quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NOITE DE PAZ

Não caberia aqui o clichê do Natal, mas não pude evitar em contar uma história que aconteceu por esses dias de dezembro. Não era Maria, entretanto estava grávida e prestes a ser mãe. Não era José nem carpinteiro, porém perambulava com a esposa, ou sei lá se fossem casados - porque viviam na rua - de um canto a outro. Sujos e sem banho há dias, ela temia parir naqueles dias, tudo ficaria mais difícil, se é que isso era possível.

Ele não, desejava ser pai num 25 de dezembro, "traria sorte, porque Deus abençoa quem nasce nesse dia e a nossa sorte mudaria", vivia dizendo enquanto revirava os lixos. Ela sonhava com um banho ao menos e pensava em como alimentar a criança depois que o seu leite - sabe-se lá em quais condições -  acabasse. 

E naquele 24 de dezembro, as ruas pareciam mais vazias e mais frias. Havia chovido, o que piorava as condições do lixo. Por sorte, passaram perto do bar cujo dono vivia a dar-lhes comida e o que viesse. E veio mais do que esfihas. Veio um panetone, dois torrones e até uma sidra. Eles sorriram e preferiram ficar embaixo de uma árvore pincelada por luzinhas. Decidiram que tinham a maior árvore de natal da cidade e por lá fariam sua ceia.

Rezaram porque era uma noite especial. Ficaram em silêncio, não se podia ouvir os pensamentos deles, mas parece que ela pediu um banho e ele mais sorte nessa vida, ainda que fosse injusto desdenhar daquele Bauducco, porém vivia imprecando contra a má sorte da vida. Nessa hora, um cachorro apareceu e salivou ante a qualquer coisa, que foi dividida.

A garoa cessou "Estamos com sorte", disse o rapaz tentando abrir a sidra. Ouviu-se um canto numa casa, embalavam qualquer melodia natalina. Desconheciam a letra, mas sabiam a melodia. Ele abriu a sidra e deixou que ela bebesse, ao menos um gole para celebrar aquela noite. Ela aceitou com a condição de ser apenas um. Havia ainda 4 esfihas para o dia seguinte, mas o panetone havia acabado e o cachorro se encarregava de raspar o papelão e tudo que estivesse por ali.

Ele dormiu, ela não, o cachorro sentou-se perto dela. Ela o acariciou e ele lambeu sua mão. Talvez pelo cheiro da carne, talvez pelo afeto, que diferença faria isso agora? Então ele pôs a cabeça nas pernas dela e dormiu. Ela sorriu e chorou. Odiava estar suja, odiava estar grávida porque odiaria parir outro mendigo. Perdeu as contas de quantas vezes pediu para o bebê morrer. Deus não a escutava há anos, por que agora?

Chorou porque se sentia injustiçada e não podia lutar contra tudo tendo de cuidar de alguém mais desprotegido ainda. Chorou por tudo e por saber que, ao sentir aquela dor, aquelas contrações, que o filho viria naquele instante. Berrou. O rapaz acordou num sobressalto já assustado, sabendo que era o momento de ter sorte. 

"Jesus, vamos chamar ele de Jesus", antes mesmo de prestar a primeira ajuda. Ela berrou de novo, o cachorro se assustou e ficou em pé, sem saber o que fazer. Sabia que tinha de parir ali, no meio da rua, com aquelas luzes a piscar agora. Sim. Um viatura policial, que parou e logo dois desceram ainda mais desesperados. Não nos cabe saber os procedimentos, porém a dupla ajudou muito e conseguiram trazer a criança ao mundo.

Não houve mais choro, não houve coisa alguma, o rapaz ficou mudo, o cachorro estava atrás da árvore, os policiais ficaram quietos e a mãe não balbuciou coisa alguma. Se era pra ser Jesus, ele viera com a missão cumprida, já com a vida completa, pois naquela noite nascia morto e talvez não ressuscitaria no terceiro dia.

Os rapazes não puderam falar. O pai jogou a imprecação de novo aos céus e a moça sorria por saber que, pelo menos uma vez, Deus poderia ter escutado suas preces, que naquela noite especial poderia haver uma ponta de esperança em seus pedidos...


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

SCRIPT DE NATAL

Quando ratificaram, em julho, o convite para a noite de natal no novo apartamento, o casal jamais imaginaria que estariam mergulhados numa indiferença cinza. Todas as cores e promessas jamais poderiam cair no esquecimento. O abajur da sala estava sempre aceso, ele não se importava em dormir com a luz ali, contrastando ao escuro do quarto, com o livro pronto para ser lido por ela a qualquer instante.

Há semanas mal se falavam, mal se olhavam e nunca mais se tocaram. Nunca mais. Já não sabiam mais como era agir sem um nem outro. Acostumaram-se ao inverso e dividiam sempre a mesma luz. Já não sabiam mais como seguir por si. Mas a noite do dia 24 de dezembro se aproximava e restava a eles receber os 15 convidados entre pais, sogros e cunhados.

A troca de mensagens pelo grupo do whatsapp não trazia os dois simultaneamente. Ora, ela falava, horas depois ele respondia na interação. E foi assim, em silêncio, que arrumaram tudo. 

Na manhã do evento, eles se trombaram no corredor, e ela pediu para que tentasse, pelos pais e mães dos dois, agir como sempre agiram, como nunca mais agiram, com a promessa de arrumarem tudo assim que a última luz fosse apagada naquele dia. Ele concordou pelo respeito que um ser humano possa ter e seguiu à banca de frutas.

Ela não chorou durante as rabanadas e a farofa especial Não porque não tivesse mais lágrimas, mas porque não havia motivos para tal. Ele encontrou alguns amigos pelo bairro e sorriu como há dias não sorria e desejou que a noite fosse boa a todos e a si mesmo.

Ele chegou e foi preparar o chester, a pedido da sogra. Durante as pinceladas na ave, ela perguntou a  ele se se lembrava da noite que a mãe retirou do prato da nora a fatia mais farta. Eles riram e foi o momento mais suave entre o casal, desde começo de agosto.

A porta se abriu com um sorriso lindo e os olhos brilhando. O marido apareceu logo atrás, segurando a sacola da sogra, não sem antes beijar a esposa e esta devolver o gracejo afagando-lhe seu rosto. E assim o silêncio de meses era quebrado pelo som daquela noite

Entre um drinque e outro, eles trocaram carícias e sorrisos, além de copos e petiscos. Os sorrisos estavam por ali, em cada canto das luzes da árvore, em cada canto das luzes da casa. Antes da ceia, ele pediu a palavra, levantou-se e agradeceu a cada um que ali estava, sempre segurando a mão da esposa. Todos sorriram e ambos coraram.

