terça-feira, 24 de maio de 2016

A LOUCA

Pode-se dizer que a loucura a algumas pessoas deixa de estar e passa a ser. As atitudes deixam de ser justificativas e passam a ser coerentes. E aquela relação não era lá um exemplo de algo saudável ou promissor. Ela com uma filha de 7 anos, ele 7 anos mais novo e sem filhos. O namoro foi um complemento de nichos, a um havia vagas ao amor à outra, quem viesse.

O amor muita vezes acaba sendo uma conveniência, a diferença é quando a conveniência supre as carências que uma vida toda causa ou ratifica. Talvez ela tivesse o olhar adequado e um sorriso certo. Ele nada tinha, ele estava lá, vago e pontual. Foi uma hecatombe a união. Em poucos horas, os dias viravam meses, e os meses, anos. Séculos que se juntavam, uma mescla de Idade Média e Renascentismo. 

Resolveram erradamente morar juntos, o sonho de uma família não parecia algo correto, não aos olhos de quem os via, mas aos olhos de quem se via. Retomando a ideia de que ninguém é feliz sozinho, ambos seguiram a árdua e desafiadora tarefa de que a família deveria ser a base de tudo. 

O grande problema era a criança, sim, a menina, digamos, não era lá algo confortável à mãe. Pois é, a natureza deixava de seguir o curso normal e, o que era para ser fluente, tornava-se um empecilho. A baixo autoestima caminhava lado a lado com a moça, desde sempre. Não se podia dizer quem viera antes.

Não eram raras as brigas constantes com a garota por nada. Não eram raros os olhares furiosos a ela por nada. Não eram raras as situações constrangedoras por que sofria e era comum a disputa da mãe com ela mesma.

Eram comuns as brigas se o marido elogiasse a menina, mesmo que fosse na lição de casa. Eram comuns as brigas se o marido beijasse a testa da garota, ainda que fosse nas festas de agosto. Eram comuns as brigas se o marido colocasse o gorro e ajeitasse os cabelos da enteada, ainda que fosse julho. E mais comuns ainda quando ela o beijava na bochecha, ainda que um "eu te amo, pai" prenunciasse a ação.

Anos depois de brigas e disputas, a pré-adolescência chegou. Com ela vieram as trevas da loucura. Puberdade fervilhando e descobertas revelando um final desastroso. 

Numa noite, no corredor do banheiro e dos quartos, saía do quarto do casal e de cueca o marido, que, por dois segundos, nem viu a menina vindo do banheiro, de calcinha e com o primeiro sutiã. No exato momento em que teriam se soltado, no milésimo de segundo preciso em que teriam trocado um beijo ou, quem sabe, no flagrante preciso de uma troca de carícias, o olhar furioso dela transbordou.

Cega, urrou. O marido se virou, já na porta do banheiro e a menina reabriu a quase fechada porta do quarto. Havia ninguém mais ali, porém era a certeza de mais um surto, o último. Ficaram estáticos e viram uma jamanta desgovernada subindo com uma faca. E, antes que a filha tentasse formular algo, teve a barriga perfurada. O marido, entre o correr para ajudar e tentar impedi-la, nem havia percebido que sua garganta estava aberta. Mortos, todos mortos. 

Ainda ofegante e ainda vidrada, conseguiu arrastar o corpo dele para cama e, depois de colocar o da filha em cima do dele, saiu satisfeita por acabar com aquilo tudo. Melhor assim, ela se resignara com a realidade, libertara-se do pesadelo e havia um pedófilo a menos nesse mundo injusto e sujo...  

Um comentário:

  1. Muito show o post. Eu diria que é um tanto quanto macabro, mas isso é pauta para um outro comentário. Acompanho todos, ou quase, os seus posts e estarei aguardando ansioso pelas suas obras.

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