terça-feira, 8 de abril de 2014

QUEM TIVER OUVIDOS...

Era dessas religiões católicas ferrenhas, uma linha ortodoxa cascuda, daquelas que jejuam na quaresma e sangram na Sexta da Paixão. O rapaz cresceu vendo isso e achava natural tudo aquilo.

Rezava todas as noites com os pais, tinha o terço no pulso. Não se incomodava de não pensar, amar Cristo era o maior dos amores mesmo que não soubesse por quê. Cresceu com a missão de amar, e decidiu amar a qualquer jeito, mesmo que não soubesse se era genuíno. Viu-se líder nato.

Aceitou a liderança imposta. Aceitou tanto que em algum momento pelo caminho, tornou-se líder de todos, menos de si mesmo. Se Cristo largou de Si, por que não ele?
 
E havia a estreia daquela peça, um musical que sugeria um relacionamento mais do que afetivo entre Jesus Cristo e Maria Madalena. A comunidade ecumênica do jovem se indignou e sugeriu um protesto pacífico em todas as apresentações.

De preto e com um capuz tampando os rostos, ficavam entre o público nas bilheterias entoando hinos católicos, rezando ave-marias e pais-nossos fervorosamente, entre discursos moralistas.

Um grupo de 50 pessoas estava por lá, uns tocando flautas, outros trombones, bumbos, até uma gaita de fole soprava por ali. As palavras de amor a Cristo de respeito ao Nazareno iam de encontro à proposta amena e despretensiosa do musical.

Não houve que os criticasse, não houve quem os apoiasse, havia apenas uma democracia contida e pacífica, liderada também pelo rapaz, que também sugeriu encerrar a manifestação 15 minutos antes, porque haveria ninguém mais por lá, e o líder se fazia presente mais uma vez.

E assim, por 1h30, ficavam diante do teatro mostrando toda a indignação, todo o inconformismo e, sabe-se lá por quê, toda a revolta ante a manifestação da arte.

Quando os primeiros acordes da peça começavam, o grupo não mais estava lá. Cada qual seguia seu caminho, uns de metrô, outros de ônibus. Iam pra casa com a sensação do dever cumprido. Em paz com o Senhor, em paz com sua religião, em paz com sua consciência.

Uns dormiam já, outros rezavam uma novena, alguns liam a Bíblia. E ainda havia quem preferisse tocar naquele musical. E dava pra ver seu talento, único, magistral. Um piano ímpar, colossal, que liderava as palmas e a arte daquela peça. Quando se é líder, seja o ambiente que for, se é líder em qualquer ambiente, porque, em algum momento também, decidiu ouvir a si mesmo.

 


 

 

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