A entrega dos presentes foi divertida, porque o piano ressoou lindo nas mãos do sogro dela e todos embalaram, afinados até, as canções de natal até acabar em Beatles ou Sinatra, que foi tema da dança do casal há 6 anos e requisitaram um replay todos de lá. E dançaram sem graça em passos quase desenfreados, em pisões quase evitados. E, ainda assim, na última estrofe acertaram o passo.

Aos poucos, o silêncio começou a tomar conta. Aos poucos, os passos foram cessando por ali e alguns mais resistentes ficavam ao redor da mesa, porque o melhor da festa sempre é falar sobre ela já com os pés descalços e as calças desabotoadas. Os cunhados até beberiam o café, entretanto perceberam que a mulher estava dormindo no colo do marido.

Eles decidiram sair de fininho e mandaram o rapaz não se levantar, apagaram as luzes da cozinha, da sala e saíram. Deixaram somente a luz do abajur ali. Ele olhou o rosto cansado da esposa e afastou uma mecha do cabelo que teimava em se emaranhar nos cílios dela. E se lembrou de toda a farsa daquela noite. 

Não mentiria se dissesse que achou interessante. Sem perceber, deu um beijo na bochecha dela. Ela sorriu. E nada mais foi dito a partir daquele momento nem se sabe o que aconteceu, porque a luz do abajur se apagou e isso não estava no script...

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

UMA POSE PRA MAMÃE

Estava decidida a não tirar fotos da primeira apresentação de Natal do filho com o celular. Obcecada pela revista CARAS e todas as celebridades em fotos com os pequenos lindas e nítidas, obrigou o marido a comprar o que de mais moderna e nítida uma Canon poderia ser. Conseguiu uma T5i, pela barganha de 3.500 reais e se matriculou num curso, 3 meses antes.

Estava decidida a fazer todos os que conseguisse. Abriu mão da manicure duas vezes na semana, conseguiu ir ao cabeleireiro apenas uma vez a cada 7 dias. Dispensou as compras no shopping. Quer dizer, conseguiu fazê-las a cada 15 dias. Pilates, bronzeamento artificial e outras importâncias ficaram para trás. Ela tinha de testar a máquina e justificar o investimento.

A família duvidou, mas o amor pelo filho, bem, a vontade de fotografá-lo tal qual os filhos da Angélica e do Hulk era maior que tudo. Desafiada, anotou tudo que podia. Quebrou a unha por causa disso e não soube escrever Cartier Bresson, que jurava ser uma grife nova francesa. Dedicou-se em parques, em festinhas, com o poodle e lançou-se a júri nas redes sociais. 

E não é que a Sebastião Salgado não fez feio? Eram incontáveis os "são suas?" nos comentários. Orgulhosa, ainda que não se lembrasse de tudo, os cliques deixavam longe as imagens feitas em qualquer Iphone e soube, a 1 semana do evento, que conseguiria fazer inveja a qualquer mãe que tentasse ficar parelho a ela.

Dia da festinha. As crianças do maternal 1 seriam as últimas, porque a tradição de ver os pequenos fantasiados e imitando os passos da professora sempre roubaria qualquer apresentação. O menino de 3 anos estava na coxia. A mãe desfilava com a Canon, quase que uma credencial. E a moça começou a fazer alguns testes. Uma outra mãe conferiu a primeira foto e ficou boquiaberta. Felicidades! Felicidades!

Já imaginou pegar o moleque rapidamente e voar com ele para casa para postar cada movimento, cada gesto. Triunfou. Depois de quase intermináveis 60 minutos, finalmente a turminha de 10 alunos do maternal entrou. Lindos, de macacões vermelhos e gorros e bochechas rubros.

E a música começou e todos alinhados embalaram num sincronismo lindo. Clique. Todos estavam maravilhosos, mas o moleque realmente tinha talento e roubava a cena. Clique. Os aplausos entre um gesto e outro eram frequentes. Clique. Por minutos, todos esqueciam das dores, dos problemas e viam que a esperança ainda poderia prevalecer. Clique. Os sorrisos das crianças, o orgulho e emoção dos pais, nada escapava das lentes. Clique. Até o movimento final de agradecimento, fori uma doce eternidade e o teatro do colégio veio abaixo em assovios e ovações. Clique. Clique. Clique.

Naquela noite, as mães orgulhosas postaram as fotos de seus pimpolhos, cada qual a seu jeito, a seu modo. Entretanto, nossa Bresson não. Ela não conseguiu fazer uma foto, porque - ao ver os olhos do menino brilhando para ela - a única coisa que conseguiu fazer, depois de chorar a apresentação toda, foi tomar um sorvete de creme, talvez o mais saboroso até então. Clique.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O CARROSSEL DE DONA MARIANA


Aos 90 anos, dona Mariana queria andar num carrossel, era esse o pedido de aniversário. Não queria festa, não queria bolo, queria apenas andar num carrossel. Apaixonou-se por um aos 20 e deixou-se envelhecer, quando se torna criança de novo, para exigir tal capricho.


As netas não se conformavam, quem sabe uma viagem às origens, na Itália, ou os filhos, uma festa surpresa, com amigos da infância, já sendo revirados em redes sociais etc. Nada deixava mais brilhantes os olhos da senhora que um carrossel.

As bisnetas ficaram loucas, endossaram o pedido da bisa e começaram uma campanha nas redes sociais: #levemminhabisaaocarrossel. Mais de 4000 curtidas em duas semanas.

Filhos não conseguiram se render. E naquele domingo, uma comitiva dos Manfredinni foi a São Bernardo do Campo, SP, onde encontraram um, a muito custo. Sol escaldante, mas o ar-condicionado deixou a velhinha acesa. Não sabia aonde iria, no entanto julgou algo sério, porque se ninguém morreu ou casou e todos estavam presentes, desejou ser o que sempre quis.

E sorriu como criança ao ver aquilo. Sorriu como nunca sorrira na vida, porque teve a certeza de que os sonhos podem acontecer, mesmo que levem 70 anos.

As bisnetas a pegaram pelas mãos, e pode-se dizer que o clã preencheu o decadente lugar. Não havia mais do que 30 pessoas no parque. A comitiva quase dobrou o lugar. Entraram e rumaram direto ao carrossel. O filho mais velho preencheu com 50 reais a mão da operadora, pedindo que Mariana fosse sozinha no brinquedo, umas voltas só dela, um sonho que se sonhou sozinha.

E assim aconteceu. Demorou quase 5 minutos para ajeitá-la no brinquedo. O parque parou. Visitantes, empregados, todos logo souberam de tudo e largaram por minutos a vida, porque quando sonhos acontecem, embalamos nos dos outros.

