quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NOITE DE PAZ

Não caberia aqui o clichê do Natal, mas não pude evitar em contar uma história que aconteceu por esses dias de dezembro. Não era Maria, entretanto estava grávida e prestes a ser mãe. Não era José nem carpinteiro, porém perambulava com a esposa, ou sei lá se fossem casados - porque viviam na rua - de um canto a outro. Sujos e sem banho há dias, ela temia parir naqueles dias, tudo ficaria mais difícil, se é que isso era possível.

Ele não, desejava ser pai num 25 de dezembro, "traria sorte, porque Deus abençoa quem nasce nesse dia e a nossa sorte mudaria", vivia dizendo enquanto revirava os lixos. Ela sonhava com um banho ao menos e pensava em como alimentar a criança depois que o seu leite - sabe-se lá em quais condições -  acabasse. 

E naquele 24 de dezembro, as ruas pareciam mais vazias e mais frias. Havia chovido, o que piorava as condições do lixo. Por sorte, passaram perto do bar cujo dono vivia a dar-lhes comida e o que viesse. E veio mais do que esfihas. Veio um panetone, dois torrones e até uma sidra. Eles sorriram e preferiram ficar embaixo de uma árvore pincelada por luzinhas. Decidiram que tinham a maior árvore de natal da cidade e por lá fariam sua ceia.

Rezaram porque era uma noite especial. Ficaram em silêncio, não se podia ouvir os pensamentos deles, mas parece que ela pediu um banho e ele mais sorte nessa vida, ainda que fosse injusto desdenhar daquele Bauducco, porém vivia imprecando contra a má sorte da vida. Nessa hora, um cachorro apareceu e salivou ante a qualquer coisa, que foi dividida.

A garoa cessou "Estamos com sorte", disse o rapaz tentando abrir a sidra. Ouviu-se um canto numa casa, embalavam qualquer melodia natalina. Desconheciam a letra, mas sabiam a melodia. Ele abriu a sidra e deixou que ela bebesse, ao menos um gole para celebrar aquela noite. Ela aceitou com a condição de ser apenas um. Havia ainda 4 esfihas para o dia seguinte, mas o panetone havia acabado e o cachorro se encarregava de raspar o papelão e tudo que estivesse por ali.

Ele dormiu, ela não, o cachorro sentou-se perto dela. Ela o acariciou e ele lambeu sua mão. Talvez pelo cheiro da carne, talvez pelo afeto, que diferença faria isso agora? Então ele pôs a cabeça nas pernas dela e dormiu. Ela sorriu e chorou. Odiava estar suja, odiava estar grávida porque odiaria parir outro mendigo. Perdeu as contas de quantas vezes pediu para o bebê morrer. Deus não a escutava há anos, por que agora?

Chorou porque se sentia injustiçada e não podia lutar contra tudo tendo de cuidar de alguém mais desprotegido ainda. Chorou por tudo e por saber que, ao sentir aquela dor, aquelas contrações, que o filho viria naquele instante. Berrou. O rapaz acordou num sobressalto já assustado, sabendo que era o momento de ter sorte. 

"Jesus, vamos chamar ele de Jesus", antes mesmo de prestar a primeira ajuda. Ela berrou de novo, o cachorro se assustou e ficou em pé, sem saber o que fazer. Sabia que tinha de parir ali, no meio da rua, com aquelas luzes a piscar agora. Sim. Um viatura policial, que parou e logo dois desceram ainda mais desesperados. Não nos cabe saber os procedimentos, porém a dupla ajudou muito e conseguiram trazer a criança ao mundo.

Não houve mais choro, não houve coisa alguma, o rapaz ficou mudo, o cachorro estava atrás da árvore, os policiais ficaram quietos e a mãe não balbuciou coisa alguma. Se era pra ser Jesus, ele viera com a missão cumprida, já com a vida completa, pois naquela noite nascia morto e talvez não ressuscitaria no terceiro dia.

Os rapazes não puderam falar. O pai jogou a imprecação de novo aos céus e a moça sorria por saber que, pelo menos uma vez, Deus poderia ter escutado suas preces, que naquela noite especial poderia haver uma ponta de esperança em seus pedidos...


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