terça-feira, 2 de agosto de 2016

BASTIÃO, O TAXISTA SUINGUEIRO


Bastião era taxista. E, naquela tarde de segunda-feira, um casal animado entraria em seu carro rumo a um destino inusitado: “Ao motel mais próximo, por favor”. Tudo bem que ruas, alamedas e avenidas faziam parte de seu itinerário diariamente, mas os locais que as margeavam não lhe eram de domínio.


A sinceridade falou mais alto e disse que o que conhecia  ficava a 15 km de lá, cujo dono, compadre de anos, sempre recomendou para que o taxista e a esposa aparecessem por lá. “Sem problemas”. O tesão faz isso, ele concordou. Com o trânsito pouco lento, 50 reais de corrida seriam bem-vindos, porém a pouca castidade e exibição no banco traseiro foram mais convidativas.

Pisou fundo e, em exatos 30 minutos – longos, por sinal, a Fonte dos Prazeres aparecia linda na frente de ambos. Ele parou na recepção, teve de intermediar a suíte, piscou para a menina - filha do amigo - passou os documentos, levou-os até o 45 e saiu. 

O trajeto de volta serviu como sorriso. Aquilo seria uma história e tanto para amigos. 40 minutos depois, estava de volta ao ponto, mal estacionou e uma outra mulher entrou esbaforida em seu carro, dizendo: “O senhor acabou de levar um casal há pouco, não?”

A descrição era exata do rapaz.

- Ele é meu marido! Quero saber aonde o senhor os levou e me leve até lá, agora!

Poucos segundos separaram o não do sim. 300 reais estavam em suas mãos antes de sair em disparada. A moça chorava copiosamente. Bastião, com anos de prática, pelo caminho tentou acalmá-la. Disse que abriria mão da corrida pela paz dela. Mas a moça estava irredutível.

1 hora depois, chegavam ao local. Teve de escolher um quarto, deixou ambas identidades na recepção – piscou de novo para a menina - e teve de parar em frente ao 45. Rezando para que ela sumisse dali e ele também. Daí então, mais 300 reais apareceram na sua mão: “Espere aqui, por favor, não demoro”.

600 reais valeriam aquele constrangimento? Sim, com certeza. Tentou fazer o papel de expectador. Em 25 minutos, não se sabe como, ambos saíram de lá. Sim, o casal no papel. E pior, entre sorrisos e afagos. Como assim???

Saíram os três e deixaram a moça lá. Quase uma hora depois, deixava os dois no apartamento. Durante o caminho, ele teve de se segurar para perguntar o porquê daquilo tudo. E a moça, coitada? Ficou lá. Sem casal, sem carona, nada. Para endossar a cumplicidade, mais 400 reais apareceram na suas mãos.

Três corridas por 1050 reais? Mas isso não comprou a paz dele. Antes mesmo de pensar, voltou ao motel. E, qual não foi sua surpresa, ao ver a esposa lá, parada em frente ao local. A filha, que contou pro pai, que contou pra esposa, que bateu as notícias para a comadre. 

As notícias correm rápido, quem explicaria um suingue do sonso Bastião com pessoas descoladas. A moça largada já havia ido embora.

E tudo acabou bem, porque os mais de mil reais serviram para comprar a paz da esposa, que exigiu um jantar romântico no melhor restaurante da cidade e toda uma produção a isso. A noite terminou muito linda e fogosa. Claro, no motel Fonte dos Prazeres, cortesia do compadre, mas não na suíte 45, que estava ocupada no momento.

terça-feira, 26 de julho de 2016

AS CHAVES DO MENDIGO

Era mania dele, não era comum ver um mendigo com uma caixa imensa forrada de chaves. Sim, todos os formatos, todas as cores e tamanhos. Além dos 4 cães, dividia sua pousada com elas. Não tinha lá grandes aspirações, conseguia comida aos amigos, o que sobrava, ele se fartava, e vivia à base de água, bolachas e chaves.

Pelo bairro e transeuntes rotineiros, aquela caixa de madeira forrada de objetos pontiagudos era no mínimo inusitado. Ninguém nunca o fez, mas a vontade de indagá-lo sobre a coleção dominava o clichê das mentes que por lá percebiam a coleção.

Começou a se tornar comum, que, em vez de esmolas, as pessoas passassem a dar-lhe chaves. Sim, inúmeras delas. Em alguns meses, ele já colecionava duas caixas imensas. Todos conheciam o rapaz, que devolvia com um sorriso careca e um “Deus te abençoe” a todos que o entregavam mais uma para a coleção.

Até que um dia, uma boa samaritana, passou e deixou a ele, em vez de uma chave, um bolo inteiro. Ele, como de costume, sorriu e entregou uma chave a ela, que meneou a cabeça e antes que perguntasse, ele respondeu: “Para abrir outra porta, como você abriu agora”.

O dono do açougue, que sempre acompanhou o mendigo presenciou a cena e ficou rubro de vergonha. E começou a espalhar a todos o que havia acontecido. E a notícia, por todos do bairro, se alastrou como uma epidemia.

Foram incontáveis sorrisos, começou a haver estoque de bolachas, água e, dia a dia, a duas caixas de chaves foram desaparecendo, foram sumindo por completo.

E no fim daquele mês, já com as duas caixas vazias, com um estoque para meses e mais meses, maiores que as duas caixas de chaves, ele decidiu sumir de lá. Nunca mais fora visto nas imediações.

Saber enxergar quais são as necessidades que cada pessoa careça é um dom, mas de uma coisa o mendigo sabia muito mais que os outros, que um sorriso pode abrir muito mais portas que todas as chaves desse mundo.

Os 4 cães adoram bolacha de água e sal.

terça-feira, 19 de julho de 2016

COM QUE ROUPA EU VOU?


Eva no divã, porque não tinha um closet nem amigas para exibi-lo. Não entram aqui os acessórios, que acabam se tornando roupas também, como bolsas, sapatos, cintas, colares, anéis etc. Para nós, homens, as roupas se resumem a calças, camisetas, bermudas, chinelos. 

Já para o sexo oposto, melhor nem começar. Já tentaram ler rapidamente tailleur e talharim? Você não consegue diferenciar, porém as mulheres sabem bem a diferença entre roxo, violeta, berinjela e fúcsia, que sei que existe pelo relato que está por vir.


E que moda é essa de se criarem cores? E, se você pergunta o que é uma cor berinjela, a indignação delas será maior que a que veio junto à sua pergunta. Por isso não existem garotas que sejam daltônicas, seria como a cegueira aos homens. E fato: mulheres sem arrumam para outras mulheres. Isso é lógico.