E o círculo se fez, tudo pronto. A roda começou a girar, não se sabia para onde olhar, se para o sorriso maravilhado de Mariana, se para as lágrimas de todos por ali ou para as palmas que embalavam cada aceno que ela dava em cada volta, sentada num cavalinho rosa.

Talvez as voltas tenham durado uns 5 minutos ou menos. Mas foram os 5 minutos mais felizes de uma mulher que venceu a Segunda Guerra, perdeu o marido com 5 filhos. Trabalhou como costureira e abriu o próprio ateliê. Expandiu para o Brasil e dois países da América do Sul e para Itália a sua marca.

Seis idiomas. Um patrimônio que poderia comprar a Disneylândia, mas o que ela realmente queria eram as voltas no carrossel.


Quando parou, todos aplaudiram e ela acenava feliz, feliz. O filho mais velho chegou e perguntou se queria mais voltas. Disse que não, "realizar um sonho era divino, mas abusar dele seria indigno".

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O SINO AINDA NÃO TOCOU

Sentou-se na praia deserta. Olhou adiante e tão indeciso quanto as ondas ora desejava ser engolido por uma ora torcia para que algumas não o pegassem. Olhou aos lados e só sentiu a brisa forte. Respirou fundo.


Teve a ideia de se levantar e andar. Teria de andar, talvez sentir a areia prender-lhe os movimentos, não poderia saber se algo o agarrava ou se desfazia do passado. Não percebeu que o mar apagava suas pegadas. Talvez desejasse que apagasse as dores que acumulou até aquele dia.

Não havia sol e pensou ser como sombra, intocado por nada. Teve a certeza de que Cristo não teria passado quarenta dias em reclusão, porém era disso que precisava. Andaria por 40 dias, ficaria calado por 40 dias purgar-se-ia por 40 dias.

Havia ninguém por ali. Caminhou por uns 15 minutos e, como na vida, sentiu que mesmo andando parecia estar no mesmo lugar. 15 anos deixados para trás, os mesmos 15 minutos deixados para trás. Respirou fundo. Ajoelhou e passou cavoucar a areia com o indicador, como se pudesse procurar algo, desvendar outro ou esconder mais um.

Não se lembrou se deixou os chinelos no carro. Sentiu frio, sentiu-se só, mas não solidão, um vazio, porém não se entristeceu com isso, apenas sentiu. Tentou deixar o som em volta dizer o que tinha de ser dito. Deixou que a própria consciência tentasse gritar mais que a maresia daquela tarde cinza.

Sentou-se nos calcanhares, abraçou os joelhos e não imaginou até quando pudesse ficar daquele jeito. Procurou alguma resposta em mais uma onda que chegava e perdeu as contas de quantas esperou para isso acontecer.

Viu um siri, que tentava se enfiar na areia. Pensou em ajudá-lo, preferiu apenas não intervir naquela ação. Enfim,  o bicho conseguiu.

E foi então que soube que tinha de fazer, a única coisa cabível, a última chance e mais uma de acertar. Tantos anos andando de lado, decidiu ser siri e se esconder no mundo, enfiar-se na vida e tampar-se com os dias.

Voltou ao carro, pôs-se na estrada e seguiu. Os chinelos ficaram na praia mesmo, pois os pés que os calçaram uma vez agora não lhe serviriam mais

terça-feira, 25 de novembro de 2014

PRESENTES DE GREGO

Na década de 1950, era comum haver trens-restaurante que cortavam o interior de SP. Talvez não nos seja interessante saber toda a logística, os horários ou o menu servido por lá, talvez nos seja mais interessante saber - sobre trilhos - quais narrativas podemos aproveitar para enganar o tempo.

Sabe-se lá por que havia uma rixa entre o cozinheiro e o garçom, devem ser essas coisas que carecem de uma explicação cósmica ou filosófica sobre como os santos não batiam. 

Talvez tenha sido pelo sotaque grego acentuado do garçom. Sua ascendência era clara, no entanto nem sempre aceita de modo amistoso. O cozinheiro adorava brincar com as palavras erradas do capitão. Uma resposta atravessada aqui, uma piada de mau gosto ali, e assim o chacoalhar do trem ia e vinha diariamente.

Dentre muitos fatos curiosos, um em especial era o ritual de jogar as tampinhas das garrafas às crianças no trajeto Bauru-Perdeneiras. Os 4 garçons acumulavam as tampinhas e as atiravam religiosamente todas as tardes para os sedentos pimpolhos usarem em brinquedos e tudo mais que a imaginação mais profunda permitir. 

O filho do garçom era alucinado pelas tampinhas e liderava o grupo de crianças. Naquele dia, um cliente reclamou da consistência do macarrão e o cozinheiro foi informado com o cinismo peculiar do inimigo. Não foi pelo cliente nem pelo trabalho, foi pela intenção. 

Como a vingança é maldade e não justiça, coube ao chef naquela tarde jogar as tapinhas aos meninos, não sem antes colocá-las no forno e atirá-las em brasa aos inocentes sorridentes por ali.

No dia seguinte, na viagem de volta, no exato local onde as crianças ficavam, o garçom saiu ao máximo para dar um aceno ao filho, mas se espantou ao ver somente o barranco. Mais espanto ainda e raiva ao saber o porquê do não-quórum daquela tarde.

Como a vingança é maldade e não justiça, mal sorriu aos clientes e não trocou farpas com o cozinheiro, na verdade mal se olharam naquele dia. Tentou imaginar de tudo, porém nada o atingia.

Foi então que passou perto da cozinha, ouviu a reclamação do cozinheiro, falando que os sapatos haviam molhado quando lavava o assoalho. Sorriu. Iluminou-se. Conseguiu encontrar o par e, num ímpeto de ajuda, ligou o forno no máximo e tacou-os ali.

Em minutos, o cheiro de couro tostando ficou evidente, invadiu todo o trem, causando um mal-estar horrendo e com boatos de incêndio. Não demorou para que todos soubessem a verdade, que apareceu naturalmente, como o sol num dia de verão.

Naquela noite, o garçom ficou sem emprego, o cozinheiro ficou descalço, mas o Júnior teve para ele umas dez tampinhas que o pai conseguiu guardar no bolso enquanto se despedia dos amigos. 


terça-feira, 18 de novembro de 2014

MILAGRES

E a menina sentou-se na calçada, imitando pai, porque ele o fazia com frequência, logo após mexer nas motos. Sujo de graxa, com uma bandana na cabeça, ao som de Janis Joplin. Imitava o mesmo gesto dele, milimetricamente, porque ele era tudo.

