
Ouviu um pássaro ao fundo e cortou seu canto
com a ducha quente. Deliciou-se ao perceber que o impacto da água era mais
agudo do lado direito, brincou gingando os ombros num iê-iê-iê inusitado.
Desligou a ducha e só se enxugaria quando a última gota pelo ralo fosse.
Celular tocou. 45 minutos passaram e ela não havia percebido. 7h45. Deveria
estar no café em frente ao trabalho, levando um e dois pães de queijo ao chefe.
Sorriu quando se lembrou que eram três, mas que um sempre acabava no caminho.
Parou de sorrir porque percebeu que sua
ousadia se limitava a isso, a 5 pães de queijo na semana. Pela conta rápida,
viu que seu atrevimento ficava a 20 pães de queijo no mês. Deveria ter ganhado
medidas, mas nem isso conseguiu para si. Celular tocando. Não haveria mais pães
de queijo, decidiu. Abriu sua conta poupança e viu que os 5 mil reais que
conseguira juntar em um ano eram quase um grito de liberdade.
Percebeu que os poucos mais dos 1.500 mensais
não valeriam a pena, ainda que só tivesse o ensino médio. Duas férias vencidas,
se saísse hoje teria uns 3 mil reais, mas os 5 mil e os 300, conseguiria se
manter por 6 meses. Ah, seriam dias ótimos. Não haveria mais pães de queijo
pela manhã. O celular tocou pela segunda vez. Dessa vez a mãe o trouxe na porta
com “está tudo bem, filha?”. Deve ter respondido que sim. Não se atentou a
isso, porque agora isso não era importante.
Pegou o celular, deu um beijo na mãe e um
abraço. Ignorou a terceira ligação, 8h05, e entrou num site de viagens. 3 mil
reais por uma semana na Europa. Voltou a sorrir. Colocou a roupa mais
confortável que tinha. Ignorou a quarta ligação e foi para o café. A atendente
estranhou as quase duas horas de atraso, mesmo assim, separou os 3 pães de
queijo e o café.
Entrou com bons-dias a todos. Bateu à porta
da sala do chefe. Respondeu com um sorriso ao sincero “tudo bem com você?”.
Colocou a encomenda sobre a mesa e sua carta de demissão.
Percebeu que valia mais que um pão de queijo
por dia. Decidiu viver uma semana como nunca havia vivido. Não quis saber o que
seria dela nos outros dias nem as explicações que teria de dar à mãe. Precisava
se abastecer de si mesma, de outros lugares, de outros cafés, da vida. Não
ficou por lá. Saiu feliz para fechar a viagem e a autossabotagem, só que dessa
vez eram 3 pães de queijo que estavam em suas mãos.
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