A questão é o seguinte, havia uma festa de amigos de infância dela. O acontecimento do ano, porque todo ano havia um. Aquele era o vigésimo encontro, mas, ao longo do ano houve casamentos, festinhas, foi quando ele se deparou com uma planilha de excell, com nomes de mulheres e roupas que estas já tinha visto a garota vestindo, cores, estilos. Depois dessa matemática toda, tinha uma tarefa naquele sábado à tarde: encontrar um vestido fúcsia.

Confessaria que para ele fúcsia era uma marca nova de roupas. Mas como o silêncio é uma bênção, aprendeu que era um vestido roxo, quer dizer, violeta, ou melhor, berinjela: fúcsia. E a festa seria numa mansão do pai da garota, banda ao vivo de Beatles cover, coisa boa. A vestimenta dele era algo bem elaborado: jeans, camiseta descolada e um sapatênis, porém ela precisava de um vestido fúcsia.

Nem é preciso falar que depois de algumas lojas e horas, encontraram o avatar em uma trigésima tentativa e sem almoço. Já repararam como a fome delas some quando a roupa está em destaque, devem se alimentar de calças, saias, echarpes? Nem adianta o bico, porque o que poderia aparecer se o objetivo não fosse alcançado seria o armagedon.

Enfim, acharam o prêmio, disse a moça que vendera o penúltimo há duas horas. Nessa hora, torceu para que o outro atormentado tivesse passado por algo melhor, homens são solidários em tudo. E aí, o sorriso dela apareceu, junto às 15h daquele sábado quente. E como 400 reais são nada ante um objetivo. Para ela, o vestido era mais saboroso que aquele hambúrguer de picanha de 300 gramas.

Não comeu. Tomou uma água com gás e saíram.  O rapaz a pegou às 22h, ia já preparado para dizer que aquele vestido roxo, ops, fúcsia caíra muito bem. Protocolos feitos, chegaram ao bairro nobre. Serviço de vauchet, mansão toda iluminada. E o desfile começou, os homens sempre na sombra e as meninas medindo as amigas e cada uma tendo a certeza de que estavam melhores do que todas. E a garota de violeta, ops, fúcsia, estava linda, roubou a cena mesmo.

Porém aqueles bolinhos de queijo foram mais chamativos. Mas não tão chamativos quando a dona da festa apareceu, sim, a mesma dona do penúltimo vestido vendido. Foram duas comissões da vendedora, agora se entende o sorriso largo dela, o mesmo sorriso que sumiu assim que as duas se cruzaram e o mesmo sorriso que estampou o rosto de todas as amigas de infância dela.

O namorado foi arrastado para fora da festa, mal conheceu o pessoal, 400 reais foram queimados, um evento que se findava, um vestido amaldiçoado, um caminho de reclamações, e ele terminou em frente ao TV, comendo uma pizza fria, que sobrou de casa. A festa, apenas escutou do carro: “You say goodbye and I say hello”.

terça-feira, 12 de julho de 2016

FRIENDS WILL BE FRIENDS RIGHT TO END

Amigos! É sempre assim, juntos sempre e com promessas de amizade eterna. E com aqueles não era diferente. Conheceram-se na escola, os dois com 9 anos e passaram a conviver quase como ar e pulmão.

Tornaram-se cúmplices. Surras foram livradas, um pelo outro, sempre. Passaram pela adolescência, passaram colas, noites acampando nos quintais, campeonato de Enduro, os vários filmes na Sala Especial, da Record. Perderam histórias e ganharam muitas.  

O primeiro beijo, quando um acordou o outro para contar. Aquela dúvida de Matemática que só o amigo poderia sanar. Não tinham irmãos, mas eram irmãos.

Os pileques, a mesma tara pela Magda Cotrofe, os penteados iguais aos do Paulo Ricardo, e a mesma raiva de não terem conseguido ir ao primeiro Rock in Rio. O primeiro show. Um olhava e o outro completava.

O cursinho pré-vestibular. Um passou e o outro não. Mesmo que os horários dos trabalhos não batessem, a agenda se encarregava de juntá-los. Um se formou enquanto o outro não pôde estar presente, viajando a negócios.

Um se casou, e o outro não pôde ir também porque a reunião em outra cidade atrasou. E mesmo que o convite para ser padrinho do primeiro filho acontecesse, seria a formatura da namorada.

E assim a vida seguiu.

Hoje, dificilmente se falam. E parece que um aceitou o outro numa rede social, quando compartilharam aquelas lindas mensagens de amizade eterna.

terça-feira, 5 de julho de 2016

COISAS DO FUTEBOL

Quem conhece futebol conhece a cena, último jogo do campeonato de pontos corridos. Time da casa enfrentando o penúltimo e já rebaixado adversário. Precisando apenas de um empate para levar o título que há anos não vê. Casa lotada, imprensa internacional por lá.

Com a média de gols extraordinária, mais de 100, a equipe era base da seleção do país. Orgulho da cidade, inveja dos coirmãos. Faixas de campeão vendidas a rodo, fogos a semana inteira anunciando o óbvio, um natal mais feliz a idosos, que relembravam os anos de glória, e a crianças, que finalmente devolveriam tudo que vinham sofrendo.

Domingo já de férias, clima agradável, ingressos nem com cambistas, transmissão até para a cidade onde seria a final. O estádio quase veio abaixo quando os iminentes campeões apareceram no gramado. Fogos, fumaça, papéis higiênicos num clima retro brindavam o título.

5 minutos, 10, quase e nada do adversário aparecer. Ganhar o jogo por WO não seria digno para todos. Até que o massagista dos rebaixados entra em campo e puxa o árbitro para um à parte. Por uma questão absurda de logística e incomum, o uniforme dos jogadores tinha sido desviado sabe-se lá pra onde.

Sim, sabe-se lá como, a bagagem com os uniformes foi extraviada e eles não tinham como entrar em campo. Caos. Discussões entre dirigentes. A notícia chegava às arquibancadas, deixando a festa com um sabor meio amargo. Depois de quase meia hora, a hecatombe foi aceita: o adversário jogaria com o conjunto do uniforme número 3 dos da casa.

O branco seria páreo contrastante ao azul. Festa retomada e, em minutos, estavam em campo. Nada seria motivo pra se estragar o clima. Hino Nacional em uníssono, palmas, e o apito soava como um bálsamo, bola em jogo e, em dois minutos, já na trave dos rebaixados. Um uníssono “uuuuuuu” foi ecoado por lá. O gol seria questão de minutos, e foi.