Bebia seu refrigerante como ele bebia sua cerveja. Até o mesmo movimento de passar a mão no cabelo, simulando um dia quente e cansativo ela sabia fazer. Era pós-doutorada no velho e o tinha como deus.

Nas tarde de sábado, ele a colocava na garupa e punham-se a rodar pela estrada, sem destino, apenas o barulho do motor e o vento no rosto. Ela encostava a cabeça nas costas dele e se sentia única, protegida. Aquilo era melhor que o sorvete de creme no fim do passeio.

Talvez tenha sido na saída do bar. O pai caiu, de uma vez, junto com o sorvete, que estava pela metade. Ela berrou, e os velhos de dentro saíram para acudir.

Talvez tenha sido o cigarro, 3 maços por dia, talvez tenha sido a bebida, não importava, algo deveria ser feito. Ela não titubeou, mesmo pequena, subiu na moto gigantesca, sabia tudo dela – e seguiu para o hospital mais próximo.

Lembrou-se de todas as curvas, como deitar, a velocidade certa, o tempo certo de tudo. Ninguém conseguiria explicar, mas ela chegou ao hospital e conseguiu acionar uma ambulância.

Mais uma vez, subiu na moto, sob o espanto de todos e guiou-os até o local. Ele ainda estava lá, imóvel. A equipe foi rápida. Em minutos prestava os primeiros socorros. Senão fosse pelo milagre daquela garota, que, aos 6 anos, conseguiu pilotar uma moto, outro milagre não teria acontecido e o pai não estaria vivo.

Mas milagres não acontecem sempre, era isso que ela pensava, era isso que todos pensaram e foi isso que realmente foi comentado. E era Janis Joplin que tocava naquele dia, assim que a menina chegou em casa. Ela passou a tarde inteira sozinha, tentando subir na moto.    

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O SABOR DA CONQUISTA

E voltava a criança feliz pelos doces que conseguiu angariando com o Halloween importado dos EUA. Carinha de anjo, vestido de bruxa e olhinhos ternos, precisou de poucas palavras para tal, a figura já derretia o coração dos moradores.

Não precisou de ninguém, ao pedir balas e afins à mãe, ouviu que deveria lutar por isso. Depois de umas horas inconformada, perguntou-se por que não. E decidiu seguir em frente. Pegou a fantasia de bruxa do último sábado, pintou os lábios de preto e seguiu em frente. 

Os olhinhos azuis brilhavam a cada conquista. Balas, chocolates, bolachas e outras iguarias que fariam qualquer abelha segui-la por dias, por meses, tanto foram os sucessos devolvidos ao talento nato da garota.

E agora a menina voltava com mais do que doces, antes de saborear cada guloseima, sentiu que o sabor da conquista vale mais do que qualquer chocolate. Já eram 17h, quando decidiu sentar na calçada e espalhar tudo e contabilizar cada troféu.

As balas coloridas, as bolachas recheadas e os chocolates brilhantes estavam por ali. Ela os organizou  por tipo e em fileiras. Foram 30 balas, três pacotes de bolachas e 10 tabletes de chocolate, sendo dois brancos.

Talvez tenham sido as cores, talvez tenham sido os cheiros, mas ela não percebeu que uma outra criança se aproximava. Tímida, pés sujos, sem água no corpo mas com ela na boca. Os olhinhos daquele menino de uns 4 anos no máximo eram de um hipnotismo só.

Mal se aproximava, talvez o medo o barrasse, talvez a fome o convidasse. Ele deve ter pensado "Nossa, um de cada já estaria bom". A menina deve ter pensado: "Há o suficiente para ambos".

Ele não podia se aproximar mais, porque a garota agora o olhava, sem expressão de medo ou de asco, muito menos de convite. Apenas olhava. Ele trazia aquele olhar  fácil que somente a fome é capaz de contornar.

Ela parou, baixou os olhos em tudo e recolheu de volta ao saco. Levantou-se e sorriu ao menino enquanto andava até ele, que recuou um dois passos antes de ficar mais próxima. Ele alcançava quase o queixo da menina. Ela parou, olhou-o de cima abaixo, sorriu de novo, ele sorriu de volta.

Minutos depois, ela chegava em casa. A mãe perguntara onde a menina estivera e orgulhou-se ao saber o que tinha feito.

A 300 metros de lá, uma campainha soou, a moradora abriu:

- Doce ou travessura?

A fantasia estava grande, mas ainda dava para ver os pés sujos...

terça-feira, 11 de novembro de 2014

ESQUEÇA DE ESPERAR

Não se lembrava de quando foi a primeira vez que a ansiedade apareceu, mas lembrava-se, com certeza, da primeira vez que aprendeu a ter paciência. Certa vez o avô combinou de buscar o neto para uma temporada numa fazenda. Talvez tenha sido a mesma época em que escutou "janeiro" na vida.  

Quase não dormiu de alegria esperando aquele janeiro chegar, mesmo que 4 deles já houvessem passado. No dia seguinte, ligou para o avô e perguntou quando seria janeiro. Foi quando ouviu pela primeira vez do avô:

- Sempre que você esperar por algo, não espere, porque esse algo virá no momento certo. Esqueça de esperar.

Era difícil esquecer aquilo. Os dias passavam e janeiro nunca vinha. Houve mais duas ligações e o menino teve de ouvir, da última vez, repetiu sorrindo o que o avô dissera. E as brincadeiras vieram, outras horas apareceram e o menino esqueceu. Até que um dia, pela manhã, o avô estava na porta, estendendo a mão e dizendo: "Hora de se lembrar".

E o garoto sorriu o mais belo sorriso e percebeu que o tempo voara, que janeiros não demoravam tanto assim. Ao dizer isso ao avô, escutou que esquecer de esperar sempre adiantava o momento certo, sempre estreitava a felicidade e dava a ela mais sabor e alegria.

Anos depois, a primeira namorada decidiu fazer um intercâmbio na Europa e voltaria 8 meses depois. Sofreu como ninguém. Estava amuado no canto, quando o avô apareceu e soube da história. O rapaz, que olhava pela janela, como se a trouxesse de volta com os olhos, mal reparou na mão rugosa sobre seus ombros. Ele tentou devolver um sorriso bom, mas devolveu um sorriso amarelo. 

Ele sabia o que o avô diria, mas não escutou coisa alguma, porque o avô sabia que o conselho estava no coração do rapaz, e os dois permaneceram em silêncio. Não o mesmo silêncio de meses depois, quando viu o rapaz saltitante passar pela porta trazendo na mão a mulher de sua vida. Ele parou em frente ao avô e sorriu com o conselho nos lábios.

