
Ele não, desejava ser pai num 25 de dezembro, "traria sorte, porque Deus abençoa quem nasce nesse dia e a nossa sorte mudaria", vivia dizendo enquanto revirava os lixos. Ela sonhava com um banho ao menos e pensava em como alimentar a criança depois que o seu leite - sabe-se lá em quais condições - acabasse.
E naquele 24 de dezembro, as ruas pareciam mais vazias e mais frias. Havia chovido, o que piorava as condições do lixo. Por sorte, passaram perto do bar cujo dono vivia a dar-lhes comida e o que viesse. E veio mais do que esfihas. Veio um panetone, dois torrones e até uma sidra. Eles sorriram e preferiram ficar embaixo de uma árvore pincelada por luzinhas. Decidiram que tinham a maior árvore de natal da cidade e por lá fariam sua ceia.
Rezaram porque era uma noite especial. Ficaram em silêncio, não se podia ouvir os pensamentos deles, mas parece que ela pediu um banho e ele mais sorte nessa vida, ainda que fosse injusto desdenhar daquele Bauducco, porém vivia imprecando contra a má sorte da vida. Nessa hora, um cachorro apareceu e salivou ante a qualquer coisa, que foi dividida.
A garoa cessou "Estamos com sorte", disse o rapaz tentando abrir a sidra. Ouviu-se um canto numa casa, embalavam qualquer melodia natalina. Desconheciam a letra, mas sabiam a melodia. Ele abriu a sidra e deixou que ela bebesse, ao menos um gole para celebrar aquela noite. Ela aceitou com a condição de ser apenas um. Havia ainda 4 esfihas para o dia seguinte, mas o panetone havia acabado e o cachorro se encarregava de raspar o papelão e tudo que estivesse por ali.
Ele dormiu, ela não, o cachorro sentou-se perto dela. Ela o acariciou e ele lambeu sua mão. Talvez pelo cheiro da carne, talvez pelo afeto, que diferença faria isso agora? Então ele pôs a cabeça nas pernas dela e dormiu. Ela sorriu e chorou. Odiava estar suja, odiava estar grávida porque odiaria parir outro mendigo. Perdeu as contas de quantas vezes pediu para o bebê morrer. Deus não a escutava há anos, por que agora?
Chorou porque se sentia injustiçada e não podia lutar contra tudo tendo de cuidar de alguém mais desprotegido ainda. Chorou por tudo e por saber que, ao sentir aquela dor, aquelas contrações, que o filho viria naquele instante. Berrou. O rapaz acordou num sobressalto já assustado, sabendo que era o momento de ter sorte.
"Jesus, vamos chamar ele de Jesus", antes mesmo de prestar a primeira ajuda. Ela berrou de novo, o cachorro se assustou e ficou em pé, sem saber o que fazer. Sabia que tinha de parir ali, no meio da rua, com aquelas luzes a piscar agora. Sim. Um viatura policial, que parou e logo dois desceram ainda mais desesperados. Não nos cabe saber os procedimentos, porém a dupla ajudou muito e conseguiram trazer a criança ao mundo.
Não houve mais choro, não houve coisa alguma, o rapaz ficou mudo, o cachorro estava atrás da árvore, os policiais ficaram quietos e a mãe não balbuciou coisa alguma. Se era pra ser Jesus, ele viera com a missão cumprida, já com a vida completa, pois naquela noite nascia morto e talvez não ressuscitaria no terceiro dia.
Os rapazes não puderam falar. O pai jogou a imprecação de novo aos céus e a moça sorria por saber que, pelo menos uma vez, Deus poderia ter escutado suas preces, que naquela noite especial poderia haver uma ponta de esperança em seus pedidos...
Não houve mais choro, não houve coisa alguma, o rapaz ficou mudo, o cachorro estava atrás da árvore, os policiais ficaram quietos e a mãe não balbuciou coisa alguma. Se era pra ser Jesus, ele viera com a missão cumprida, já com a vida completa, pois naquela noite nascia morto e talvez não ressuscitaria no terceiro dia.
Os rapazes não puderam falar. O pai jogou a imprecação de novo aos céus e a moça sorria por saber que, pelo menos uma vez, Deus poderia ter escutado suas preces, que naquela noite especial poderia haver uma ponta de esperança em seus pedidos...
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