Num contra-ataque avassalador, a torcida mal pôde crer, sim. Os de azul abriam o placar. Sim. Agora, para ser campeão, o time da casa precisava fazer um gol. Perdiam. Isso não calou de vez os torcedores, que se inflamavam e viam, de novo, outra bola na trave. O empate era iminente. E permaneceu iminente com mais três chances claras de gol, e ficou mais iminente quando o zagueiro tirou a bola em cima da linha, e ficou iminente até o término da primeira etapa.

O intervalo foi um silêncio. A iminência do gol de empate voltava junto com o canto das arquibancadas e o time da casa, com mais um atacante. E o gol de empate ficou iminente naquele contra-ataque em que o goleiro fez um milagre. E mais iminente ainda quando a quarta bola na trave ressoou por ali.

Mas não tão iminente, quando o centroavante avançou livre, e o lateral, num carrinho por trás, fez pênalti e acabou expulso. O estádio veio abaixo. Fogos, cantos e aquele terremoto branco presente. O meia, artilheiro do campeonato, cobrador oficial, pegou a bola. Silêncio. O time da casa, com um a mais, ratificaria o título iminente.
Escolheu o canto e bateu. O grito de gol desceu goela abaixo, porque a bola, pela quinta vez, explodiu na trave. A partir de então, foi um festival de desespero e chuveirinho na área. Com 10, os rebaixados se fecharam, e o iminente campeonato começou a sair do estádio aos poucos, sem que ninguém percebesse. Nem mesmo os 5 minutos de acréscimos ajudaram.

Fim de jogo. Rival campeão em outra cidade, festa adiada, numa tarde inesquecível, que endossou, literalmente, a explicação do capitão derrotado: “perdemos para nós mesmos”. E ninguém do time adversário quis devolver a camisa azul.


terça-feira, 28 de junho de 2016

A FÉ NÃO COSTUMA FALHAR...

Roberto é um mecânico dedicado. Há anos a graxa está presente na família. Foi o avô, italiano carrancudo, que o incentivou a abrir o capô dos carros e entender a engenharia dos homens.

Nunca acreditou em Deus. Talvez por Ele não aparecer entre os parafusos e os inúmeros automóveis da oficina, ou simplesmente por estar em falta no mercado, porém isso talvez mudaria radicalmente de uma forma outra naquela noite.

Juan Jesus Arribal era filho de espanhóis e herdara há anos da família uma rede de restaurantes na capital. Foi a avó que o incentivou a abrir a primeira panela. Chegou a chef, formado em Paris e voltou pronto a tudo. Uniu o fogão à administração, os 3 estabelecimentos viraram 8.

Nunca acreditou em Deus. Talvez por Ele não aparecer entre as faturas ou por o restaurante sempre estar lotado, em esperas intermináveis, contudo isso mudaria radicalmente de uma forma ou outra naquela noite

Sabe-se lá por que motivo o milionário estava sozinho naquela avenida numa noite fria, afastada. Os assuntos que o levaram até lá podem não ser pertinentes, entretanto nos é essencial perceber que o carro começou a engasgar há 15 minutos. O importado tinha uma engenharia difícil, ignorância do dono, que dispensou o motorista para velar a mãe.

Assim que entrou naquela avenida, percebeu que o carro falhou e parou. A quase madrugada não serviu de empecilho ao caótico trânsito da capital. Os 9 graus poderiam ser definitivos a isso também. Taxi àquela hora seria uma bênção. Não havia algo vivo por ali. E sabe-se lá quem seria a seguradora ou o corretor do homem, falta de bom senso acordar a secretária para tal.

Quis o destino e por sorte de Juan que a cunhada de Roberto fosse geminiana e aniversariasse sempre no inverno. Quis o destino e por sorte de Juan que Roberto gostasse tanto dela que fizesse questão de aparecer, mesmo naquela segunda-feira. De longe avistou o pisca aceso e o capô aberto.

Nunca entendeu por que - mesmo que alguns motoristas só soubessem guiar – certas pessoas tentassem enxergar um problema invisível. Talvez fosse um sinal, um chamariz, um “Me ajudem”. E assim se deu. Pelo carro e pela cara do dono, o sobretudo constatava o fato, decidiu se aproximar ou até esperar que o guincho viesse.

Ressabiado e assustado, o empresário olhou Roberto, que, com um sorriso e de mãos dadas à esposa, afastou qualquer possibilidade de ameaça. Não se sabe o que falaram, porque a distância não nos permitiu ouvir. Fato é que, mexe daqui fuça dali, em meia hora o carro funcionou.

Ainda que preferisse voltar de ônibus e não cobrar o serviço, mesmo porque aquilo foi apenas um ajuste para que se voltasse seguro pra casa, foi convencido a subir no carro e a ser levado pra casa.

Conversaram muito durante o trajeto. Antes de deixá-los, o casal recebeu um jantar cortesia em um dos restaurantes da rede e a promessa que, assim que amanhecesse, o carro estaria numa oficina para o reparo total. O casal se protegeu do frio e o empresário, dos riscos.

Dias depois, um cartão chegava pelos correios. Sim, de agradecimento, de profundo apreço a pessoas únicas. Junto a ele, havia um farto cheque, com a promessa de nunca mais precisarem de ônibus. Se anjos existiam, Roberto era prova viva de que Deus organizava as coisas por ali.

Ao mecânico, de uma forma ou outra, este sim poderia, no carro seminovo que pagou à vista, colocar o adesivo e divulgar literalmente a boa-nova: “Foi Jesus que me deu”.   

quarta-feira, 22 de junho de 2016

UM CASAL E UMA CONVERSA QUALQUER

Sentar sozinho num café na Paulista pode ser um ato solitário, mas pode ser um entretenimento convidativo. Estava de costas a esse casal, não escutava o rapaz, mas a opinião da moça era mais ou menos assim...

Quantas vezes, na Espanha, fiquei pensando quando passava diante de um hotel, ou uma pensão, que poderíamos fazer o mesmo, sempre que pudéssemos. Sabe, às vezes acho que a vida e os fatos, claro - os únicos que podem te dar prazer e benefício, sempre se repetem, você apenas transporta a situação para o futuro. E muitas vezes é muito fácil ser feliz, preparar a felicidade sem depender de ninguém.