Não nos cabe aqui saber quanto tempo se passou. Cabe saber que o telefone tocou, e o homem agora o atendia com o coração na boca, porque sabia do que se tratava. Em minutos, ele estava no hospital, esperando para ver o avô na UTI. Os 92 anos já não eram encorajadores. Sabia que todas as lições haviam sido passadas e o neto foi até lá para se despedir.

Quando entrou, viu-o desacordado. Apenas aproximou-se dele e o beijou na testa. Antes de sair, chegou perto do ouvido do avô e disse que esperaria que ele ensinasse a todos no céu. Chorou um choro seco de som, engoliu o egoísmo e seguiu saudoso e orgulhoso do melhor professor que teve. Que decididamente já esperaria por isso.

Quase gelou quando o telefone soou no meio da madrugada. Olhou para a esposa, que trazia as lágrimas das saudades e do companheirismo. Ele não quis atender, mas sabia que devia, que era o momento certo. Por segundos, ficou orgulhoso, porque esqueceu de esperar pela morte do avô. Não teve tempo de falar, apenas escutou o que tinha pra escutar naquele momento: "Esqueça de esperar".

Chovia muito e o sono veio leve, porque havia alguém ainda de olhos abertos, porque algo sempre vem no momento certo.


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

OS CARENTES

O cara adorava aquele carro. Era sua paixão. Mais que gente, mais que a si mesmo, aquele Fusca azul, 1977, com tudo original, representava todos os fetiches, desejos e sonhos do homem.

Não saía com ele, mas todo sábado tinha o ritual da manhã. Ele o lavava e o polia, religiosamente, as 3 horas do dia eram de deleito e de entrega. O amor incondicional. Colocava as fitas K7 de cromo para tocar. Lavava tapetes, aspirava o pó que nunca existia, passava álcool nos vidros, nos bancos, borrifava Gleyde por dentro.

Só depois saía pelo bairro, como recompensa a si mesmo, como troféu a si mesmo. Colocava uns cinco litros de gasolina e o guardava para o ritual da semana que vem.

Nem mesmo o importado japonês tirava o brilho daquela relíquia.

Fato é que um primo do outro lado da cidade, amigão de infância e carente desde então, pedia há meses pela presença do rapaz. Um abraço, um papo etc. Comissário de bordo, eram raras as chances de se verem.

E foi num sábado que a tia ligou chorando, dizendo que o filho estava muito mal e que só a família, o primo, poderia dar um apoio a ele. O problema é que isso o atrasou no trato do Fusca, mas maior ainda foi a mãe endossando o protocolo familiar.

Justamente no dia seguinte à ida do japonês à revisão. O azulzinho restava para que o remorso não falasse alto. A muito custo, decidiu adiar o ritual e seguir com o carro os 20 km que separavam os dois.

Mas, antes, teve de parar para se garantir. Como o carro não tinha seguro e tudo que se ama é natural que se proteja, o primo sorriu a cântaros quando o viu chegando e teve de esperar uns 15 minutos, enquanto ele embalava o carro com plástico bolha, uma dezena de voltas e passava correntes nas portas fechando-as com cadeados de Alcatraz.

Daí sim seria todo ouvidos e abraços. E foi o que aconteceu, ouviu medos, problemas, deu conselhos, adorou o café com o bolo de fubá, riram da infância, foram 4 horas muito agradáveis.

Horas essas que seriam lindas, se não tivesse visto o que viu assim que deixou a porta de entrada. No lugar das rodas, havia pilhas de listas telefônicas velhas. Sim, todas as 4 rodas haviam sido levadas.

Talvez uma retaliação às correntes nas portas.

O sorriso sumiu. A alegria decolou. Melhor não detalhar tudo, problemas em família todos têm. E, com aquele acontecimento, o dono do Fusca soube duas coisas nessa vida: a primeira, que havia uma loja especializada em rodas de Fusca dos anos 70, idênticas; e a segunda, quem precisa de abraço não espera, vai até ele!


sexta-feira, 31 de outubro de 2014

(IN)COMPATÍVEL

Não era comum o menino se isolar. Desde pequeno, a mãe sempre o encontrava entre livros e desenhos no quarto, só. Quieto, não brincava porque não gostava de brincar. Era julgado porque apenas não fazia o que todos normalmente fariam.

Não teve amigos na infância, porque não acreditava nas crianças. Principalmente depois que o avô morreu, o pai prometera ninguém deixava esse mundo. E as histórias antes de dormir ficaram apenas nos olhos dele. Não teve mais a mão enrugada para segurar o livro ou a voz rouca pra embalar seu sono.

Cresceu isolado. Boas notas. Sem trabalho nem ruídos. A família mal percebeu a adolescência e não reparou na gravata do primeiro estágio. O silêncio e suas esquisitices de solidão sempre incomodaram pais e irmãos. E como toda família tem lá seu doente, a barata de Kafka, decidiram fingir que ele não existia.

E foi a melhor saída para ambos. “Não se perca nessa vida”, foi o único conselho que a mãe lhe deu. Mal parava em casa. Trabalhava o dia todo e sentava no fundo da sala à noite.

Brilhante funcionário. Estupendo amigo. Irmão bizarro, filho esquisito, sobrinho perdido. Cansou de tentar entender por que nunca se encaixaria com aquelas pessoas.

Aos 23, saiu de casa, alugou uma quitinete perto do trabalho. Comprou um pró-seco, mesmo que não bebesse. E teve a noite mais linda que pôde imaginar. Apagou as luzes, colocou Sinatra no ipod e bebeu vendo as luzes da cidade.

Sentiu-se acompanhado. Amparado por si mesmo, sem fantasmas nem olhos curiosos. Sabia que precisava disso, sempre soube.

Bebeu apenas um copo. Foi até a sacada e teve a certeza de que se morresse naquele instante seria a pessoa mais feliz do mundo.

Abriu OS MENINOS DA RUA PAULO e leu para si, imitando a voz do avô, chorou como nunca, como deveria ter chorado quando ele se foi. Fechou o livro. Enterrou o avô de vez em sua vida.

Seis meses depois, durante o almoço, justamente no dia do seu aniversário, viu o pai e a mãe andando em direção a ele. Não titubeou, ergueu a cabeça e atravessou a calçada. Soube então que realmente o passado ia deixando coisas pelo caminho.

Entrou no restaurante e saboreou o melhor contrafilé com fritas da sua vida. Sorriu. Choraria como criança mais tarde, pela festa surpresa que os amigos fizeram a ele.

E, pela primeira vez, perdeu a hora no dia seguinte.

