
Não
saía com ele, mas todo sábado tinha o ritual da manhã. Ele o lavava e o polia,
religiosamente, as 3 horas do dia eram de deleito e de entrega. O amor
incondicional. Colocava as fitas K7 de cromo para tocar. Lavava tapetes,
aspirava o pó que nunca existia, passava álcool nos vidros, nos bancos,
borrifava Gleyde por dentro.
Só
depois saía pelo bairro, como recompensa a si mesmo, como troféu a si mesmo.
Colocava uns cinco litros de gasolina e o guardava para o ritual da semana que
vem.
Nem
mesmo o importado japonês tirava o brilho daquela relíquia.
Fato
é que um primo do outro lado da cidade, amigão de infância e carente desde
então, pedia há meses pela presença do rapaz. Um abraço, um papo etc.
Comissário de bordo, eram raras as chances de se verem.
E
foi num sábado que a tia ligou chorando, dizendo que o filho estava muito mal e
que só a família, o primo, poderia dar um apoio a ele. O problema é que isso o
atrasou no trato do Fusca, mas maior ainda foi a mãe endossando o protocolo
familiar.
Justamente
no dia seguinte à ida do japonês à revisão. O azulzinho restava para que o
remorso não falasse alto. A muito custo, decidiu adiar o ritual e seguir com o
carro os 20 km que separavam os dois.
Mas, antes, teve de parar para se garantir. Como o carro não tinha seguro e tudo que
se ama é natural que se proteja, o primo sorriu a cântaros quando o viu
chegando e teve de esperar uns 15 minutos, enquanto ele embalava o carro com
plástico bolha, uma dezena de voltas e passava correntes nas portas fechando-as
com cadeados de Alcatraz.
Daí
sim seria todo ouvidos e abraços. E foi o que aconteceu, ouviu medos,
problemas, deu conselhos, adorou o café com o bolo de fubá, riram da infância,
foram 4 horas muito agradáveis.
Horas
essas que seriam lindas, se não tivesse visto o que viu assim que deixou a
porta de entrada. No lugar das rodas, havia pilhas de listas telefônicas
velhas. Sim, todas as 4 rodas haviam sido levadas.
Talvez
uma retaliação às correntes nas portas.
O
sorriso sumiu. A alegria decolou. Melhor não detalhar tudo, problemas em
família todos têm. E, com aquele acontecimento, o dono do Fusca soube duas coisas
nessa vida: a primeira, que havia uma loja especializada em rodas de Fusca dos
anos 70, idênticas; e a segunda, quem precisa de abraço não espera, vai até
ele!
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