terça-feira, 5 de janeiro de 2016

POBREZA DE ESPÍRITO

Se miséria existisse, viveria naquela cidade, que mais se parecia com um vilarejo dentro de uma província fincada no nada. Não havia moscas porque não havia carcaças, as mais concorridas da região.

Água, nem de chuva nem do homem. Comia-se o que dava, porque o que mais se fazia por ali era dar. E como se dá o nada? Dividia-se um vazio no prato e um buraco no estômago, mas a fartura no peito transbordava.

Comida nem no imaginário, não se pode ter imaginação sem oxigênio na mente, e o pouco que aparecia durante o sono era logo consumido pelos sonhos. E como se rezava por ali, cantos, orações e terços para um milagre acontecer. E se milagre pode ter outro nome, uma ONG os revelara.

Era um domingo, e não chovia quando aquele caminhão levantou poeira. Outros carros o seguiam. Os olhos fundos nem pensaram, apenas olhavam e não criam. Pessoas lindas, cabelos limpos e cheirosos. E de dentro daquele monstro começaram a sair coisas.

Saíam sacos, saíam garrafas, saíam produtos de limpezas e comida, muita comida. Os quase 300 habitantes não podiam sorrir ou chorar, muita complexidade para tudo aquilo. Só faziam esticar os mirrados pulsos e tentar segurar tanta coisa.

Logo as casas estavam abastecidas, as crianças enfim dormiam pela barriga cheia e não para esquecê-la. E quando pensavam que tudo tinha acabado e que poderiam enfim chorar ou agradecer. Apareceu um TV. Sim, eles já tinham escutado algo a respeito, e agora comprovaram que pessoas e a vida poderiam caber ali.

Reuniram-se em volta para ver qualquer coisa que pudesse e sorriram várias vezes, tocaram a tela outras mais. E por instantes se calaram e ficaram atentos. Não podiam crer que se podia pegar dinheiro de avião sendo atirado ao ar. Sim. Havia um bom homem que fazia isso, linda voz, diriam. E viam que existiam muitos como eles, desesperados atrás de uma nota ao menos.

Então, um grupo se reuniu, uns 10 ou menos. Levantou-se e cada qual foi até seu casebre. Acostumados a dividir, pegaram algo de dentro. Colocaram perto do caminhão, fazendo todos prometerem que ajudassem os coitados que se matavam pelo dinheiro.

Não era justo apenas eles serem agraciados se outros mais também - miseráveis como eles - careciam de atenção. O TV ficou, acabaria muito mais tarde que todos os provimentos, mas tão leve quanto os corpos dos de lá estava a consciência de cada um deles.

Era abril e fazia 33 graus às 21h.

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