  

terça-feira, 28 de outubro de 2014

LIGA PRA MIM!

Ela disse que ligaria. Confirmei duas vezes ontem e ela prometeu que entraria em contato. Não se pode deixar um tesouro assim sumir. E que sorriso, parece que ilumina tudo em volta. Deixa a paisagem cinza vermelha, um ponto amarelo no nada. Ouro.

22h. O curso acabou agora, até sair da sala, mais uns dez minutos, em quinze minutos tudo se resolve. Acho que as flores foram decisivas, rosas colombianas sempre ajudam. Funcionaram com aquela outra. Tudo bem que não era como essa. 

Bip.

Opa... Rubão, te respondo daqui a pouco. Será que eu ligo? Melhor não. Pegajoso demais. Será que ela curtiu o cartão e as mensagens que mandei à tarde? Acho que dei sorte. Talvez aquela música do Kenny G. fez o desfecho. Sim. Mulher adora saxofone... Ou eu sonhei?

Bip.

Opa... Rubão, que coisa, já mando a resposta. 22h10. Melhor ligar. Não, mensagem, bem doce. Mulher gosta de homem doce.. Ou eu sonhei? "Princesa, cada gesto seu é uma vida para mim". Bingo! Quero ver não ligar agora...

Bip.

Opa... Caralho, Rubão, nada é mais importante que a ligação dela. Às vezes fica sem sinal dentro da faculdade. Será que ela viu a mensagem? Se tiver uma galera por lá, ela nem escutou o sms. 22h20. Ah, deve estar mostrando para as amigas. Poxa, romantismo é tudo. Mulher adora cara romântico... Ou eu sonhei?

Bip.

Opa... Rubão, puta que pariu, tomar no cu. Só ligo depois que minha princesa ligar. Meu, que coisa, se eu não insistir, acabo não pegando essa mulher. Nem um beijo ainda. Vou ligar. Não. Ligo? Vou ligar, mulher gosta de cara insistente... Ou eu sonhei?

Atende... Atende... Atende...

Bip.

Alô, Rubão, seu corno!!! Diga logo o que você quer! Isso, loira! Isso, tatuagem de borboleta! Isso, no ombro esquerdo! Hã? Como você sabe? Hã??? Mas é uma borboleta azul e... Isso. Você tem certeza? De mãos dadas? Mas na boca? Mesmo?

Será que ela era demais pra mim? Melhor dormir...

6h25. Bip. Opa... Um abraço. Um abraço? Abraço? Será que ela mandou para o cara certo? Mas ela piscou pra mim. Mandei as rosas, será que não fui claro? Rosas, mensagens? Será que ela não queria? Ou será que sonhei?


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

PROFESSORA VERA, OBRIGADO POR TUDO!

É comum o primeiro super-herói de uma criança ser o pai. E se os heróis vêm e vão, certamente o segundo é o professor. Tenho certeza de que não existe uma só pessoa nesse mundo que não tenha um ídolo do tablado.

Seja pela didática, pela frase certa ou apenas pela paixão impossível, todos têm uma história única sobre tais profissionais.

Comigo não seria diferente, meus heróis se encaixam em várias categorias, Angélica, da terceira série, minha primeira paixão, Sônia, da primeira série, minha alfabetizadora, Marina, de Matemática, minha primeira nota baixa e Verinha, de Gramática, minha determinante.

Fui aluno dela em dois momentos da minha vida. Sétima série e primeiro ano da faculdade. Quando tinha 13 anos, ela invadiu a sala, meiga, falando com uma perfeição irritante, determinada e marcante. 

9 anos depois, ela entra no primeiro dia de aula na Universidade, olha bem fundo em meus olhos e disse: “Alexandre?” – e eu: “Adriano”, ela: “Mas é Paciello!”

Incrível! Perguntei a ela como se lembrava de meu sobrenome e ela me respondeu uma coisa que levo até hoje comigo em minhas aulas: “Quando se faz o que ama, sua memória anda ao seu lado, aluno aprende mais fácil quando chamado pelo nome”.

Decidi treinar minha memória e consegui. Entretanto o que me mais me marcava era vê-la entrar em sala, com o abrigo branco e apenas os gizes na mão. Tentava ver o conhecimento dela em livros, papéis, porém ela, caprichosamente, deixava tudo registrado na lousa. Cansei de quantas vezes mentalizei “se fosse professor, amaria entrar na sala somente com os gizes na mão e a gramática na cabeça”.

E hoje, 19 anos depois, com a memória sentada ao meu lado enquanto digito, lembro-me de uma aula numa manhã de quinta-feira, em 2005. Ao término de um período desgastante de análise sintática, com a Ave-Maria toda analisada na lousa, uma moça vem até mim e diz:

- Sabe o que mais me impressiona em sua didática? É que você só traz giz para a sala!

O nome dessa aluna era Vera. E enquanto ela saía, não pude deixar de sorrir e ver que minha paixão em lecionar estava completa, porque, de uma forma ou outra, minha mestra esteve lá e se confessou orgulhosa do excelente trabalho que deixou em mim: alguém que faz o que ama.

Professora Verinha ainda está na ativa. Se não em uma sala de aula, mas como minha memória, ao meu lado, tomando tudo o que me ensinou e repetindo pacientemente:

- Muito bem, Paciello, muito bem.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

PODEROSA

Amanda nasceu forte e poderosa. Orgulhava-se a mãe de a menina não ter chorado quando veio ao mundo. Disse o pai que o olhar que a filha dera ao médico era algo estarrecedor. E foi assim que cresceu. Aos 11 meses, a primeira palavra que saiu de sua boca foi "poder". E dele nunca mais se desgarrou.

Certa vez, numa brincadeira de rua, a tão famosa e esquecida "barra manteiga", ninguém conseguia pegá-la na corrida. Até que um menino a desafiou e foi perseguido em 10 segundos. No décimo primeiro, ela o agarrou pela gola da camisa e disse: "Ninguém pode comigo, porque eu tenho o poder".

Cresceu com olhar forte e claro. Não era fácil de se olhar para aquele par. Diziam os meninos que eram olhos de amor e de ódio. Aos 12, durante uma prova, a professora de Matemática teve a certeza de que Amanda estava colando, pois olhava incessantemente por debaixo da carteira. Alertada, ela se assustou com o chamado da mestra, que indagou sobre a legitimidade dos acertos.

A menina justificou as olhadas, porque procurava por uma borracha. A professora desconfiou. Então, a aluna não titubeou e disse que responderia de cabeça, passo a passo, as 5 expressões da prova e que tiraria a nota máxima. 