Um clima perfeito, com sol ou não, com frio ou não, e com você, sempre! O ambiente se transforma, muda para algo fixo, como se pudéssemos, por exemplo, trazer um quarteirão inteiro da Champs Elysée e colocar no meio da floresta Amazônica, o que acha? Ainda que os limites sejam diferentes, o que se pode mudar se encontramos o que precisamos bem ao nosso lado, bastando apenas esticar a mão para alcançar nossos desejos.

Nada. É como uma música, se uma música te lembra uma coisa boa ou ruim, sempre quando for tocada, o ambiente estará presente. Com certeza. É por isso que nunca escuto rádio quando estou magoada ou triste. Felizmente, são poucas as músicas que me fazem lembrar de momentos que sei que nunca vou esquecer, mas ouvir algo é trazer para si o passado, e como o passado é eterno, nós sempre o vivemos pouco a pouco.

Nunca se separa da gente. É como a nossa sombra. Podemos envelhecer, mas a nossa sombra nunca muda. Nosso passado nunca muda. Podemos deixá-lo escondido. Podemos muitas vezes escolher em que momento ele começa, entretanto, quando menos se espera, ele aparece em nossa mente. Daí, para esquecer é duro, é complicado. E é pode ser perigoso escutar alguma coisa ou sentir algum aroma quando o passado nos chega de surpresa. Não é mesmo? Sim. Com certeza.

Concordo, os livros são a mesma coisa. Quantas vezes uma literatura menos rica nos faz mais felizes que as clássicas. Elas podem ter representado um passado feliz, um momento de alegria. Você consegue controlar a alegria e o passado. Eu ainda não tenho tido tanto sucesso. Aproveitar um momento de felicidade e colocar músicas que nos deixam para cima, fazer esse mix. Sim, não consigo.

Por exemplo, olhe para fora, veja este clima de final de dia, um friozinho de uns 15 graus, como gostamos, esse ambiente de trabalho produtivo. Minha tese, seus livros, essa bebida, você, eu. Esse momento pode vir a ser feliz a partir de amanhã.

Sabe, às vezes acho que não aproveitamos o momento inteiro. Ou não nos damos conta de que um momento qualquer pode vir a ser feliz. Quantas vezes dias felizes só se tornaram felizes no dia seguinte. Noites inesquecíveis têm mais sabor quando ficam no passado. Parece que não saboreamos o exato momento. É o caminho inverso de um feriado ou a espera de algo muito importante para nós.

Nós vivenciamos cada segundo antes. Mas a felicidade, nós a vivenciamos sempre no futuro. É possível parar o mundo e falar: este, este é o exato momento em que estou feliz, parem tudo que quero saborear este momento! O presente nunca existiu, ele é tão rápido quanto o piscar dos olhos, o passado predomina sempre, concorda? Claro que sim, só você me entende, ou somente eu te entendo.

Muitas vezes acho que a vida é feita apenas de passado, e que o vivemos, como se fosse destino, se é que realmente ele existe, então estamos vivenciando um passado já escrito, percebe? E amanhã completo 21 anos e mal sei qual caminho que Deus traçou para mim.

Citei Deus por mero acaso, sabe que não tenho religião, muitas vezes gostaria de ser uma cristã fervorosa, mas há algo que impede, não sei se a preguiça ou a conveniência, aliás qual a diferença entre elas? A preguiça é apenas a irmã da conveniência, tudo o que convém ao homem é com o mínimo esforço, não é?

E a conta chegou e tive de sair...

sexta-feira, 17 de junho de 2016

AS CURTIDAS DE UMA NOITE ESPECIAL

Quando leu num artigo que não importava qual seria a ocasião ou o evento, mas sim a felicidade de usar a roupa que desejava, pensou sério. O que não estava em seu caminho era realmente o quão sério havia levado tal conselho. Decidiu escolher o que de mais belo viesse a seus olhos. Não veria preço, julgamento, nada, veria apenas a satisfação.

Naquele dia, quase não creu na promoção daquele vestido lindo, à Oscar, à tapete vermelho. Quase 70% de desconto, conseguiu pagar à vista e sem estourar o limite do cartão. Voltou feliz, orgulhosa e - minutos depois - olhando-o esparramado na cama - teve a certeza de ser a mulher mais feliz deste mundo. 

Não o guardou, deixou à mostra para que as cortinas e tudo mais que o circundasse fossem testemunhas de que aquela beleza não deveria existir, mas existia. Não quis dividir o cabide com os demais panos que tinha, seria indigno, seria um pecado. E tudo aquilo por apenas 3 dígitos. Inacreditável. 

Era digno de uma Julia Roberts. Perfeito para Marilyn Monroe. Ideal para Audrey Hepburn, porém estava no subúrbio de uma cidade brasileira.Talvez tenha sido durante o almoço ou enquanto lavava a louça que percebeu, teve o surto e a certeza de não saber realmente quando e onde usá-lo. Releu o artigo e viu que havia levado a sério, no entanto - se existem graus de seriedade - a moça havia extrapolado.

Checou os eventos das redes sociais. Nada. Pegou a agenda, nada. Esforçou-se para um casamento, nada. Nada, absolutamente nada. Imaginou-se pegando ônibus com ele, sorriu da própria imbecilidade. Ou ainda levando o cachorro ao banho, aqui quase gargalhou. E começou a ver que talvez houvesse entrelinhas no artigo que seus 2 graus de miopia jamais pudessem ver.

Aqueles 3 dígitos começaram a virar 4, 5. Tinha de fazer algo e rápido para que a promoção realmente valesse a satisfação. Pensou o que as estrelas do cinema fariam com ele. Ora, elas até deveriam dormir assim porque eram divas e até nos sonhos precisavam estar impecáveis. Uma lágrima surgiu no canto do olho, mas foi limpa com o pano de prato.

Então checou o saldo do cartão, os 400 reais restantes renderiam um salmão e um prosecco Salton. Foi até o mercado e voltou resoluta, daria a si mesmo a comemoração mais emocionante do nada, porque o artigo estava certo. Ser feliz ainda era a melhor elegância. Ser o próprio Valentino e a própria Naomi Campbell.

Assou o peixe com alecrim, fez a mesa, a maquiagem e colocou o vestido pela segunda vez naquele corpo besuntado de Monange e xampu de jojoba. E abriu o prosecco e tirou uma foto segurando o copo americano. Fino. Comeu o salmão com feijão, mas só depois de um clique, fez cara sedutora, mas o vinho tampou a percepção do batom borrado, bem como o copo manchado. 

E terminou a noite na varanda, à luz de velas, cinco delas, derretidas nos pires e que conseguiram iluminar o reboco da parede. Achou realmente que mereceu aquilo tudo e foi dormir vendo príncipes, castelos e reinados. 

