.jpg)
A família católica seguia pra igreja quase
todos os dias mais para esmolar do que para as preces. Ainda que soubessem que
era pedindo a Deus que os trocados viriam, os pais viram nos olhos da menina a
chance de conseguir até carne. E foi a aposta certeira.
A criança parece ter entendido desde sempre
que não precisaria abrir a boca para pedir, só para comer, porque os olhos
iluminados chamavam a atenção de todos, saberia então, anos depois, que as
palavras apenas entrariam por seus ouvidos e morreriam em seu estômago. E foi
assim que ganhavam fama e comida. Raro o tempo que faltava algo, mais raro
ainda os momentos de geladeira vazia.
Nos olhos da menina estava o emprego do pai,
que vivia auxiliando um escritório contábil. Assim como a mãe, que fazia
entregas da farmácia pela região. O mais velho, já com 14, carregava saco de
arroz num armazém qualquer, e o do meio ficava apenas com a pequena na porta da
igreja como complemento de renda.
Assim como o vento, os anos voam, e agora,
Marina, com 9, estava mais luminosa ainda. Raras as vezes de aparecer na
igreja, porque o pai já ganhava o suficiente para o mais velho, já no segundo
ano de faculdade na capital, dividir as despesas de lá. O do meio acabava o
ensino médio, quando a porta bateu.
Era o padre, amigo e homem do bem. Fora quem
viabilizara as esmolas, eram eternamente grato a ele. Talvez tenha sido durante
o café, depois do primeiro pedaço do bolo, que ele fez a proposta de iniciar
Marina. Os chamados de Deus viriam, e a pureza daqueles olhos vívidos estariam
seguros no colégio interno e, posteriormente, uma vida pura como freira.
A menina ficaria sob a tutela do velho, que
prometeu costurar a virgindade dela, fosse com terço, fosse com hábito. Os pais
gostaram, Marina não tinha o que desgostar. Acostumou-se a não falar, porque
jamais falaria na vida e porque já tinha seus olhos que poderia berrar por si.
Foi numa manhã de julho que o padre bateu de
novo, dessa vez sem café nem bolo, e levou a menina com sua mala, batendo mais
do que nos batentes, batia e acenava aos pais, orgulhosos de uma filha santa.
Ventava muito, quando sentou no colo do padre. Mas o carro partiu rápido,
deixando o frio pra trás.
Semanas depois, a porta bateu. Mais uma vez,
não haveria café nem bolo, era uma freira que trazia a menina pelas mãos. Os
olhos não eram mais verdes como antes, a mala parecia intacta. Os pais se
assustaram e choraram pela morte do padre, há 4 dias. Sentiram que a tristeza
da filha era evidente. A freira preferiu imitar Marina, não fosse pela notícia
do enterro.
Recusou o café, a água e recusaria o que
viesse. Apenas queria se livrar de tudo, inclusive da menina, que parecia
dopada. Se houvesse palavras na boca de Marina, elas provavelmente seriam de
gratidão. Pena o velho ter tido um enfarto na terceira sessão, ele realmente
lhe havia costurado a virgindade, ainda que não fosse com o terço, porém, ao
menos, foi com o hábito.
Mias uma excelente crônica...como de "hábito"!
ResponderExcluir