Desafiada, a professora aceitou o desafio e disse que ela faria sozinha, assim que todos entregassem o exame. E que o desafio seria visto por todos da sala. A garota aceitou e endossou que, se errasse apenas uma expressão, a professora poderia lhe dar zero. A sala toda entregou a prova e esperou pelo desafio, vencido outra vez pela menina, que, antes de sair da sala, disse à professora: "Tirei 10 porque eu tenho poder".

Dedicou-se e formou-se advogada. Sedenta por admiração, não se contentava com as causas ganhas. Virou professora e passou a lecionar. E, claro, suas histórias continuavam. Certa vez, num exame oral, a melhor aluna da sala expôs-se a favor da adoção de uma criança por homossexuais. Fator de negação por Amanda, que, justificando haver diversas opiniões divergentes na jurisprudência, discordou da moça, alegando ser a dela própria a ideal. 

A estudante não se conformava com a reprovação, pois, amparada pela lei, poderia receber a nota justa. No entanto, a professora naquele momento disse: "A diferença entre mim e você é que eu tenho como negar sua defesa, porque eu tenho o poder".

Era a advogada que mais ganhava causas no escritório. Não demoraria para se tornar chefe. Tinha uma oralidade colossal, uma forma de envolver cativante e aquele olhar fixo e determinado. 

Recebeu o convite para trabalhar no maior escritório de advocacia da capital. Depois de 10 anos fazendo o próprio nome, estava prestes a assumir a sociedade daquele prédio espelhado e ter abaixo quase 15 advogados para odiá-la.

O iphone tocou no caminho. Estava num caso de divórcio litigioso pesado entre um empresário e sua esposa. O jantar com o chefão foi aceito. O sorriso veio em seguida e pediu ao taxista que fizesse o caminho mais longo ao fórum, mesmo que a dois quilômetros de lá, para saborear o que tanto sonhou. Decidiu abrir o perfil de sua fan page: 60 mil curtidas. Imaginou-se com 100 mil em pouco tempo, logo após o término do processo a seguir.

Empresário renomado no ramo da música. Sem filhos, 20 anos depois de um casamento marcado pelo patrocínio às compras da esposa, a ex agora queria uma pensão de 50 mil reais e a casa de Búzios. A suposta traição noticiada pelas revistas endossava a causa do rapaz, que pagava caro pelo serviço certeiro de Amanda.

Imprensa reunida na entrada do fórum. Fotos, entrevistas e o mundo de Caras nas leis do Direito. Prato cheio à mulher. Expostas as justificativas. Fotos comprometedoras da ex-esposa e a alegação de que o empresário não era um banco ou uma empresa filantrópica. O advogado de defesa não conseguiu sustentação necessária para que a juíza cresse na inocência e no merecimento de sua cliente.

Praticamente entregava os pontos, rendido à eficácia de Amanda, que conseguia deixar a ex-esposa escandalizada pelas jóias, o cabelo e o olhar. Desejou matá-la apenas para poder se vestir dela. O empresário sorriu. Amanda sorriu. E então coube à juíza decretar a sentença apenas como mera formalidade: "Fica a senhora Roberta Cordeiro com a pensão de 50 mil reais e a casa de Búzios como forma de amenizar as injúrias infundadas alegadas pela acusação".

O martelo soou forte. Ninguém acreditou. Amanda não conseguiu juntar as peças e quis matar a ex-esposa, quando esta sorriu e a mediu de cima a baixo. O empresário não entendeu. Ninguém entendeu. Amanda ficou sem palavras, porque nunca aprendera a refutar contra a derrota. Deixou que todos saíssem e por lá ficou. Tinha que evitar a imprensa, porque não havia o que falar. 

Fugiu pelo elevador contrário ao principal. Entrou só e desejou ficar só, mas ele parou no 4º andar, e a juíza entrou. Amanda queria esganá-la, mas não sabia onde colocar todos os produtos da Mac que preenchiam seu rosto. Silêncio. Térreo, a juíza saiu na frente, no entanto parou e voltou para a ainda cabisbaixa advogada, que teve de ouvir: "A diferença entre mim e você é que eu tenho como negar sua defesa, porque eu tenho o poder, mas o meu é com PH, doutora".




quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A CONCURSEIRA

Vida de concurseiro não fácil. A pessoa muitas vezes está desempregada e arranja uma profissão pior que a de estagiário: estudante.

E o caso daquela menina não era diferente. Vejamos de perto. Formada em Direito, experiência de mais de 10 anos em uma multinacional, desempregada há seis meses, não viu outra alternativa senão prestar um concurso.

Não se sentava numa sala desde os tempos da faculdade. Teve de reaprender a estudar, reaprender português, matemática, e teve a certeza de nunca ter aprendido as duas matérias de modo certo.

Teve de pegar professores alegres, daqueles que incentivam a sala, vocês conhecem o tipo (risos). Pela primeira vez, não poderia torcer pelo colega ao lado, era um concorrente como ela. No desespero, encara fórum de debates via internet e todo aquele lixo de causos e sofreguidão.

Em dois meses, deparou-se com um concurso de nível médio. Pensou “fácil”. Os anos de experiência e os de estudo seriam aliados imediatos. Mas na primeira aula de informática, seu sorriso caiu. Percebeu que o diploma num concurso pode valer nada.

Tinha certeza de que mergulhar a cara nos livros e sanar todas dúvidas seria a melhor chance de conseguir. Mesmo que a vida não estivesse boa. Mesmo que o casamento estivesse por um fio. Mesmo que a família toda não entendesse como seria difícil passar a um cargo com míseros 3 mil reais mensais a quem já ganhou o triplo disso.

Depositou toda sua fé, toda sua esperança, horas e dedicação às leis do direito, dos números, do mundo virtual e da gramática. Só conseguiria ser feliz se provasse a todos que era capaz.

E caiu na pior das provações: a alheia. Estudava pelos outros, para os outros e nunca pensou no que realmente queria, no que realmente desejava. “Ter a estabilidade profissional a faria maior que tudo”, pensou.

3 meses sem sair, sem amigos, sem transar, sem beijar. 3 meses apenas de livros e mais livros. Orgulho dos pais, ódio do marido, incompreensão dos amigos, tornava-se alvo de sentimentos distintos. Mas tudo pela estabilidade profissional e poder jogar na cara de todos que era capaz.

Dia da prova. Ouviu os incentivos em forma de diabo, o belzebu soprava palavras de incentivo: “confiamos em você”, “estudou tanto, vai passar”, “não há como”, “uma moça de nível superior não tem como não passar a um concurso de nível médio”, “você nunca me decepcionou”.

