com a esposa por causa da desconfiança boba dele. Soube que seria pontual, o início do fim de tudo. Lembrou-se da depressão por que passou. Entrou e avisou a si mesmo para beijá-la antes de falar algo ao soltar a xícara de café. E assim, calou a moça com um beijo longo. Ele saiu e fechou aquela porta.

Quando percebeu, todas estavam fechadas, sim, os traumas - as sensações de perda, de angústia - estavam cerradas para sempre. Mal conseguia se conter de alegria, sim, resolvera tudo de forma bizarra. Sorriu até sentir aquele frio, que o incomodava de modo incessante. Foi então que despertou. Dormir de janela aberta pode muitas vezes ter esses imprevistos. Como não haveria quem o fizesse por si, ele se levantou e fechou aquela janela.

3 comentários:

  1. Professor, seu texto é uma boa metáfora de que, quando uma porta se abre, nunca se sabe o que vai passar por ela, pode ser uma angústia, um medo, uma decepção. E realmente, quando uma porta se fecha,indica o fim de um processo e quiçá, o começo de outro. Assim é a vida.Um abraço! LÍVIA

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  2. Que assim seja sempre, e, pelo caminho, vamos aprendendo, perdoando... Abraço e obrigado, Livia!

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