terça-feira, 3 de março de 2015

REI LEÔNIDAS E O SORVETE NAPOLITANO

Por um desses mistérios da vida, o pai nunca o deixou tomar sorvete antes do almoço. Certa vez justificou dizendo que havia hora para os alimentos e que o doce só poderia ser consumido depois das 13h. Quase salivou feio, ao ver o vizinho, às 10h da manhã saboreando um de chocolate. Não aceitou um pedaço, porque sorvete não se divide, queria um inteiro para si.

Por obras do destino, o pai passou naquele mesmo instante vindo da farmácia e sorriu cumprimentando o garoto, que também ofereceu a ele, que recusou e emendou dizendo que aquela hora não era hora de sorvete. O porquê do menino teve a mesma justificativa do horário. E ambos ficaram nas dúvidas, porém o sedento preferiria ter uma companhia doce para as interrogações.

E ali ficou, emparelhado às lambidas do amigo e às interrogações e vontade. O sorvete acabou, a conversa também, entretanto agora seria uma questão de honra, desvendar por que não se podia tomar sorvete antes do almoço. Pesquisou no google, nada. Perguntou ao avô, porque não eram os mais velhos mais sábios? Nada.Talvez fosse uma superstição. Pesquisou a palavra primeiro e teve certeza de que alguma espécie de maldição pudesse ocorrer.

Semanas depois, quer por destino, por acaso ou por nada, o pai aparece entre as compras do mês com dois potes de sorvete. O menino viu e ficou atento. Seria uma provação? Seria um teste do pai? Seria aquilo alguma forma de evolução?

Fato é que o menino não tirava da cabeça aqueles dois potes. Poderia abrir quando quisesse, mas sabia que seria mais saboroso se consumido antes das 13h. Passou dias indo pra escola com a cabeça no freezer de casa. Justamente no horário da aula.

Talvez tenha sido na aula de História, quando aprendeu sobre a dedicação dos espartanos com a guerra e com o que acreditavam. E, naquele momento, decidiu assumir o papel de Leônidas e encarar o desafio. Sim. Num plano mirabolante, traçou a ação. Esperaria o momento entre a volta da missa e as preparações do almoço e abriria o napolitano, três sabores numa tacada só.

E naquele domingo mal comeu o chapeado, estava tenso. O paradigma seria quebrado e sentiu-se quebrando o sistema, mesmo que apenas quisesse adoçar a boca e a curiosidade. Passou 1h30 rezando durante a missa, pedindo forças e sorte para agir. 

Voltaram e o olhar vidrado estava prestes a agir. O pai e a mãe subiram para se trocar. O avô sentou na cadeira de couro e o espartano rumou à cozinha. Teria de ser rápido. Abriu o freezer, munido de uma concha. Precisaria de uma bola só. Pegou o sorvete, abriu-o e lentamente penetrou a concha de modo cirúrgico. Teve o cuidado de ficar atento aos passos e vozes no andar de cima e de pegar os três sabores numa fatiada só.

Conseguiu. Sorriu. Guardou o sorvete e correu para os fundos da casa. Que importa a violação precoce? Que importa ser descoberto? Nunca quis um crime perfeito, quis apenas o crime em si. Não conseguiu distinguir entre a vitória, a ousadia ou os sabores doces, mas teve a certeza de que, a cada lambida, a cada saborear, a medalha de ouro e o primeiro lugar estavam com ele.

Deve ter demorado por volta de 5 minutos entre o início do plano e a última lambida. Quando chegou à cozinha, um burburinho desencadeou o caos naquele domingo. Não se sabe a causa, que importava isso agora? Fato é que estava ainda com o canto da boca melado de creme enquanto o avô morria sentado, quase dormindo.

Não creu que ele o matara. Não creu que a superstição realmente existisse, sabia que nada fez de errado. Teve a certeza disso, porque, durante o velório da manhã quente daquela segunda-feira, perdeu a conta de quantos familiares estavam com um picolé nas mãos antes das 13h e ainda, como prêmio, ganhou da madrinha uma latinha de coca-cola com seu nome.

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