Abdicou de tudo isso, baixou a cabeça e fez a prova. Questão por questão. Não soube se foi bem nem deu satisfação a alguém, mesmo que as perguntas fossem inevitáveis.

Meses depois, o gabarito oficial mostra a realidade: duas questões erradas apenas. Justamente na semana que recebia a resposta de uma entrevista a um cargo cujo salário regulava com o do funcionalismo público.

E parece que todos engoliram que a prova foi anulada, porque durante toda a dor, percebeu que fez tudo pelos outros e nunca a si mesma.O trabalho na iniciativa privada vai bem, e na próxima sexta, haverá um jantar de fim de ano e um amigo secreto de 50 reais o presente.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O PÃO DE QUEIJO

Decididamente aquele não seria um bom dia, porque o sobressalto não pode ser o primeiro a nos saudar.  Teria de acordar às 6h e já eram 7h. Teria de estar a caminho do trabalho, mas era o do banheiro o seu itinerário. “Pros diabos”, pensou. Ao menos uma vez na vida decidiu seguir o seu ritmo. Não atenderia às ligações que viriam em 45 minutos. Deixaria que a natureza a guiasse, pelo menos naquela manhã. Silêncio. Não ligou o rádio nem o TV, quis escutar com calma o barulho do mundo.

Ouviu um pássaro ao fundo e cortou seu canto com a ducha quente. Deliciou-se ao perceber que o impacto da água era mais agudo do lado direito, brincou gingando os ombros num iê-iê-iê inusitado. Desligou a ducha e só se enxugaria quando a última gota pelo ralo fosse. Celular tocou. 45 minutos passaram e ela não havia percebido. 7h45. Deveria estar no café em frente ao trabalho, levando um e dois pães de queijo ao chefe. Sorriu quando se lembrou que eram três, mas que um sempre acabava no caminho.

Parou de sorrir porque percebeu que sua ousadia se limitava a isso, a 5 pães de queijo na semana. Pela conta rápida, viu que seu atrevimento ficava a 20 pães de queijo no mês. Deveria ter ganhado medidas, mas nem isso conseguiu para si. Celular tocando. Não haveria mais pães de queijo, decidiu. Abriu sua conta poupança e viu que os 5 mil reais que conseguira juntar em um ano eram quase um grito de liberdade.

Percebeu que os poucos mais dos 1.500 mensais não valeriam a pena, ainda que só tivesse o ensino médio. Duas férias vencidas, se saísse hoje teria uns 3 mil reais, mas os 5 mil e os 300, conseguiria se manter por 6 meses. Ah, seriam dias ótimos. Não haveria mais pães de queijo pela manhã. O celular tocou pela segunda vez. Dessa vez a mãe o trouxe na porta com “está tudo bem, filha?”. Deve ter respondido que sim. Não se atentou a isso, porque agora isso não era importante.

Pegou o celular, deu um beijo na mãe e um abraço. Ignorou a terceira ligação, 8h05, e entrou num site de viagens. 3 mil reais por uma semana na Europa. Voltou a sorrir. Colocou a roupa mais confortável que tinha. Ignorou a quarta ligação e foi para o café. A atendente estranhou as quase duas horas de atraso, mesmo assim, separou os 3 pães de queijo e o café.

Entrou com bons-dias a todos. Bateu à porta da sala do chefe. Respondeu com um sorriso ao sincero “tudo bem com você?”. Colocou a encomenda sobre a mesa e sua carta de demissão.


Percebeu que valia mais que um pão de queijo por dia. Decidiu viver uma semana como nunca havia vivido. Não quis saber o que seria dela nos outros dias nem as explicações que teria de dar à mãe. Precisava se abastecer de si mesma, de outros lugares, de outros cafés, da vida. Não ficou por lá. Saiu feliz para fechar a viagem e a autossabotagem, só que dessa vez eram 3 pães de queijo que estavam em suas mãos.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

MEU MUNDO PARALELO! (clique no link no fim do texto e leia com a música)

Não sei se todos têm uma música que faça a realidade sumir e sejam transportados para algum lugar que só exista na imaginação, um lugar aconchegante, seguro e único.

Essa mescla de som e sentimento deveria ser uma obrigação a qualquer indivíduo como fonte de renovação, como prazo de recuperação, uma quarentena forçada a momentos difíceis. Torço para que os que me leem entendam e saibam isso.

Não sou melhor que ninguém por ter a melodia e meus lugares, mas consigo me lembrar muito bem o momento exato quando tudo se firmou.

1978, eu com 5 anos. Tínhamos parentes no interior de São Paulo e costumávamos viajar a Rio Claro com uma certa frequência. Lembro dessa data em especial. Estávamos na rodovia Anhanguera, com trema ainda na época. Os 5 na Brasília bege do meu pai.

Adorava o ronco daquele motor, uma espécie de fusca turbinado. Sempre tive o hábito de ir na janela, olhando os céus. Aliás, amava sair tarde à noite da casa de alguém que morasse longe, só para ver as ruas desertas da capital e me sentir protegido dentro daquele carro.

Era comum, quando chovia, ver qual pingo chegaria mais rápido com a velocidade do vento à outra extremidade do vidro. Ou ainda tentar adivinhar onde estava apenas olhando os fios dos postes e o topo dos prédios que meus olhos alcançassem. Até hoje olho as ruas molhadas à noite para ver as luzes refletidas... Mágico!

Mas o clichê maior era imaginar figuras nas nuvens. Apenas anos mais tarde fui saber que, além das formas, elas tinham nomes. Cumulus, Congestus, Stratus, Nimbostratus etc. Porém eu ainda prefiro nomeá-las com leões ferozes, palhaços tristes ou cavaleiros destemidos.

E foi numa viagem dessas, em 1978, vendo uma linda árvore no céu, num entardecer majestoso, que escutei aquela melodia na fita K7 do meu pai. Da trilha sonora de Dancin’ Days, escutei aquele acorde de guitarra, quase uma cítara, trazendo suavidade.

A voz de Phil Collins apareceu como seda e fui transportado pela primeira vez ao meu mundo paralelo. Um lugar único, indescritível. Ou melhor, eu poderia fazê-lo, mas ninguém conseguiria entender. Fiquei em choque e devo ter sorrido.

Lembro que quando a música terminou, pedi para que meu pai a colocasse de novo. E hoje, todas as vezes que eu a escuto, é para esse lugar que me dirijo.

Com a tecnologia atual, poderia baixá-la em meu Ipod, mas prefiro, como naquele dia de 1978, que ela apareça de surpresa em minha vida.

Ela é minha ponte ao meu mundo, entretanto tenho certeza de que você não conseguirá enxergá-lo. Assim como jamais me atreverei a vislumbrar o seu.