Todos
temos uma via crucis e uma cruz a
carregar. O pior é quando nos dispomos a carregar a cruz alheia e percebemos
que interromper a dor dos terceiros é triplicar a própria. Tudo o que é novo
representa uma possibilidade. Diria minha avó que as meninas de ouro estão na
igreja, nas missas.
Semana
Santa em Ouro Preto. Sabe-se lá o que um cara nada devoto vai fazer num feriado
santo em uma cidade cujas características pedem qualquer celebração mais
efusiva. Aliás, Ouro Preto é uma das cidades mais bipolares do Brasil. Se
pegarmos o carnaval e a Semana Santa, não podemos dizer que são a mesma cidade.
Uma espécie de pecado e arrependimento. Enfim, ele foi com um amigo, cuja
família de ascendência portuguesa mantinha uma casa na região.
Talvez
a conveniência do barato o levasse até lá. Chegaram na quinta, e foram à missa
do Lava-pés. E debruçados estavam no jogral católico, quando ele percebeu um
perfume de rosas. Estava ao lado da avó, mas quem pensaria que sempre numa flor
existem espinhos. Troca de olhares, e depois da missa, a aproximação.
O
pão era tão bom quanto os beijos da neta. Santa semana e santo convite. Bem que
queriam, mas a carne proibida. Valeria a pena esperar até domingo. Procissão na
sexta, outra missa no sábado e antes do almoço de páscoa, a carne estaria
consumida.
E
lá estavam na ladeira. A bigoduda sorrindo, o andor na frente, a neta com um
véu no rosto e ele com o terço nas mãos, pedindo para sábado chegar. Caminhada
longa, uma longa e doce jornada, tudo por uma carne desejada. Cânticos, tapetes
com serragens, torça de olhares, línguas obscenas a procura da outra e uma
torção.
Sim,
a portuguesa torceu o pé numa das pedras mal-formadas das ruas centenárias da
cidade. E cabe a pergunta: quantas torções acontecem no carnaval? Nenhuma. E
quem torce o pé numa procissão? E quem pediria para carregar a velha? Sim, a
neta, desejosa do prazer, e ele, inebriado pela dor da senhora, se predispôs ao
ato.
Magrinha,
mas não há 50 quilos que não pesem durante a subida. Dizem que a cruz de Cristo
pesava mais de 70, entretanto com certeza, ela não reclamava do calor, não
fedia a naftalina, não pedia água. Poxa, nem Cristo pediu água, por que ela,
que estava sendo carregada, pediria?
O
rapaz, num calor dos infernos em pleno abril, não blasfemou, mas amava a cada
estação em que Cristo caía, porque a procissão parava e ele despejava a senhora
no chão. Sabe-se lá quais forças tiravam o Nazareno do chão, mas as forças que
faziam o rapaz levantar aquele saco de buço ficava a metros de lá.
E
os cânticos, como lamúrios sôfregos, num tom que nem os cães suportariam, ali,
no ouvido dele, sem falar nos perdigotos diretos ao ouvido do rapaz. Quantas
estações mais? Todos conhecem o efeito da cerveja num homem, aqui ocorria o
oposto, a cada parada e todos os impropérios e escárnios a que estava exposto,
a língua da menina foi se putrefazendo, os olhos não eram mais os mesmos e a
carne já parecia como a de um leproso.
Mais
uma e outra agora. A visão turva, o cheiro inebriante, o anjo virando o capeta,
e capeta virou quando entre uma entoação e outra a velha arrotou aquele bafo de
feijão no pescoço do rapaz. E antes que chegasse a próxima estação, ele a
largou ali mesmo.
Sob
os olhares incrédulos de todos, assim como os da neta. Ele se colocou à vontade
de Jesus, largou sua cruz pelo caminho e deixou sua sina para trás, à própria
sorte, soltando mais do que imprecações, soltou aquela bigoduda nas pedras. E
se haviam de crucificar Cristo naquele dia, que colocassem mais uma cruz e que
não houvesse ressurreição à velha no terceiro dia. A carne no domingo? Naquela
sexta mesmo, virou um belo sanduíche de calabresa.
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