Acordou no sofá e ficou ainda mais radiante, não coube em si, porque foram mais de 5000 curtidas. Como poderia ser? Eram apenas pouco mais de 400 amigos. Sucesso total, principalmente a foto em que babava na almofada creme com o alho no canto da boca.

A vida como ela é nem sempre é como nós a vemos. Os óculos do mundo têm sempre uma lente melhor e um prosecco que não dá enxaqueca.




terça-feira, 7 de junho de 2016

O LADRÃO DE CONTROLES REMOTOS

A paciência é a virtude mais desejada entre todas. Quem a tem, tem paz, tem amor, tem tudo. Uma pessoa pacienciosa é um milagre vivo. E por essas e outras que a morte não vem, a agressão se atrasa e a raiva não tem convite. Pois quis naquele dia que dona Joana, no auge dos seus 90 anos, teimasse em perder o controle do TV.

Virou, revirou, mexeu e remexeu. Nada. A casa estava vazia naquele sábado, apenas o genro a fazer algo aqui ou acolá, escutou lá debaixo a voz firme da sogra:

- Rivaldo?

- Sim, dona Joana.

- Você pegou meu controle remoto, devolva-o.

- Não, eu não peguei. Deve estar no seu quarto.

- Não está! Devolva-o!

- Não posso devolver algo que não peguei, procure direito!

- Além de ladrão está me chamando de esclerosada? Devolva-o!

- Não peguei coisa alguma da senhora e não a ofendi!

- Quero meu controle!

O homem subiu em três passos e entrou no quarto dela. Virou, revirou, mexeu e remexeu. Nada.

- Não está aqui, dona Joana.

- Eu sei que não e a esclerosada sou eu?! Devolva-o para mim!

De nada adiantaria o homem se defender. Entre pedidos e acusações, saiu como um louco à caça de um controle remoto qualquer. Não poderia ter sumido, porque ele não saía do quarto da senhora, que, entre impropérios e imprecações, amaldiçoava todas as gerações do pobre infeliz.

Quase quinze minutos de buscas e nada. O silêncio se fez. Ele desejou ter o problema solucionado e a encontrou no corredor.

- Tudo bem, dona Joana?

- Como posso estar bem? Não tem pão nessa casa!

Ótimo! O controle foi esquecido e bastava um pulo na padaria para tudo se acalmar. Decidiu sair rapidamente, não sem antes escutar outra vez: "Rivaldo, onde está meu controle?!". O homem pensou rápido. Subiu, trancou a porta do quarto para que o seu controle não fosse surrupiado, levou a chave consigo e seguiu à padaria.

Quando voltou, encontrou dona Joana sentada na sala, calma, quase num sono profundo. Ela o viu e sorriu. E assim que viu que ela sentava em cima do controle, ele não titubeou:

- Seu controle, dona Joana! A senhora encontrou!

- Que controle?

Rivaldo calaria a boca com os dois pães que trouxe e, antes que mordesse o primeiro...

- Nunca mais roube meu controle!

... teve a certeza de que, por essas e outras, a morte não vinha, a agressão se atrasava e a raiva não recebia convite.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

A MENINA DA FOTO

Fato é que a moça havia perdido a carteira de habilitação na rua. Na pressa de puxar o celular, que tocava incessantemente, com ele veio o documento e dele se separou e no chão ficou.

E, entre os pés apressados, deve ter sido pisado umas duas vezes, mas continua impávido por ali. Sol, tarde, chuva, vento, a santa capinha o protegia de intempéries e afins.

Dia seguinte, passava um rapaz entretido em seu mundo, com o ipod nos ouvidos e os olhos no chão. Viu o documento verde ali e de pronto se agachou. O instinto de olhar aos lados imediatamente foi natural, mas, num domingo pela manhã, seria pouco provável achar um rosto compatível àquele da foto, lindo por sinal.

Imaginou como estaria a menina, de 25 anos, e seus pais, todos preocupados. O BO já deveria ter sido feito, ou um novo documento em vias de ser tirado. Fato também que ele poderia ter se apaixonado pela menina, aqueles clichês que somente acontecem em romances de bancas de jornal.

Nunca se imaginou numa sessão da tarde, mas decidiu guardar o documento, numa espécie de Cinderela moderna. Poderia passar uma vida correndo a cidade para achar a moça.

Não parou sua vida para isso. Mas teve a forte sensação de aquilo ser seu destino. Uma brincadeira deliciosa de momentos felizes vindouros. Ele poderia se apaixonar por aquela foto. Ele queria.

No fim de semana seguinte, voltou ao local torcendo para que a menina também pudesse estar lá. Improvável. Nada. Ela não foi, mesmo que ele tivesse ficado apenas um minuto naquele quarteirão. Seria uma insanidade pensar que ele a acharia. E riu de tudo, crendo que era uma bobagem.

Nos dias que se seguiram, várias vezes se deparava olhando para aquela foto, a música que tocava quando ele encontrou o documento lhe vinha à mente. Ele guardou o documento junto ao seu. Num farol, num momento qualquer, perdeu a conta de quantas vezes a coincidência aparecera.

Era olhar a foto e a música tocar, no rádio, em seu Ipod, numa propaganda de rua, alguém cantarolando. Não podia ser. Tinha de ser ela. Uma semana. Um mês. Dois. Meio ano, e a vida do rapaz estava um inferno. Morria de paixão. Os amigos o incentivaram a colocar a foto nas redes sociais, ainda que ela não estivesse em nenhuma, alguém de vida virtual poderia conhecê-la. Tentou, nada.

E no aniversário de um ano, ele jogou todas as fichas, sonhos e esperanças. Foi para aquele quarteirão, com a mesma roupa, no mesmo horário e com a mesma música nos ouvidos. Quem sabe um ritual forte demais para trazê-la, materializá-la. Quem sabe?

Ela não apareceu, como previsto, porque o previsto sempre impera. E se pudesse saber o que aprendeu com tudo aquilo, diria que despendeu energia demais a algo qualquer, porque nem todos os sonhos merecem nossa atenção, porque nem todos os sonhos são sonhos, podem ser apenas uma boba e caprichosa teimosia.

terça-feira, 31 de maio de 2016

MINHA VIDA NA REDE SOCIAL É MINHA VIDA REAL?

Redes sociais existem para um determinado fim: mostrar o que você realmente faz para mostrar o que realmente você gostaria que os outros pensassem que você faz. Complexo? Não, porque está incutido na mente de todos que as usam. Não endossarei o fato de as pessoas torcerem para ter uma festa, uma viagem, para colocar, dividir com os demais o quão feliz, viajadas e ocupadas com eventos elas possam ser.

E aquele casal era assim. Fotos juntos no perfil – abro aqui um à parte, nem eu, que nasci com meu irmão, no mesmo dia e local e dividi a mesma barriga ao mesmo tempo, dividiria um perfil, porque, graças a Deus, somos dois. Tudo junto, viagem, festas, pedido de noivado,  o noivado, pedido de casamento, casamento, altar, fotos da lua de mel.

O perfil de CARAS passava por lá. “Inveja”, diriam eles, “a felicidade deve ser exposta”, cada momento. Um presente ganho, pausa pra foto. Um sorriso dado, pausa pra foto. Um vinho, um jantar romântico, pausa pra foto. Cada momento feliz deve ser registrado. E o que seria deles sem as lentes sociais? Talvez nada, porque o troféu do amor está lá.

E veio a gravidez, foto da barriga e do ultrassom da menina. Sapatinho dado pelo avô paterno. Foto. Sapatinho dado pela avó materna, foto. Fotos dos avós, fotos dos padrinhos. Foto da barriguinha aparecendo. E depois de tantas fotos, aos 7 meses, ela ganha uma sessão de fotos num estúdio, as 45 de barriga de fora com o marido.

10 de ele beijando a barriga, 12 dela ao lado do berço, 15 dos dois se beijando e 8 só dela com a mão na barriga em várias poses. Dia do parto, ela manda postar o momento em que o bebê chega. 4 fotos dela beijando o filho e mais 5 dos avós com a criança, do pai com a filha, do pai beijando a filha etc.

Fotos dela voltando pra casa. Fotos de aniversário de 1 ano. Foto da primeira viagem dos 3. Declaração de amor dela aos “tesouros da minha vida, meu porto seguro”. Foto do primeiro dia das mães - #chorando. Fotos do primeiro dia dos pais - #amoresdaminhavida - #famíliaétudo.

E assim a vida foi sendo registrada e mostrada; cada sorriso, porque a felicidade deve ser exposta e “toda a sua inveja que se transforme em gordura”.

A filha, aos 5 anos, abre seu primeiro perfil numa rede social. Convida a mãe, que aceita prontamente. E, numa tarde linda de inverno, ela começa a ver todas as fotos, todas do perfil da mãe. Ficou horas vendo toda a história da vida dela, do pai e da família.

Quando terminou, foi até a mãe, colocou as mãos na cintura e perguntou:

- Por que você e meu pai só fazem as coisas juntos no computador?

- Não se mexa! – disse a mãe, que tirou uma foto naquele instante, porque achou a pose linda demais e postou no facebook: “pose de geniazinha, puxou ao pai”.

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terça-feira, 24 de maio de 2016

A LOUCA

Pode-se dizer que a loucura a algumas pessoas deixa de estar e passa a ser. As atitudes deixam de ser justificativas e passam a ser coerentes. E aquela relação não era lá um exemplo de algo saudável ou promissor. Ela com uma filha de 7 anos, ele 7 anos mais novo e sem filhos. O namoro foi um complemento de nichos, a um havia vagas ao amor à outra, quem viesse.

O amor muita vezes acaba sendo uma conveniência, a diferença é quando a conveniência supre as carências que uma vida toda causa ou ratifica. Talvez ela tivesse o olhar adequado e um sorriso certo. Ele nada tinha, ele estava lá, vago e pontual. Foi uma hecatombe a união. Em poucos horas, os dias viravam meses, e os meses, anos. Séculos que se juntavam, uma mescla de Idade Média e Renascentismo. 

Resolveram erradamente morar juntos, o sonho de uma família não parecia algo correto, não aos olhos de quem os via, mas aos olhos de quem se via. Retomando a ideia de que ninguém é feliz sozinho, ambos seguiram a árdua e desafiadora tarefa de que a família deveria ser a base de tudo. 

O grande problema era a criança, sim, a menina, digamos, não era lá algo confortável à mãe. Pois é, a natureza deixava de seguir o curso normal e, o que era para ser fluente, tornava-se um empecilho. A baixo autoestima caminhava lado a lado com a moça, desde sempre. Não se podia dizer quem viera antes.

Não eram raras as brigas constantes com a garota por nada. Não eram raros os olhares furiosos a ela por nada. Não eram raras as situações constrangedoras por que sofria e era comum a disputa da mãe com ela mesma.

Eram comuns as brigas se o marido elogiasse a menina, mesmo que fosse na lição de casa. Eram comuns as brigas se o marido beijasse a testa da garota, ainda que fosse nas festas de agosto. Eram comuns as brigas se o marido colocasse o gorro e ajeitasse os cabelos da enteada, ainda que fosse julho. E mais comuns ainda quando ela o beijava na bochecha, ainda que um "eu te amo, pai" prenunciasse a ação.

Anos depois de brigas e disputas, a pré-adolescência chegou. Com ela vieram as trevas da loucura. Puberdade fervilhando e descobertas revelando um final desastroso. 

Numa noite, no corredor do banheiro e dos quartos, saía do quarto do casal e de cueca o marido, que, por dois segundos, nem viu a menina vindo do banheiro, de calcinha e com o primeiro sutiã. No exato momento em que teriam se soltado, no milésimo de segundo preciso em que teriam trocado um beijo ou, quem sabe, no flagrante preciso de uma troca de carícias, o olhar furioso dela transbordou.

Cega, urrou. O marido se virou, já na porta do banheiro e a menina reabriu a quase fechada porta do quarto. Havia ninguém mais ali, porém era a certeza de mais um surto, o último. Ficaram estáticos e viram uma jamanta desgovernada subindo com uma faca. E, antes que a filha tentasse formular algo, teve a barriga perfurada. O marido, entre o correr para ajudar e tentar impedi-la, nem havia percebido que sua garganta estava aberta. Mortos, todos mortos. 

Ainda ofegante e ainda vidrada, conseguiu arrastar o corpo dele para cama e, depois de colocar o da filha em cima do dele, saiu satisfeita por acabar com aquilo tudo. Melhor assim, ela se resignara com a realidade, libertara-se do pesadelo e havia um pedófilo a menos nesse mundo injusto e sujo...  

terça-feira, 17 de maio de 2016

QUEM NÃO TEM TOC?

Quem tem TOC sabe bem o transtorno e a delícia disso. E pode se resumir assim, pois o transtorno vem quando a delícia da rotina é quebrada. Um quadro torto, uma franja na testa, uma etiqueta pra fora, uma pia com louças sujas podem e vão tirar a concentração do resto dia.

Ter esse desvio não é uma bênção nem um fardo, apenas é. Como ser loiro, ter rinite ou alergia a algo, conclui-se que o TOC acaba sendo a alergia à falta de detalhe. Os detalhistas sofrem e o excesso disso desencadeia a doença moderna.

O rapaz tinha esse distúrbio e passava por algo ainda pior, o esquecimento. Não, ele não se esquecia de arrumar algo ou das manias, mas de fazer algo que não era de sua rotina. Datas de aniversários, compras no shopping, contas esporádicas.
Quando não se esqueceu de ir ao médico, saiu de lá com um comprimido para reavivar a memória - não que isso exista, apenas algo inofensivo, à base de vitaminas, mais um exercício para se treinar o cérebro - que deveria ser tomado todas as manhãs. Sempre pela manhã, num horário fixo e antes do café. Ótimo, mais uma mania que entraria na lista.
Mas o tratamento, parece-nos, não está dando lá certo. Todas as noites, ele leva um copo de água, que é consumido sempre no mesmo horário, pontualmente às 2h, quando se levanta para ir ao banheiro.
E pela manhã, o copo está vazio, e mesmo que ele queira tomar o remédio, não há como não ir ao banheiro, escovar os dentes e fazer o desjejum, porque se tiver de ir até a cozinha antes de fazer todo esse ritual, com certeza algo dará errado, desencadeando uma guerra mundial.
Parece paradoxal, mas ter a rotina de ter desenvolver outra rotina não está na rotina de alguém com um transtorno desses.
O comprimido? O cachorro comeu naquela manhã.

terça-feira, 10 de maio de 2016

AS PREVISÕES DE MADAME MINIE

Madame Minie sempre viveu das bruxarias e adivinhações. Descobriu-se além aos 11, quando disse que a gatinha do vizinho morreria, porque havia visto. Batata, um carro pegou a bichana, uma gata preta linda, e, contrariando a opinião pública e crendices populares, a gata preta trouxe a sorte para ela. Logo a mãe começou a, digamos, divulgar os dotes da menina em troca de um investimento.

Sim, começaram a enriquecer. Depois que a mãe morreu, e ela passou a noite anterior toda ao lado dela, decidiu seguir só. Casamentos, namoros, trabalhos, traições todas as situações passavam pelos seus olhos e passavam de modo certeiro, nunca errou, nunca errava. Poderia passar horas falando de todas os acertos. 

As viagens e bens eram a materialização do sucesso. E, para isso,cobrava caro. 500 reais a sessão, 5 vezes por semana, 8 atendimentos por dia. Sim, quase cem mil por mês. Não casou, preferiu seguir só, fazer tudo só. Não confiava em ninguém. Cuidava do site, da agenda, do dinheiro. Julgava-se uma super-heroína, invencível.

Entediada, e nunca se poderá imaginar por quê, decidiu fazer um jogo durante aquele mês: se errasse um segredo do cliente, a sessão sairia de graça. Para tal, ela pedia que o cliente, na antessala, e sem que ela visse, óbvio, escrevesse algo do passado ou um desejo. O cliente entraria, deixaria o papel dobrado em cima da mesa e, no fim da sessão, madame abriria o segredo e se revelaria se o dinheiro apareceria ou não.

Decidiu ampliar o mês para sábado também, porque queria um extra para ir a Europa por um mês. Nem se carece dizer que a mulher passou o mês faturando muito. O boca a boca se multiplicava, e a super-heroína ia ganhando fama, dinheiro e admirações. 

Depois de 3 semanas, naquela quinta-feira fria, às 18h, no último horário, um rapaz apareceu. Terno Armani, perfume francês. Depois de 25 minutos de blá-blá-blá, ela parou estarrecida, pôs a mão na dele e disse para dissuadir daquela ideia. Por mais cruel que fosse a pessoa, o cara não deveria matar ninguém. Que a vida era mais que isso, que a maldade não poderia vir de ninguém, que o rancor deveria ser sufocado, que ganância alguma poderia calar o bem ou o bom senso, que... BANG!

Caía morta a madame. O rapaz se levantou e vasculhou tudo o que pôde. Joias, dólares, euros. Não se pode saber quanto ele levou, mas pode-se ter a certeza de que se ratificou a velha máxima: ninguém salva os super-heróis nem eles a si mesmos!  

terça-feira, 22 de março de 2016

PALAVRAS CRUZADAS

Há pessoas pelo mundo que conseguem esconder a humanidade atrás de títulos. Não é comum ver pais, professores, artistas e mendigos como apenas pais, professores, artistas e mendigos? Sempre tive essa visão e não sei se concordariam comigo.

Muitas vezes, para não falar sempre, não enxergamos além do que são. Quando como se descobre como se nasce, a primeira resposta que dizemos é: “Meus pais não fizeram isso”. Ou quando se encontra com um professor no mercado, o espanto é imediato – vivo isso sempre.

Ou ainda, quando um artista é visto fazendo qualquer outra coisa que não o trabalho dele, o julgamento é instantâneo. E por último – propositadamente – porque vivenciei isso dias desses, quando se vê um mendigo que não mendigando o choque é iminente.

Estava em uma das minhas caminhadas pelo bairro. Parei na esquina – aliás um dia falarei sobre essas esquinas, que me renderão relatos memoráveis – e vi um morador de rua com uma caneta escrevendo. Fico envergonhado de dizer que me pareceu bizarro aquilo, porém tive de tirar a capa para entender que ali havia – por que não? – um ser humano.

Não sei por quanto tempo fiquei olhando a ele, tentei ver o que poderia estar escrito ali e foi então que percebi que não escrevia, fazia palavras cruzadas. De modo ingênuo – seja lá qual sentimento me bateu – eu sorri, feliz, um sorriso imbecil.

Ele percebeu minha curiosidade, olhou para mim e devolveu o sorriso. Eu me senti mais feliz ainda e não me perguntem por quê. Meu desejo, agora que a curiosidade era tamanha, saber como estava o desempenho dele, se realmente ele levava a sério ou apenas um devaneio para abstrair a miséria que seguia seus passos.

O cachorro dele, sempre um cachorro, abanou o rabo para mim – foi um convite, aproximei-me dos dois agachei para brincar com o pulguento sem antes pedir permissão ao dono, que consentiu. Apoiei minha mão na cabeça do bicho e olhei rapidamente à cruzadas, a maioria preenchida.

Pelo pouco que vi, todas as palavras faziam sentido, horizontais e verticais se encaixavam perfeitamente. Depois de duas lambidas do fiel companheiro, eu me levantei, disse um parabéns a ele e segui, feliz e envergonhado do meu julgamento.

Assim que me levantei, ele perguntou:

- Opinião formada antecipadamente sem maior ponderação, 11 letras...

Não tive condições de pensar naquele momento, porque a resposta que ele acabava de me dar podava qualquer capacidade de se concatenar algo. Respondi que nada me vinha à mente, sorri, dei um tchau e segui.

Confesso que não escutei mais as músicas que tocavam no meu ipod e não tinha certeza se era por causa da charada ou, posteriormente, por causa das vezes que tive de contar quantas letras poderia haver na resposta certa, na palavra certa.

Sim, preconceito tem 11 letras.

terça-feira, 8 de março de 2016

MULHER MARAVILHA

Quando viu a colega de trabalho recebendo flores do noivo no trabalho, ela teve uma pontinha de inveja. Talvez a maturidade pudesse ser viável aqui, reconhecer que também amaria aquilo não foi indigno, mas verdadeiro. E percebeu que não importa o que se sinta, senão o peso que se coloca nesse sentimento.

Decidiu aliviar a carga da inveja e alimentar a do final feliz. Voltou para a mesa tentando não pensar que tivera somente relacionamentos frustrados, que uns tinham mais, porém valorizavam menos ou o inverso. Tentou imaginar um futuro melhor e, na hora do almoço, driblou os colegas, pegou seu ipod e decidiu esticar a calçada e fazer as unhas.

Empolgou-se e arrumou o cabelo. Comeu duas barrinhas e voltou para o trabalho. O comentário foi geral, havia um amor novo. Mais de dois anos de empresa, e era a primeira vez que se mostrava assim. Apareceram dois bombons em sua mesa, e, se bobear, até as flores da amiga murchavam um pouco.

A tarde passou sem maiores atropelos. Fuçaram nas redes sociais e nenhuma pista. Aquela produção toda deveria ter um propósito, mas quem era seria esse propósito. Na hora do café, duas até tentaram algo, nada conseguiram.

Na hora da saída, até espreitaram jurando que alguém apareceria. Não. Ela seguiu só até o carro e só seguiu até em casa.

Entrou, abriu a porta e escutou o silêncio que a recebia natural e timidamente. Ignorou a solidão. Ligou o som e abriu a geladeira. Abriu uma latinha de cerveja e dançou o máximo que seu fôlego conseguiu. Não ligou que o cabelo desmanchasse, esperou que a endorfina aparecesse.

Foi ao quarto. Despiu-se do modo mais provocante que sabia. Não se convenceu. Enxergou-se com  a lingerie preta. Virou de lado, as celulites não a atacaram. Passou a mão pela perna e sorriu com o tom do esmalte, acertou em algo.

O celular tocou: mensagem.

Ela correu, leu, sorriu e respondeu. De repente, não se sentiu mais sozinha. Em meia hora, o interfone toca. Ela manda a visita subir. A porta se abre, e se abraçam fortemente.

Há que se ter coragem para encarar a realidade, há que se ter força para admirar alguém, há que se ter carisma para servir de exemplo - tanto como para confessar que é duro receber flores de si mesma.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

SHAKESPEARE AO EXTREMO

Não nos cabe aqui enaltecer mais ainda as qualidades boas de quem atua. Declarar-se ator no Brasil já é de uma dignidade e de uma coragem ímpares. Saber da dedicação da profissão, que muitas vezes nem esse nome tem, prefere a maioria chamar de passatempo cultural.

Também não caberiam quantas histórias que envolvem atores pelo mundo. Poderia relatar um, que tinha de comer durante toda a peça. O cara passava o dia sem almoçar para unir profissão, necessidade e prazer.

Houve até quem, interpretando Judas Iscariotes, literalmente tenha se matado. Infelicidade horrível e duplamente, por quem interpretou Cristo não tenha a mesma habilidade que o Nazareno. Não houve quem ressuscitasse no terceiro dia.

Dentre as muitas dedicações a esta arte linda, vamos encontrar um rapaz dedicado, com 4 anos de experiência, numa peça em excursão pelo Brasil. Poucas falas, mais figuração. Oportunidade única, havia dois globais protagonizando a obra.

Fato é que ele tinha de espirrar no começo do terceiro ato. Vai se saber o motivo, mas o diretor – e quem é do meio, sabe que essa profissão é mais insana do que racional – queria e teimava que o rapaz deveria literalmente espirrar. 

O mesmo diretor era famoso por convencer uma atriz a se cortar de verdade em cena. O que renderam a ela cicatrizes para o resto da vida. Significa que um simples espirro era nada e livre de sequelas.

Durante os ensaios, ele simulou o espirro. Mas sem fugir da rigidez do diretor. “No dia será real, no dia será real”. Mas como espirrar realmente e no momento certo. Era isso que ele perguntava ao diretor, que sempre dizia: “para compor uma personagem, você se entrega, faça isso com seu nariz”.

Tensão. Tentou cheirar perfume forte, era certeiro, mas demorava alguns segundos. Precisava de algo preciso. Cheirou serragem, também não rendeu bom resultado. Já desesperado, ele se irritou e socou o próprio nariz, o que resultou num espirro imediato. BINGO!

Tentou socar o nariz nos dias seguintes. Perfeito. Deixou para o ensaio final e arrancou aplausos de todos, cena real demais. O diretor estava extasiado; o ator, esperançoso, e a peça, salva. Aperfeiçoou o soco num simples tapa, quase imperceptível ao público.

Estreia, casa cheia, jornalistas a mil. O nome do diretor trazia um marketing todo diferenciado. Mera para todo lado, a peça começou. Todos confiantes no espirro real do ator. Início do terceiro ato, ele entra, soca levemente o nariz e o espirro vem de imediato.

De imediato também um incrível ranho (um à parte, é a primeira vez que escrevo isso na vida) é arremessado direto na boca da atriz, que, enojada, solta um vômito em jato na cara do ator, que vomita enojado.

Parece que houve outros vômitos na coxia, houve alguns na plateia também, e a peça teve entrou para o marco das bizarrices. Houve quem aplaudisse, houve quem criticasse.

No dia seguinte, o diretor amou o cheiro azedo, real demais, e queria que todos vomitassem de novo. Pior seria arranjar o papel de faxineira, quem assumiria tal façanha. Soldaram Fernanda Montenegro, mas a dama ainda não respondeu ao convite.